sexta-feira, dezembro 31, 2021

Sexta, 31

Se não desmoralizar, esta manhã foi excelente de trabalho no romance. Estou a ensaiar misturar na história pequenos flaches paralelos que foram o resultado da vida das personagens principais contados no alicerce da narrativa. Ocorrem ocasionalmente, saem ou entram para dar consistência a certas figuras. Um exemplo com este capítulo (o itálico corresponde ao que acabei de dizer).  

“O facto porém, é que o primeiro trabalho de Eugénia derreou-a a um ponto que a infeliz levou uns dias a recompor-se. Talvez Ana não o tivesse feito com esse intento, mas a garagem que todas as habitações possuíam e nenhum proprietário usava para a função que fora construída, estava transformada num enxurdeiro onde ratos e gatos vadios vinham pernoitar. Ana atribuía essa situação ao proprietário do terreno que um muro alto circunscrevia o beco, homem separado de uma atriz de cinema que o trocou por um trolha de rosto sorridente e físico tão harmonioso que ela o convenceu a entrar no concurso nacional do homem mais bonito e perfeito, tendo ficado em terceiro lugar, facto que a decepcionou e a ele deixou na mais completa indiferença. “Este físico que aqui vês, só a ti pertence e a mais ninguém.” A actriz gostou do que ouviu, mas nesse mesmo dia, em filmagens numa praia, conquistou um figurante de segunda categoria que respondeu de pronto nas dunas de areia branca e suave à lábia da estrela. O que se passou a seguir, não chegou à residência de Ana Boavida. A nota de rodapé que Leandro havia lido na página de cultura do jornal, limitava-se a dar a notícia sem qualquer comentário ou aditamento, simples faits divers para entreter a clientela de baixa condição que tem nestas ocorrências conversa para toda a semana.” 

Não há desenvolvimento nem mais notícia da actriz e do seu amante ou do figurante. Uma janela abriu-se e fechou-se com estrondo, mas os elementos surgidos por assim dizer do nada, podem mais tarde voltar a assomar como tantas vezes acontece na vida e constituírem confidências que fazemos a nós próprios, quando não lampejos que alimentam a consciência de charcos de luz. Há em cada um de nós uma memória que fica pendurada de uma moral, de um bater de coração, que tendemos a esquecer, mas que permanece como recordação e compõe uma espécie de murmúrio que atormenta e consome nas horas sombrias. Para além de nos pertencer através dos anos, mesmo que outro de nós tenha crescido e construído voos de dignidade que a sociedade convenciona, essas escapadelas de toda a ordem, para o bem e para o mal, são nossas, pertencem-nos enquanto seres livres, desarrumam o convencional, são transportadoras de um certo mistério que nos identifica como seres à parte, únicos como são todos os que medram da erva daninha das convenções sociais, e pela inteligência e sentido da remissão, alcançaram o estatuto de originais. Depois, enquanto criador, não posso saber se a actriz, o amante e o figurante, não engrossarão de uma simples aparição 300 transbordantes páginas de um romance.  

         - Um radioso 2022 a todos os leitores. Façam no próximo ano tudo aquilo que ficou travado nos vossos corações. Não aceitem nada que não esteja em harmonia com a vossa natureza. O inconformismo deve ser o sentimento mais distendido da vida. 


quinta-feira, dezembro 30, 2021

Quinta, 30.

É aterrador o que nos conta Victor Ferreira sobre o controlo a que vamos estar sujeitos com a alteração que a UE quer proceder, abrindo a porta à criptografia de tudo quanto se diz ou escreve na internet. A base é a suposta defesa da democracia. Pois. Sabemos como tudo começa sob estes auspícios, ignoramos como tudo termina. Sobretudo tomando como exemplo a China e a Rússia, os eternos aliados disfarçados de inimigos. Na China o ditador é que manda; na Rússia governa a nomenclatura presidida por Vladimir Putin. No Ocidente democrático, diz Victor Ferreira: “Nos países que constituem o bloco das democracias ocidentais, a resposta é mais complicada. Na Internet pública, muitos querem mandar. Nas internets privadas, parecem querer mandar as multinacionais que controlam a infra-estrutura.” 

         - A propósito como estamos em Portugal onde os utilizadores da internet parecem estar-se nas tintas para o que lhes impõem. Nesta matéria não acho que haja alguém que nos proteja. Tomemos o abuso de bancos, empresas, organismos públicos, que nos obrigam a dar o nosso consentimento para termos acesso a um jornal, a um produto, à nossa conta bancária, a uma dúvida gramatical, a uma consulta histórica e assim, num controlo sem precedentes nem justificação, quando lá fora, noutros países menos controladores e respeitadores da intimidade dos seus clientes, existe um link que diz “Continuar sem aceitar.” Por cá, queiramos ou não, só entramos nas páginas que procuramos, sob obrigação de nos expormos. Toma e amocha, português baldas e indiferente à tua liberdade!  

          - Tento reflectir. Não deve ser por azar que a Rússia e a China de encontram em avanços anti-democráticos, num ataque comum aos direitos dos cidadãos e à liberdade de pensamento. No caso da Rússia, a recente proibição do Memorial nascido na década de Sessenta, que tinha o objectivo de homenagear os milhões de vítimas da repressão soviética e do Gulag, fundado, entre outros, por Andrei Sakharov, e tão importante foi posteriormente quando da Chechénia, esta semana interditado por ordem de Putin, que a pouco e pouco toma a arrogância dos imperadores e senhor todo poderoso. A somar à tentativa de avançar sobre a Ucrânia e à proibição de ideias e ideais diferentes, o ditador sonha em restaurar aquilo que Gorbatchov, com esforço e determinação, implementou com a sua Perestroika.  


         - A sintonia parece ser perfeita, o circulo fecha-se. A China, também esta semana, deu o golpe final nas pretensões de Hong Kong à democracia, ao invadir e prender seis jornalistas do jornal independente Stand News. A razão: conspiração ao publicar artigos não afectos ao governo. Acontece que, terça-feira, véspera da invasão por 200 polícias, tinha havido o jantar anual da Associação de Jornalistas de Hong Kong que reafirmaram “(...) a cidade precisará sempre da verdade e de jornalistas. Independente do quão difícil for o caminho que temos pela frente, a Associação de Jornalistas não irá cair”. Que diz o nosso querido PCP? Cospe para o lado, boca calada. Contudo, estas cenas, são tiradas a papel químico do tempo em que a PIDE/DGS exercia sobre eles o mesmo método. A menos que, sendo perpetuadas pelos camaradas chineses, não sejam fascistas, mas patrióticas... 


terça-feira, dezembro 28, 2021

Terça, 28.

Não desejo ao meu pior inimigo (se o tiver) que adoeça nesta altura. Eu conto. Quando no sábado passado tentei socorrer a Piedade, bati à porta de dois centros de saúde, telefonei para vários lados, e obtive sempre um rotundo e desprezível silêncio. Cria-se um fosso, um vazio medonho por onde o tempo se esvai e o vagante nos tolda os sentidos. Acabei no hospital de Setúbal pelas cinco da tarde para sair à uma da madrugada. Mesmo assim sem ter a certeza que a minha empregada estava livre de perigo. Nas urgências encontrei de tudo e todos os que a elas acorreram, fizeram-no pela mesma razão que  me lá levou a mim. Logo a minha cabeça se pôs a pensar. E o que ela concluiu é que há um estrato social imenso que cobre praticamente todo o país e um outro, lá no cimo, onde estão instaladas as meninas BE, os senhores PCP, os anafados PS e os palradores PSD. O povo está abandonado, não tem direitos, sofre por destinado, e só chamam por ele quando a democracia achincalhada por aqueles barões o exige. Dito isto, também não tenho dúvidas que muito do desastre se deve ao funcionalismo irresponsável, que cresceu exponencialmente depois do 25 de Abril e constitui campo fértil ao domínio da esquerda e faça ele o que fizer, comporte-se como quiser, nunca nenhum funcionário será despedido. Depois, entre essa massa de subordinados aos partidos, está uma ilha de mulheres e homens bem formados que faz a diferença, mas não tem voz que levante da subserviência os demais.  

         - Terminei o breviário de Green. Mil cento e doze páginas que comecei a devorar (é o termo) na quarta semana de Outubro, em Paris. Devia principiar a leitura do terceiro volume, mas fico-me por aqui. Tenho a vista cansada e outros livros para acabar. Ler de uma enfiada mais 1030 páginas, em papel bíblia, corpo minúsculo, precisa que eu restaure os olhos. O homem é de uma complexidade e fascínio imensos e muito tenho para dizer, mas prefiro por agora calar-me.  

         - É impressionante a correria do Ómicron saltando de corpo em corpo. Fala-se já da quinta vaga! Restrições da liberdade e confinamentos estão por toda a Europa. Prevê-se que depois das festas de fim de ano, o aumento seja dramático. Eu, prevenindo-me, não vou fazer quatro sessões de tortura dentária agendadas para Janeiro.  

        - Nem tudo é, todavia, mau. Por exemplo (estou a lembrar-me agora) acabaram aqueles momentos de desassossego nas missas de domingo como naquela a que assisti neste primeiro dia da semana, quando o sacerdote anuncia “a paz do Senhor esteja convosco”. A meu ver deviam esquecer aquele exercício infeliz, um pouco hipócrita e que despega o fiel da intimidade com Deus através do acto litúrgico. As boas acções devem ser feitas rosto a rosto. 


segunda-feira, dezembro 27, 2021

Segunda, 27.

A intolerável pressão de Putin sobre a Europa e os EUA, por forma a impedir que a vizinha Ucrânia venha a fazer parte da NATO, como se enquanto país independente não possa decidir do seu destino e aliar-se a quem entenda útil à sua defesa, é algo que não pode passar incólume porque contém em si a ambição expansionista de outrora. Um cenário de confronto está instalado: do lado russo milhares de militares de soldados e arsenal bélico estende-se ao longo da fronteira com a Ucrânia; enquanto forças da NATO vigiam com mísseis antiaéreos e preparadas para o pior. O ano de 2022 começa com o espectáculo dantesco que ameaça o Leste Europeu. A ver vamos como tudo isto vai terminar. 

         - Na Coreia do Sul o número de mortes devido à pandemia é assustador, mas a pergunta que se faz é esta: e na Coreia do Norte? São  mortos todos os infelizes que surjam com Covid-19? 

         - A este propósito ainda bem que calculei bem a minha estada em Paris. Fui e vim sem problemas. Escapei a esta série de voos cancelados, às longas filas de testes à covid, aos voos anulados devido a contaminação de pilotes e pessoal de cabine, confinamentos, aumento de casos.  

         - Trabalhei esta manhã no romance, de tarde fui a Lisboa. Da meia dúzia de páginas que havia escrito, relidas hoje, metade vou eliminar porque não encontrei o ritmo que alcancei no começo. Assim sendo, já não sou o mesmo que voltou de França. Durante todo este mês, fui um ser quase seráfico, calmo, meditativo, encontrando no tempo espaço para reflexão, para olhar o que à minha volta acontecia, que media cada palavra, tomava distância entre o real e o imaginário, entre o essencial e o acessório, instalado numa espécie de sagesse onde a divindade não andaria longe. Deste modo, deixei de dormir serenamente, assombrações agitam o meu sono, histórias rondando o meu cérebro, instabilidade diurna a insuflar o sopro que conduz a vida. Parece que adivinhava. Antes de deixar a capital das luzes, adquiri um frasco de Euphytose com 180 drageias que espero chegue até ao fim do trabalho no romance.  

         - Folgo em saber que não estou só. O artigo no Público de ontem da autoria de Ana Sá Lopes, corrobora tudo o que eu afirmei aqui (Sábado, 25) acerca da entronização do almirante Gouveia e Melo. A trapalhada dos políticos PS foi tal (a que devo juntar o Presidente da República), que a sua posse enquanto chefe do Estado-Maior da Armada ocorrida hoje, foi a imagem de um Governo à deriva. Mais: o seu antecessor, Mendes Calado, pura e simplesmente demitido por João Gomes Cravinho, faltou à cerimónia; e o almirante das vacinas, se fosse coerente, nem teria aceitado o cargo. Acrescento uma imprecisão minha: citando de memória pus estas palavras na boca de Gouveia e Melo: “tenho fome de vencer”, quando ele disse tenho “fome de poder” que é infinitamente pior e define a criatura. 


sábado, dezembro 25, 2021

Sábado, 25.

Mesmo neste dia santo a navegação para a morte não parou. Houve pelo menos três incidentes perto da ilha grega de Antikythera: quarta-feira com 90 sobreviventes, incluindo homens, mulheres, crianças; quinta-feira 11 corpos foram recuperados quando o barco com uns 100 migrantes a bordo ter afundado numa pequena ilha no sul da Grécia; sexta-feira morreram mais dezasseis migrantes quando a embarcação em que viajavam mergulhou nas águas do Mar Egeu. Até quando suportamos nós esta espécie de assassinato do silêncio e da indiferença. 

         - Haverá algum ministro mais desavergonhado e falso no Executivo de António Costa que o seu benjamim  (ou ex) Pedro Nuno Santos? 

         - Que pretende a coqueluche da Marinha quando afirma: “Tenho fome de vencer!” O homem já pensa em fundar uma espécie de partido quando, o melhor e o mais sábio, era ficar circunscrito às Forças Armadas. Eu nunca gostei de militares com ambições políticas – dá sempre para o torto. Prefiro-os em missões como aquela que sua excelência levou (e bem) acabo com a vacinação de todo o território. 

          - Foram muitas e muitos os amigos que me telefonaram a desejar Bom Natal (o João que é descrente e eu não esperava o fizesse, quando lhe fiz notar a extravagância, disse que me desejava apenas Boas Festas). A todas e todos agradeço, eu que não espero normalmente nenhuma manifestação de afago, confesso, todavia, que apreciei. 

         - Pronto para publicar este pedaço de prosa, entra no computador directa do Público, esta horrível notícia: “Um homem de 26 anos morreu este sábado após ter sido baleado numa festa de Natal, na Costa da Caparica, concelho de Almada, Setúbal, disse fonte da GNR à Lusa, referindo que o suspeito do homicídio está em fuga.” Que país é este onde tudo parece andar ao contrário e contra a maré dos bons costumes tão apregoados outrora! 


quinta-feira, dezembro 23, 2021

Quinta, 23.

Pelos vistos, tudo se conjuga para que depois do Natal tenhamos o mesmo quadro de contágio por Covid-19 ou Ómicron que existiu há um ano. Desta vez, porém, as culpas não devem ser assacadas ao primeiro-ministro, mas a todos aqueles que discursam insistindo a infecção só acontece aos que acreditam nela. A culpa é da deturpação que católicos e anticatólicos fazem do gesto singelo dos Reis Magos, apropriado pela sociedade de consumo que o  ampliou e reduziu a uma festa pagã de uma frivolidade assustadora. 

         - Passei uma grande parte da manhã ao telefone, falando com este e aquele centro de saúde, de modo a conseguir levar a Piedade à presença de um médico. Ela ontem às 17 horas foi de urgência ao hospital de Setúbal onde esperou até à uma da madrugada para ser atendida. Devido decerto à ânsia em que tem vivido com as histórias das “namoradas” do neto, a tensão deve ter subido e daí o derrame de sangue pelo nariz. As análises não acusaram nada de especial e o clínico de serviço, deu-lhe dois comprimidos para debaixo da língua (ela estava com 17-8) e recambiou-a ao seu domicílio. Hoje tornou ao mesmo, eu entrei de serviço. Estive ao telefone com uma enfermeira aqui do Centro de Saúde de Palmela, a dada altura, ela vendo talvez o meu empenho, pergunta-me que relacionamento familiar existia entre nós; respondo-lhe nenhum, mas não devo abandonar ninguém aflito e muito menos alguém que me serve há mais de 35 anos. Do outro lado, há uma espécie de vazio que me levou a pensar que tinha perdido interlocutor, ela volta a si e desabafa: “Nos dias que correm não vejo gestos desses.” Então, multiplica-se em esforço, entra na página da Piedade, fornece-me informações, fala com uma colega do Pinhal Novo e assegura-me como devo proceder e aonde a levar. Falo de imediato com o neto, com quem não trocava uma palavra há pelo menos 20 anos, e explico-lhe que é seu dever e obrigação fazer pela avó aquilo que ela sempre fez por ele. Conversa cordata, julgo que útil. 

         Como os telefonemas foram alguns e os diálogos largos de tempo, a tia Júlia tentou falar comigo nesse entretanto a convidar-me para a Ceia de Natal . Quando, enfim, nos pusemos em contacto e eu lhe expliquei a razão da interrupção, ela disparou: “Pois, tem aí outra Maria.” E eu de pronto: “Ou outra tia Dália. - Pois, mas nessa altura eras um miúdo. Deixa lá quando chegar a tua vez, não vai faltar quem te ajude”, retorquiu. Deus a ouça. 

         - Virgílio, pelos vistos, tem o hábito de beber deste caldo e por isso perguntava-me outro dia ao telefone: “Como podes tu passar horas com o João sem falarem de política?” 

         - Francis, na sua eterna obsessão por tudo quanto é homo, ligou-me a informar que Flaubert teve pelo menos dois amantes. Disse-lhe que já pressagiava isso, porque nas cartas que ele troca com George Sand e eu estou a ler, esta também devia pressentir o mesmo embora nunca tivessem abordado abertamente (pelo menos até à página 220) o assunto com o autor de Madame Bovary (aliás o escritor costumava declarar: “Madame Bovary c ´est moi”), resposta imediata: “A George Sand era lésbica e teve um caso com uma cantora de ópera.” Isto era do meu conhecimento porque a autora de Lélia conta em Un Hiver a Majorque e o estudo de André Maurois no-lo assinala. 


quarta-feira, dezembro 22, 2021

Quarta, 22.

Grosso modo, estou de acordo com as medidas que António Costa tomou para enfrentar a nova variante do SARS-COV-2, neste período estabelecido pela sociedade de consumo e que tanto mal produz nos espíritos frágeis. 

         - Apresso-me a dar nota do que fui lendo ao longo do ano que está prestes a findar. Se realço dois títulos de autores nacionais, não desconsidero todos os outros que me ajudaram a ser melhor e, talvez, um pouco mais culto. Saliento – ao contrário do que me dizem alguns leitores, segundo os quais leio pouca literatura portuguesa -, dois confrades de quem, peço perdão, nunca havia lido nada. Por isso, a agradável surpresa teve repercussões na minha inopinada escolha. No monte de livros para conhecer em 2022, estão já outros exemplares destes dois grandes escritores portugueses que eu aconselho vivamente aos que seguem este quotidiano. 

Luz de Pequim – Francisco José Viegas

Homens imprudentemente poéticos – Valter Hugo Mãe

La tentation d´exister – Cioran

Ordesa (Em tudo havia beleza) – Manuel Vilas

A Um Deus Desconhecido – John Steinbeck

A Casa da Aranha – Paul Bowles

La petite Fadette – George Sand

Alegria (E, de repente, a alegria) – Manuel Vilas

O Regresso de Júlia Mann a Paraty – Teolinda Gersão

Um Milhão – Marco Polo

Journal de guerre – Paul Morand

L´ingénue libertine – Colette

Cartas Sem Moral Nenhuma – M. Teixeira Gomes 

Journal espiritual – Julien Green

Toute Ma Vie (Journal vol. 2) – Julien Green 

Correspondence – George Sand e Gustave Flaubert


         - Continua a chover e do céu de chumbo desabam com frequência bátegas de água. Não vou abandonar este presbitério tão cedo. Aqui reina a paz e o silêncio embalado pela murmuração da chuva batendo nas janelas como um cântico ininterrupto cuja origem remonta aos primeiros vendavais. Começaram a chegar as saudações natalícias das amigas e amigos despertados pela ordem colectiva dos adoradores da hipocrisia a que a sociedade pseudo-religiosa-social obriga. São antropoides que emergem do fundo de doze meses de silêncio e apatia ou, para falar como João Ferro Rodrigues, do interior da bolha.  





terça-feira, dezembro 21, 2021

Terça, 21.

Eu gosto de perceber o que vai na cabeça das gerações que me sucedem. Daí que tenha lido com atenção a entrevista que João Ferro Rodrigues deu ao Público há dias a propósito do livro que escreveu com a pretensão de dar resposta como rebentar a bolha social em que ele e os da sua geração vivem. Que dizer?! Desde logo a minha desconfiança quando observo um desejo de bem fazer desdobrado num discurso que é quase só uma atitude intelectual, com largo espectro a esbarrar na própria acepção do modo de viver pessoal. Bárbara Wong, a jornalista, bem se esforça por o trazer à realidade, mas Ferro Rodrigues encosta-se às expressões (inglesas, naturalmente): baby boomers, search inside yourself, background que hoje definem uma geração inteligente e culta, portanto, preocupada com as questões sociais, os bairros degradados, as famílias divididas, a indiferença dos jovens ao outro, o crescente aumento do “Eu” enquanto ilha reservada aos bafejados da vida, etc., etc., como se vivêssemos ainda no tempo do fascismo e os 40 anos de democracia tivessem acrescentado mal ao mal que vinha de trás. Não vou dizer que aquilo são rodriguinhos e falácias típicas de menino nascido em seio abastado, mas a sua consciencialização deixa muito a desejar. Lembra-me um pouco aqueles católicos apostólicos quando afirmam: olha para o que eu digo e não para o que eu faço. As suas propostas não são originais como a que propõe campos de férias para jovens de onde ao fim de três meses saiam mais esclarecidos e, como direi, humanizados. Esse período deveria ser pago e nele tinham de conviver todas as classes sociais, pobres e ricos, letrados e analfabetos, porque ele entende que é de confronto que sairá o futuro cidadão apto a enfrentar o destino. A jornalista, sempre atenta, contra-argumenta que isso já a Igreja faz com os acampamentos de Escuteiros; o homem de negócios e liberal insiste em rebentar a bolha obrigando os jovens ao retiro cívico. As contradições ao longo da entrevista são mais que muitas, como aquela que Bárbara, excelente de atenção, lhe faz notar que ao apregoar a escola pública como meio de evitar a acumulação de bolhas, ele tem as filhas no privado e elitista Liceu Francês Charles Lepierre. Mas o nosso moralista habilita-se a voos mais altos e pretende banir “a comunidade dos sozinhos”. Para isso cita Aristóteles e enfrenta os nossos dias com estas palavras: “Nós somos uma espécie que triunfou pela nossa capacidade de socialização e de empatia com o outro.” Apetece citar-lhe Witold Gombrowicz: “O “eu” não é um obstáculo no convívio com as pessoas, o “eu” é aquilo que elas desejarem.” E acrescenta: “No entanto, cuidado para que o “eu” não seja contrabandeado como mercadoria proibida. O que não suporta o “eu”? Meias-medidas, receio, acanhamento.” O escritor polaco sabe do que fala. Sofreu no corpo a recusa do “eu” no período estalinista. Quanto a mim, quem nos faz colectivos é o silêncio que carrega o “eu”. É através dele que o outro toma a dimensão do colectivo. Não podemos ser colectivos e, portanto, solidários sem a extraordinária dimensão do “eu”. Na base de tudo isto está o egoísmo e esse é maior nos que vivem em família. Terminaria, caro João Ferro Rodrigues: a utopia tem campo fértil no colectivo.  

         - Ontem estando na Av. da Igreja, dou de caras com o João Corregedor. Que festa! Logo me convidou para um chá numa pastelaria da avenida que a sua especialidade são croissants. Ficámos à mesa um tempo à conversa e, a impressão com que saio destes encontros, é que qualquer coisa de singular nos arrasta em cavaqueira amigável perpassada de uma extrema simpatia mútua. Somos diferentes no modo de ver o mundo, somos diferentes politicamente, somos unos no sentimento da grandeza que a memória trás ao convívio das ideias. 

         - Voltei já noite. Chovia como choveu o dia todo, copiosamente. A impressão com que fiquei mal vi aproximar-se o Fertagus, foi que algum alto dirigente da transportadora tem o hábito de espreitar este blogue. Hoje havia o dobro das carruagens e, embora o pagode assalariado fosse muito, ninguém esteve bafo com bafo – nada a ver com o que narrei a semana passada. 

         - Ganho o dia quando acordo já confiscado para a escrita – assim aconteceu hoje no encontro com o romance. 


domingo, dezembro 19, 2021

Domingo, 19.

Há um escândalo que germina nos canais de informação e diz respeito às ofensas produzidas por um grupo de soldados da GNR de Odemira nas pessoas de vários imigrantes asiáticos. O MP ocupou-se (e bem) do assunto, trazendo à liça pública o relato dessas barbaridades perpetradas por uns quantos brutamontes da polícia. Destaca-se do grupo, um tal Rúben Candeias, com apenas 25 anos, e uma dose forte de sadismo. Este sujeito, brindava as suas vítimas com epítetos do género: “põe-te daqui para fora”, “és uma merda”, “mata-te”. De um grupo de seis, certa vez, até um deficiente foi arrastado e filmado com o telemóvel do monstro. Cenas destas, levam-me sempre a pensar que critérios são escolhidos no recrutamento dos rapazes e raparigas. E remetem-me para um estudo que li não sei onde, segundo o qual os soldados americanos durante a guerra de 1914-1918 tinham o nível intelectual de uma criança de 10-12 anos; quando do conflito de 1939-1945, era de 12-14 anos. Hoje o físico é a preocupação primordial, enquanto o cérebro anda ao nível dos homens primitivos – pelo que se vê, claro... 

         - Cheguei ao derradeiro ano (1945) do Journal (vol. 2) de Green e ao 1868 da correspondência entre George Sand e Gustave Flaubert. 

         - Faz frio. Nada que uma boa lareira acesa com vigor não ultrapasse. São 17,20 e dentro destes muros reina uma paz superlativa. Um fio de música (O Quebra-Nozes de Thakosvsty)  estende o sopro de serenidade aos quatro cantos do salão onde escrevo e onde trabalhei no romance. Tudo aqui é equilíbrio, distância, murmúrios, júbilos. 


sábado, dezembro 18, 2021

Sábado, 18. 

A questão é esta: de que serve à Judiciária cantar cocorocó quando tem a rectaguarda tão frágil que denota a tristeza que por lá vai. O governo socialista (mas também pode ser qualquer um dos que por lá passaram ou virão a passar), quando se trata do sector privado não consentem nem uma ínfima parte do que praticam no serviço público. Exemplos não faltam o último dos quais é a querida TAP, perdão, a bandeira nacional. É certo e sabido que o Rendeiro, com um tudo de nada de sorte, não vai sair assim sem mais aquela como pretende o director da Polícia Judiciária. A grande vergonha abate-se sobre os serviços num todo. Quando os tradutores (os poucos que exercem) estão há dez anos à espera de serem pagos, que espera o Governo de uma justiça desta ordem? Uma coisa é a propaganda que, como se sabe, é farta; outra bem diferente é a realidade e esta ultrapassa todas as idas aos canais televisivos, as afirmações de competência e assim. 

         - O homem dos chifres, está uma vez mais em maus lençóis. O seu advogado, pessoa com quem simpatizo, dá-me a impressão que está a defender o indefensável. Ele só por ter sido membro do governo de José Sócrates e amigo daquele que se premiava todos os anos com dois ou três milhões na EDP, merece-me a maior desconfiança. A entrevista que deu ao Expresso, deixa entender que no final quem vai cantar de galo é ele. Tomara eu que o ilustre professor de universidade americana, soltasse a língua e atirasse cá para fora o rol de criminosos que fazem parte do seu escol. Mas ele não chega a tanto. É pequeno de estatura – e está tudo dito.  

         - Ontem fui ao encontro do João Corregedor e almoçámos juntos no seu restaurante favorito. Depois demos um salto a Campo d´Ourique para que eu conhecesse uma loja francesa que só vende queijos vindos directamente de França. É gerida por um francês e pelo empregado de igual nacionalidade. Com este entretive-me em conversa e quando lhe perguntei se tinha um chevre que se produz em Gordes, ele arribou o seu português que misturou com o francês e disse-me que era da comuna de Vaucluse. Então falei do grande convento beneditino que se encontra quase à beira da estrada, entre Avingnon e Gordes, do lado esquerdo. Ele não conhecia e eu expliquei que mosteiro era aquele e que queijo por lá se produz. João assistia admirado à conversa e no embalo disse que à loja tornaria para comprar um de todos os géneros e marcas ali existentes. “Isso vai-te custar uma fortuna”, observei. “Tens razão, levarei um ou outro.” Curioso do longo dia passado juntos, não ter havido uma única conversa sobre política – mas nós não nos calámos um segundo provando que há vida para lá da política...   

         - A coisa está preta. No Reino Unido, só ontem, houve 93 mil novos casos de vírus; na França passou dos 66 mil. A variante Ómicron galga sem misericórdia por todo o lado. Só se fala em voltar a confinar, como se os humanos fossem pássaros condenados a ficar longos períodos em gaiolas. Todavia, ontem, quando regressei já de noite, o Fertagus bondé como nunca tinha visto, o que ouvia aos passageiros chamar, alto e bom, aos governantes era “filhos da puta”. E diziam que não compreendiam como às horas de ponta houvesse tão poucas carruagens. Às duas senhoras perto de mim dei-lhes razão e incentivei-as a não se calarem. Curiosamente, de manhã, quando cheguei ao Chiado a Brasileira não tinha um único cliente na esplanada, nem o bispo António Carmo que é uma espécie de patriarca ortodoxo da coisa, lá abancava. As meninas do BE, que se deslocam sempre de automóvel embora carpem sobre o Planeta, deviam viajar incógnitas no Fertagus de vez em quando – acabavam-se as falácias. 


quinta-feira, dezembro 16, 2021

Quinta, 16.

De entre o labor diário, a leitura é não só um bálsamo como uma peça importante para me aperfeiçoar e cultivar. Sem ela o que seria de mim. Não gostando de futebol, não apreciando telenovelas e concursos, praia e outros entretenimentos que entusiasmam o pagode, estaria à mercê do vazio - esse que se disfarça na alienação (se esta não é já o império do obscurantismo) que tomou por inteiro este pobre país.  Nesta altura o número de obras e autores ocorre do seguinte modo: Correspondência entre Sand e Flaubert lidas 160 das 700 páginas; Julien Green (Toute Ma Vie vol 2); 710 das 977; Paul Morand (Journal de Guerre 1939-1943) 660 das 1.028. 

         - A Piedade veio aí chorosa – a marmanja voltou. Foi o neto buscá-la para lhe aquecer os pés nestas noites frias daqui.  

         - Esta manhã meti mãos à obra e limpei totalmente a parte de trás da casa. Tirei uma dúzia de carros-de-mão de folhas e raízes para queimar. O medronheiro é uma árvore que a antes do inverno começa a soltar lágrimas na forma de pequenas folhas secas.  

         - Vai por aí um grande alarido com a entrada em cena de uma série de corruptos e gatunos acusados pelo Ministério Público. A isso voltarei. 

         - Alegremo-nos, contudo. Têm estado uns dias tão claros e luminosos que encandeiam os nossos olhos de beleza. Um país com este clima, merecia melhores e mais sérios e competentes governantes. Tal como somos, não passamos de lagartos submissos adoradores de sol.

         - Já nos preparam para nova dose de vacina para Abril. Isto não vai parar nunca. As farmacêuticas que criaram as várias picas protectoras, vão abarrotar de riqueza. Só espero que não estejam na origem de mais um irmão gémeo da Covid-19 juntamente com a China. Hoje em dia é de esperar tudo. 

quarta-feira, dezembro 15, 2021

Quarta, 15.

Há cerca de quinze dias ou coisa assim, o professor Cavaco escreveu um longo artigo de três páginas no Público sobre o Tratado de Maastricht ou antes a viagem até ele. O curioso da peça, é por um lado o tom professoral; por outro estarmos diante de números que falam e discutem entre si, como se a comunidade que integra hoje a União Europeia fosse formada por abéculas criaturas sem prerrogativas nem cabeça para pensar; iluminada por um naipe de políticos com a inteligência de contabilista do senhor Cavaco Silva. Aquilo é um susto, uma sobranceria pacóvia, que fala como o realejo das feiras populares, destinado não se sabe a quem, porque nunca se fala de pessoas nem das questões sociais que as une. E de facto, quando pensamos, somos reenviados à nossa reduzida insignificância no seio das nações capitalistas que só nelas pesam. Alguma vez, sobre este ou aquele tratado, os portugueses foram chamados a escrutinar ou sequer lhes foi perguntado se estariam interessados em agrupar, perdendo parte da sua soberania, uma tal união de interesses tão divergentes como esta em que pela força estamos? Por nossa culpa. A atrição não resolve o problema. Digo como Flaubert: “A resignação é a pior das virtudes.” 

         - Disse à Marília: “Como é que uma mulher inteligente como tu, pode ser do PCP?” Ela sem hesitação, responde: “Ah, mas eu sou super-inteligente.” Gargalhada de um lado e outro do telefone. Isto no decorrer da conversa sobre a sua colega e camarada Charlotte Perriand (1903-1999) que ela não conhece, e eu quero oferecer-lhe um álbum com parte da sua extraordinária e multifacetada obra.  

         - Às vezes tenho a sensação que me atrelo a este diário para fugir ao romance. Foi o que aconteceu durante todo este ano – redobrei energias e gosto por registar os pequenos e grandes acontecimentos pessoais e do mundo. Transportei-me inteiro para aqui e com o prazer de cada dia aperfeiçoar a escrita. A verdade é que sem este exercício quotidiano, provavelmente já não saberia escrever. Porque a escrita é também endurance como o desportista que necessita de treino todos os dias, o romancista ou escritor deve praticar para que a memória não lhe falte, os sentimentos estejam à flor da pele, a indignação à boca da revolta e a serenidade no fio do tempo. 

         - Faleceu o Rogério Samora. Parece que nos últimos tempos sofreu muito. Vimo-nos há pouco mais de um ano no Chiado, emproado de importância, achando-se um grande actor que decerto até seria não podendo eu ajuizar porque não vejo novelas e ao teatro vou pouco. A memória que guardarei dele não pode aqui ser recordada. Pertence aos seus primórdios de actor, quando vivia na Amadora e eu me recusei sempre a acompanhá-lo até lá. Que descanse em paz e Deus o guarde puro e crente como se é na juventude.  


terça-feira, dezembro 14, 2021

Terça, 14.

Outro dia um assustador tornado varreu toda a região de Kentucky, nos Estados Unidos. As imagens perturbadoras ainda repercutem e assustam, como se a guerra tivesse passado por ali - tal a destruição e morte que deixou. Uma mancha urbanizada de mais de 300 quilómetros ficou reduzida a um monte de destroços, para cima de uma centena de mortos, prejuízos incalculáveis, milhares de pessoas ficaram sem tecto. Os ambientalista apressam-se a dizer que tudo isto se deve ao aquecimento terrestre, mas eu que leio e tento informar-me, adianto que nos anos quarenta do século passado, refugiado nos EUA, Julien Green, anota que lhe é insuportável viver com 58 graus de temperatura. Estes fenómenos dão-se quando da terra sobem altas temperaturas que se encontram com o ar frio à superfície.  

- Ontem tive um daqueles dias em que sou atacado de sono logo ao tombar do dia. Daí que tivesse subido para dormir antes das dez e, caído na nava dos lençóis, o quarto aquecido, mergulhei no sono profundo. Mas não devia antevendo o que se lhe segue. E o que veio durante todo o repouso, ou antes todo o desassossego, foi uma infinita passarela de corpos tentadores, alguns que eu conhecera em tempos, para me recordarem a minha natureza sensual que o tempo e a idade afinal não desmascaram.

         - O que eu disse aqui (sábado 11) é para esquecer, as minhas fantasias são depressa ultrapassadas pela realidade. Lino e companhia, afinal, são anjos por quem Deus olha. Então não é que os processos das PPP rodoviárias, após onze anos (ONZE), para deduzir acusação ....... prescreveram! O prazo pifou! A sorte que os socialistas têm, porra! (desculpem, saiu-me sem querer.)  


segunda-feira, dezembro 13, 2021

Segunda, 13.

“Quando se faz da cruz o símbolo do cristianismo, esquece-se, muitas vezes, o essencial. Jesus nunca quis a cruz, nunca desejou o sofrimento. Pelo contrário, passou a vida a descrucificar as pessoas que eram vítimas de doenças, de descriminação, de desprezo, de todas as formas de sofrimento e de marginalização.” Palavras sábias de Frei Bento Domingues que vai mais longe. “Quando se diz que Jesus aceitou a morte para cumprir a vontade de Deus, é o supremo insulto a Jesus Cristo e ao seu Deus. Essa expressão deve ser classificada como blasfémia (!). A vontade criadora e recriadora de Deus é de nunca se desistir da alegria. É por isso que a cruz só pode ser símbolo do Cristianismo mediante a Ressurreição, o triunfo sobre a cruz, sobre a morte.” Quando acabei de ler o artigo do ilustre pensador, disse para mim: Esta é outra Igreja, este é um pensar ao contrário de tudo quanto nos impingiram acerca de Deus e dos seus castigos. Este Deus eu entendo, aceito e venero; o outro, bárbaro e vingativo, como a Igreja portuguesa nos impôs, não entra no meu coração. A Igreja salazarenta, dominadora e déspota, contra o progresso e as ideias, o faz o que te mando e não o que eu faço, ainda campeia de Norte a Sul deste triste Portugal e vão ser precisos dois ou três papas Francisco para a repor no verdadeiro caminho de Cristo. 

         - A extradição de Julian Assange, acusado de espionagem pelos EUA, conheceu agora um desfecho muito triste com a decisão do tribunal britânico  de recambiar o ilustre homem para uma cadeia americana onde poderá ficar 175 anos. 175 anos! Que loucura! O bom homem vai em sessenta de vida, mas os juízes americanos querem que ele tenha mais 115 de vida para pagar a afronta de ter divulgado 700 mil documentos sobre as actividades militares, no âmbito das guerras no Afeganistão e no Iraque. Uma e outra foram assassinas actividades da América como sabemos; responderam a interesses políticos e empresariais, nas quais morreram milhares de pessoas. O mundo civilizado agradece a Assange e ao nosso Rui Pinto. Por eles devemos inclinar-nos em veneração pela sua coragem em louvor de um mundo mais equilibrado e tributo para diminuir a corrupção e robustecer a democracia. 

         - Não se fala noutra coisa, o país político está rendido à “competência da Polícia Judiciária” que, por sua vez, em campanha para lavar a péssima imagem que os portugueses têm dela, multiplica-se em palavreado pelas televisões e jornais. Fizeram um feito ao detectar e levar a tribunal o ladrão, Sr. João Rendeiro, que se refugiou num resort de luxo em Durban, África do Sul, para inveja dos senhores jornalistas que dele (hotel) falam com água na boca. Esta maneira bem portuguesa de elogiar aquilo que é dever de todos e de cada um, quero dizer ser competente, célere, independente, não é mais que a exposição da mediocridade de uns e outros. Uma Polícia que necessita de ser elogiada pelo seu trabalho, é uma Polícia frágil, dependente, infantil. Indignam-se também os nossos amáveis jornalistas e comentadores (estes são uma chusma de interesseiros pouco honestos que não merecem crédito), contra o facto de o tratante ter sido fotografado em traje de dormir (a polícia surpreendeu-o às primeiras horas da manhã ainda o homem descansava na tal babel para ricos que os jornalistas gostariam de ter estatuto para a frequentar) e que essa divulgação é um ultraje à sua dignidade. Absolutamente de acordo. Só não aceito é que o mesmo jornalismo não se importe com o pobre diabo que matou, roubou, feriu ou assaltou um banco, o mostrem em condições sempre desprezíveis e pouco humanas. Até aqui se vê que há um Portugal para pobres e outro para ricos, assim como há um jornalismo de abencerragem e outro de feira da ladra. E que dizer do trabalho da Justiça no respeitante aos corruptos que roubam e saqueiam quando em postos públicos ou governamentais? Cala-te, rapaz. Porque não te calas! Quanto ao mais, a ver vamos se sua excelência o embusteiro vem parar com os costados à cadeia portuguesa e quando. Há alguns como ele que já deviam estar atrás das grades há muito tempo e andam por aí a pavonear-se à grande e à francesa, não é verdade? 

         - No artigo de João Miguel Tavares no Público de sábado há uma taralhoquice evidente. Eu gosto do homem, estou quase sempre de acordo com ele, adoro o seu combate, o seu constante desafio do pouco correcto. Todavia, no escrito em que ele fala dos negacionistas tontos e dos aceitacionistas (a palavra é dele) acéfalos, tudo se compreende mas no final tudo se descompreende (vou na sua onda linguística). Sobretudo quando afirma (a propósito das notas da DGS sobre a vacina nas crianças): “Mostrem os estudos, não misturem os números dos 5 aos 11 anos com os dados dos 0 aos 18 e utilizem argumentos inteligíveis. É assim que se mobilizam cidadãos racionais em democracias evoluídas.” É aqui que a porca torce o rabo. Quais são essas democracias evoluídas? Onde se situam? Como se chamam? Isto porque o que eu vejo – e penso que ele se referia a Alemanha, França, Países Baixos – os índices de negacionistas por lá são muito elevados e Portugal, neste aspecto, precisamente, faz figura de país evoluído e conhecedor. (Bem sei que é chato, horrível mesmo, ter de escrever uma crónica obrigatória, quand même!

         - Lá fora há um capacete de chumbo a cobrir a terra de desespero. Aqui dentro o incessante murmúrio do trabalho onde só as palavras se distinguem no silêncio espesso que outras camadas de silêncio organizam na harmonia das horas. São 17 horas e três minutos. Esta hora pertence em exclusivo a este meridiano – estranho mundo onde só a luz dos candeeiros dialogam entre si e as recordações parecem flutuar dentro destes muros.    


 


sábado, dezembro 11, 2021

Sábado, 11.

O carrossel não pára. Deve ser por gostar de girar nele que Costa e os outros socialistas adiam e malbaratam, fazem e desfazem argumentação, contra a lei (as leis) da corrupção. Andamos nisto há anos! E percebe-se porquê: a grande maioria dos criminosos e corruptos está instalada no partido de António Costa antes de José Sócrates. Agora o MP (esse implicador, inventor de cenários, invejoso da riqueza alheia) traz à liça pública mais três (três duma só vez) governantes da era do ex-primeiro ministro e dono disto tudo: Rui Manteigas, ex-administrador das Estradas de Portugal (hoje está como secretário-geral da Associação Portuguesa das Sociedades Concessionárias de Auto-estradas e Pontes com Portagens, vá-se lá saber porquê); Paulo Campos, ex-secretário de Estado das Obras Públicas; Carlos Costa Pina, ex-secretário de Estado do Tesouro e Finanças (hoje administrador executivo da Galp ora toma!). Este pagode está acusado de vários crimes relacionados com as célebres PPP rodoviárias, só Paulo Campos foi indiciado por dez crimes; Costa Pina idem e Manteigas não foge ao resto. Quem escapou (por agora, penso) foi Mário Lino (o homem do jamais e do deserto onde eu vivo), assim como o camarada António Mendonça. Bref. 

         - É simplesmente admirável de lucidez e sagesse a entrevista do major-general do Exército Carlos Branco. Ele foi dos últimos a deixar o Afeganistão onde trabalhou com o Governo real e o quimérico americano. Grande conhecedor das condições sócio-políticas-tribais, retrata com sabedoria e equilíbrio o desastre político e humano que os americanos deixaram ao rasparem-se do modo que conhecemos do país. Vale a pena ler a entrevista no Público (já agora também o livro que o militar acaba de editar) para se ter um ideia precisa do que foi, é e será o Afeganistão dos nossos dias. Eu disse aqui que seria vantajoso ouvir e dialogar com a nova geração de talibãs, pois encontro-me com o livro e a entrevista com o oficial do Exército que pensa da mesma maneira. Para avivar o interesse, aqui deixo parte de uma resposta à pergunta (toda e entrevista do jornalista Ivo Neto é muito interessante e bem pensada) sobre a comunicação entre as partes.  "(...) As forças internacionais, nomeadamente, os Estados Unidos, preocuparam-se sobretudo com as suas opiniões públicas. No Afeganistão cometeram uma série de erros que as distanciou da população.” População do país profundo onde os novos talibãs fizeram trabalho de casa muito competente, aprendendo a dialogar com os povos falantes pasto e dari. Esse trabalho árduo e obstinado, levou à vitória da nova geração de líderes afegãos. 

         - Esta frase de António Barreto hoje no Público: “Todos os fenómenos de racismo e de xenofobia recebem um impulso da imigração descontrolada.” 

         - Depois de duas horas de leitura, fui cortar os rebentos dos sobreiros que estão por todo o lado. Andei nisto perto de duas horas e depois fui queimar os resíduos do verão. Fiquei como se tivesse levado uma sova, apesar da cinta elástica. Ossos do ofício. 

         - O meu sobrinho, do alto da sua juventude, pensava que o corona só apreciava corpos de velhos, afinal também adora os formosos de vinte anos. 

         - A Piedade veio aí, satisfeita. A marmanja que vivia lá em casa à sua conta, ao princípio da noite, foi devolvida à procedência pelo neto. Quando este voltou, acusou-a de ser a responsável pela separação. Casa-te, Helder, porque não te casas? 


sexta-feira, dezembro 10, 2021

Sexta, 10.

Um pouco inopinadamente, eis-me instalado no esforço quotidiano do trabalho no romance. Espero que seja consistente e não me atrapalhe o sistema nervoso que introduz pressa no pensamento e displicência na escrita. A subordinação é a força motora de todo o sistema, da criatividade ou da inspiração, e vem em linha directa das horas necessárias ao sonho enquanto filão competitivo com a sornice. 

         - Fui almoçar com Fr. Hélcio num restaurante perto do apartamento onde vive para os lados da Avenida da Igreja. Ágape onde não se falou dos seus pobres, de religião, apenas esteve à mesa a boa disposição, a galhofa e a risada do principio ao fim – e assim foi melhor. 

         - No metro que me levou depois aos CTT no Corte Inglês, entrou um avantajado indiano vestido à maneira turbante incluído. Na frente tinha dois indianos também. O recém-chegado, vem encher com o seu físico enorme a carruagem já de si bastante repleta. Como ele se sentou a meu lado, temi pela aproximação. Mas de repente, ele saca da mochila um livro. Eu digo mentalmente: “Bom, o homem lê deve ser informado.” Daí a momentos, vejo-o tirar do bolso uma espécie de walkman e põe-se a dizer qualquer coisa na sua língua que os meus ouvidos reconhecem a palavra “central”. Os compatriotas olharam-no de soslaio. Eu aproveito e dou uma olhada ao livro que ele lê com atenção - era o Corão e eu murmurei para mim: “Mantenho o que disse.” 


quinta-feira, dezembro 09, 2021

Quinta, 9.

Rubrico este dia como o primeiro de tantos outros que se alongarão por quantos forem necessários à consumação do que hoje aconteceu: o súbito começo do romance. E para me comprometer a encher as manhãs de cintilantes avalanches de palavras, aqui ficam os dois primeiros parágrafos da história A Camisa de Linho (título provisório). 

       Ao fundo da rua sem saída, do lado esquerdo de quem entra pela Avenida Isabel da Nóbrega, fica a vivenda dos Boavida. No portão, do mesmo lado, estava um azulejo pintado à mão com o número 13, oferta de Rodrigues Santa Clara, velho amigo dos donos da casa e logo abaixo a campainha disfarçada pela folhagem que emoldurava a entrada. 

         Visto da avenida, o beco oferecia ao passante uma mancha plena de mistério, lugar quedo, brumoso quase sempre, alheio ao ruído dos carros que atravessavam a larga rua e praticamente não davam por aquele pedaço de chão metido nos fundos de um arruamento ladeado de casas de um piso. Seriam umas quatro vivendas de cada lado, construídas nos tempos difíceis do pós-guerra, tão semelhantes na falta de gosto como na arquitectura minimalista, que poderia dizer-se foram erguidas para o essencial da vida humana, resumido em meia-dúzia de horas de sono. 


terça-feira, dezembro 07, 2021

Terça, 7.

A legalização da Canábis para uso pessoal, só vai ser efectuada na próxima legislatura. Pois eu adiantei-me e comprei para experimentar (como sabem sou curioso) o produto em Paris na forma líquida, que se adquire em qualquer farmácia, sem receita médica, a três preços: 10, 30, 40 euros. Aplica-se na língua. 

         - Faço, só, tudo aquilo que outros fazem acompanhados, mas com mais liberdade e disposição ao tempo sem limite e obstruções de nenhuma ordem. 

         - Medidas duras de combate à Covid-19 por todo o lado. Em França com 50 mil casos/dia as discotecas e boîtes vão fechar por 4 semanas; em Inglaterra também houve mais de 50 mil só ontem.  

         - O Papa Francisco é a única voz diferente neste mundo governado por oportunistas. É ele sozinho que batalha contra as modas ditas inovadoras e desumanas que se propagam por toda a parte e os políticos sôfregos de poder aprovam.  

         - Continuo Green, página 600. São 10 horas e cinquenta e cinco minutos. Daqui a nada almoço e dou um salto a Lisboa. Tempo brumoso. 

segunda-feira, dezembro 06, 2021

Segunda, 6.

Este ano que em breve se despede, deixa-me o amargo de constatar que perdi o entusiasmo criativo. Foi nisso que pensei com dor ontem ao serão, diante do fogo que ardia entusiasmado na lareira. Não sei quanto tempo fiquei a interrogar a chama e o silêncio que em torno da sala pesava como uma ausência querida que tinha falecido. Tenho praticamente o primeiro capítulo de O Matricida concluído, mas não ouso prosseguir por achar que a tarefa é hercúlea para um fraco romancista. A complexidade do enredo, toda a trama que o cerca de cariz psicológico, é aventura demasiado para quem resvala ante o sobressalto da tarefa. Vou pois desistir com um peso medonho na consciência por não haver reunido forças e entrega a um trabalho em que acredito e sobre o qual me devia ter dedicado até à última gota do meu sangue. Doze meses passaram em que fui por assim dizer tateando as páginas derramadas de incerteza, titubeadas, exigindo de mim as forças que não possuía, a entrega que o cérebro recusava, o cansaço prostrado diariamente logo na primeira linha, a ânsia de partir para Paris de forma a reconstituir-me, a estender-me numa outra forma de existência constituída do ruído que julgava ser necessário - eu que tanto adoro a solidão -, e tão pouca precisão tenho do movimento enganador em torno do progresso e da vida do comum dos mortais. Mal chegado, percebi que embarcara num engodo - comigo tinha levado o sofrimento solitário que não ousava (nem ouso) contar a ninguém. São pesos indizíveis, códigos secretos cujo enigma permanece secreto mesmo para mim que levo a existência a interrogá-los. Ficava horas infinitas no meu quarto a matutar. A concentração era tal que muitas vezes deixava de ouvir o movimento caseiro que em baixo não parava e com o qual julgava redimir-me da fadiga isolada de todo o ano. Mesmo quando passeava por Saint Germain dès Près ou Saint Michel, era em Semyon que cogitava, na sua infância, só, naquela terra fria dos confins da Rússia e, por momentos, chegava aos meus ouvidos a sua voz melodiosa de jovem a pespontar da infância para a adolescência. Contudo, ó inquietação incontável, nem uma única vez ousei pôr os olhos no manuscrito que tinha comigo! Inacreditável! Tristeza incomensurável! Mistério de dois mundos separados pelo silêncio e a privacidade do seu criador! Daí, com carências urgentes do labor da escrita, atirava-me a este diário como tábua de salvação e prodígio criativo que supunha imenso e também à leitura de Toute Ma Vie que me salvou de me arremessar ao desfiladeiro dos dias de profunda e íntima devassidão, com a hecatombe de imagens e cenas indecentes a impregnarem as minhas noites. Depois, um certo dia, começou a aflorar à minha mente uma história com tal nitidez, que de rompante abri um documento com este título: A Camisa de Seda. Para todo o lado aonde ia, o meu cérebro ia construindo a pouco e pouco pequenos instantes de uma família, com lampejos dolorosos bizarros, coisas diabólicas que são familiares a qualquer lar, e eu passei a anotar no meu iPhonne todos esses filamentos de uma precisão incrível. A file, quando deixei Paris, tinha já duas páginas de apontamentos. Aqui chegado, tentei abraçar os dias que não vivi, entreguei-me ao trabalho (leve) da quinta, fui a Lisboa, estive com amigos, mas qualquer coisa se tinha ausentado e outra tomado o lugar da que partira. Estupefacção. Uma semana e meia depois de ter voltado, mudei o título para Os Forretas – e foi tudo. Ou será tanto que vou ter o próximo ano desassossegado de trabalho? Deus permita.


sábado, dezembro 04, 2021

Sábado, 4. 

Estudos feitos ao acidente que provocou a morte de um empregado das auto-estradas e era conduzido pelo motorista que transportava o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, chegou-se à conclusão que a viatura ia a 160 km/hora!! Ao fim de cinco meses a fugir ao inevitável que era ter-se demitido imediatamente, o ministro do Partido Socialista (ele nunca foi ministro de Portugal), só hoje apresentou a sua demissão. Não o fez por vergonha, dignidade e respeito pelo falecido e sua família, mas porque “não posso permitir (olhem a arrogância) que este aproveitamento político absolutamente intolerável seja utilizado no actual quadro para penalizar a acção do Governo contra o senhor primeiro-ministro ou mesmo (atenção ao realce) contra o Partido Socialista”. O homem sempre foi um desastre e por vezes tinha pena dele porque se prestava ao fartote ridículo do magote jornalístico, ele que era “um simples ocupante” na ocasião e o motorista acusado de homicídio por negligência. Isto de velocidades socialistas não é novo. Quem não se lembra de Mário Soares que também tinha esta conduta monárquica. 

         - Chou Chou está no seu reino. Sem concorrentes que lhe façam frente, talvez venha a ganhar as eleições em França. Talvez. Entretanto, desdobra-se em campo que lhe é favorável: o mundo dos negócios. Está no Golfe Pérsico a negociar a venda de 80 caças Rafale e 12 helicópteros, no montante de 16 mil milhões de euros! A ele que se arvora, quando lhe convém, de protector dos direitos humanos, pôs a sua assinatura nos contratos ao lado da do despótico príncipe herdeiro do emirato do Abu Dhabi, o xeque Mohammed ben Zayed, o mesmo que mandou assassinar – entre outras desumanidades – o jornalista Jamal Khashoggi. Um banqueiro não tem inimigos, um Presidente não tem memória.  

         - Depois de passagem por Chipre, o Papa chegou à Grécia com a preocupação da dignidade e humanidade para com os migrantes. É por eles que se deslocou e pelos princípios sociais e culturais cuja raiz está na Grécia antiga. São dele estas palavras: “Sem Atenas e sem a Grécia, a Europa e o mundo não seriam o que são.” E já agora que o cito, não posso deixar de aludir às palavras de frade capuchinho, Catalamessa: “Não pode ter Deus por pai quem não tem o próximo como irmão.” 

         - Dia tristíssimo. O mundo vegetal hibernou e exibe o ar quedo dependurado das horas que tardam em cobri-lo do escuro da noite. Tantos nestes últimos dias partiram ceifados pela Covid-19. Não conheço esta terra, não pertenço a este chão, não entendo os discursos cavados de enganos, limito-me a balbuciar uma prece, impotente, desfeito, morrendo em cada velho que me voltou as costas sem um adeus. 


quinta-feira, dezembro 02, 2021

Quinta, 2.

Posso talvez dizer que passei por entre as sombras do SARS-COV-2 durante a minha longa estadia em França. Faz uma semana que voltei e, embora não tenha feito uma dura quarentena – fui duas vezes a Lisboa, recebi aqui os amigos – foi suficiente como prevenção. Arrisquei, recusei ficar em casa, fui a todo o lado, passeei nas ruas e entrei em restaurantes e cafés em Paris, Quiberon, Estrasburgo, Cambrai; visitei lugares que não conhecia - Enghien les Bains, Concarneau alguns mais - fui a exposições, igrejas, monumentos, e, ao que tudo indica, a bicheza não quis nada comigo. Graças a Deus e à proteccção (Sua e minha) que não dispensei. 

         - A Piedade esteve aí hoje. Enquanto passava a roupa a ferro, foi conversando. Eu adoro estes instantes tocados pela graça da memória feliz. Não há nada de mais intenso, de mais maravilhoso, de mais íntimo e protector que admirar a Piedade (ou outra mulher) a deslizar o ferro por camisas, lençóis, calças e toda a roupa da semana. Contou-me que a mademoiselle que se juntou ao neto e vive lá em casa, não tem trabalho como o não possui o rapaz (homem feito de 33 anos) e ambos vivem à sua conta. Adverti-a que fosse ao banco saber a quanto monta a soma das suas economias, porque para sustentar o carro e os vícios de ambos, de algum lado vem o dinheiro. Encolheu os ombros, rendida à evidência. Como nunca percebeu nada de extractos bancários, tendo a conta em seu nome e do neto, receio que as suas economias já foram. Pobre avó! Protegeu o neto de uma forma inumana e agora eis a paga. Este tema, quero dizer, do natural amor e empenho dos pais aos filhos e netos, tem muito que se lhe diga; nisto reside as grandes desilusões e apostas que eles fizeram nos seus descendentes. Mas este não é o lugar para dissertações deste tipo.  

         - Há um cenário terrível que se desenrola na fronteira da Ucrânia. O ministro russo dos Negócios Estrangeiros, avisa do “pesadelo de um confronto militar na Ucrânia”. Na base do problema está a natural e sempre ambição de Moscovo pelo ex-território, mas também a estratégia da NATO em alargar fronteiras para leste. Os EUA acusam a Rússia de preparar um “ataque em larga escala à Ucrânia”. Daí a instalação de anti-mísseis como cobertura do começo ou impedimento do conflito. 

         - Tempo frio. Não deixei este espaço, atravessado por vento gélido. Aqui dentro, com a lareira acesa, está-se bem. Li Green e uma dúzia de cartas trocadas entre Gustave Flaubert e George Sand. Uma delícia epistolar recentemente editada em França. 


quarta-feira, dezembro 01, 2021

Quarta, 1 de Dezembro. 

Sabe-se agora pela voz dorida de dois sobreviventes do naufrágio de Calais, que os infelizes gritaram aos ingleses que os viessem salvar; estes responderam-lhes que chamassem os franceses porque estavam em território francês. Neste jogo repugnante morreram 27 seres humanos. 

         - Escrevo estas linhas para memória futura. A TAP que é no dizer dos socialistas a bandeira nacional, teve um resultado negativo de 134,5, segundo informação da empresa dirigida pelo homem de esquerda do partido. Desde o início do ano já perdeu 627,6 milhões de euros. Contudo, João Leão, que teme ter de enfrentar o déspota da companhia, quer entregar mais 170 milhões de compensação pelos estragos da pandemia, tudo só este ano. Já para 2022 o executivo de Costa pretende aplicar mais 990 milhões, elevando deste modo o valor total das ajudas para 3.188 milhões de euros!! De onde vem tanta massa que tanta falta faz aos hospitais, à educação, ao nível de pobreza do país? Dos nossos impostos que são dos maiores da querida UE. Os delírios de uns e outros, são a ruína e a pobreza de milhões.    

         - Outra das hostes do Partido Socialista. Francisco Assis, ex-líder parlamentar do PS que tanto mal disse de António Costa, oferece-se agora para Presidente do Parlamento nestes termos: “Seria uma honra exercer as funções de Presidente da Assembleia da República.” Por quem sois! Entre s.f.f.. Aproveite, afinal, sois donos disto tudo. 

         - Almocei no Corte Inglês (mal). Só me dei conta que hoje era feriado quando tomei o Fertagus quase vazio. No estabelecimento comercial a azáfama para “achatar a curva” já começou. Magotes de gente, cheia de embrulhos, descia e subia as escadas rolantes. A cena do ano passado repete-se e, com ela, a desgraça vem depois. Os não crentes, os agnosticistas, os indiferentes à base que sustem o Natal, aproveitam-se e fazem crescer o negócio que nada tem a ver com a pobreza do Deus-Menino. Que fazer! É nesta impostura que mundo mergulhou.    


terça-feira, novembro 30, 2021

Terça, 30.

Apesar de ter aberto as janelas de par em par, morreu aqui o perfume de mulher ou antes foi por todo o rés-do-chão sepultado. Se me sento nos sofás, se abro o Expresso que o João deixou para trás, se vou da sala de jantar ao salão, sorvo em todos os lugares um aroma feminino que me inebria. Não vou dizer que me é desagradável, digo que me é estranho, pouco natural, não corresponde aos odores que entram do campo e invadem o interior do cheiro das laranjeiras, das árvores e da vinha que abraçam num abraço envolvente e apertado a casa e estão afeitos ao seu morador. 

         - Domingo abeirou-se a Piedade, tristonha. Fi-la sentar-se no salão porque percebi que tinha de a ajudar. Despejou o que havia travado durante a minha ausência e lhe era insuportável reter. O neto, neste último mês, instalou lá em casa uma africana roliça que se diz namorada do rapaz. Com ele dorme e partilha a habitação, num manifesto desprezo pela sua idosa proprietária. A pobre avó que já teve a sua dose com a primeira rapariga que se apressou a ter uma criança e fez a vida insuportável à Piedade e ao pai, vê-se de novo metida num beco sem saída que decerto virá a ser a reiteração da outra que abalou com o filho para a Holanda e a deixou num vale de lágrimas e tormentos. Aconselhei-a a correr com ambos para o andar vazio que possui na Quinta da Torre se quiser viver mais alguns anos. É tão agradável ter uma família nos dias de hoje, que eu choro baba e ranho todas as noites por não ter a casa cheia de amorosas criancinhas... 

         - Ia-me a esquecer ou não estou aclimatizado ainda à minha terra. País giríssimo, albergue de toda a sorte de gente, sobretudo gatunos, corruptos e vendedores de banha da cobra, com rostos onde se perde ou se reinventa a honorabilidade quando enfrentam as televisões, convictos de afirmações concordantes com o seu estatuto de defensores da moral e bons costumes, da ética e da democracia. Penso em Agostinho Branquinho e Marco António. E porque carga me levou a mim ao encontro de duas respeitáveis criaturas que o MP, pensado diferente, acusa de branqueamento de dinheiros indevidos. Ambos foram secretários de Estado da Segurança Social do Governo PSD-CDS, portanto, estimáveis servidores da nação, naturalmente, sem contas em off-shores e conhecimento onde fica o Panamá. Que embirração esta do Ministério Público! 

         - O Chega adoptou a máxima salazarista: Deus, Pátria, Família e... Trabalho. Bom. Eu como os meus leitores decerto já se deram conta, não dou qualquer espécie de crédito ao partido como não concedo às damas do BE. O homem que dirige o Chega, é boçal, incongruente, não apresenta bases sólidas, políticas e sociais; falta-lhe o mínimo de ética e conhecimento para um dia gerir o país.  É arruaceiro, português de berço coxo, não merece uma linha que os jornais lhe dedicam porque têm de vender papel e o quanto pior melhor na linha do jornalismo dos nossos dias.  

         - A 8 de Agosto de 1943, Julien Green anota no seu diário a mais surpreendente e trágica definição da II Grande Guerra: “Un enfant allemand, réfugié de Hambourg, arrive à la frontière danoise après l´effroyable bombardement de cette ville par la RAF. L´enfant a douze ans. Il porte deux sacs que les douaniers lui font ouvrir; le premier contient les lapins du petit garçon: le second contient le corps de son frère âgé de deux ans.” (pag. 479 Toute Ma Vie, Bouquins) Fechei o livro incapaz de conter as lágrimas e a revolta que me tomou; adormeci muito tarde e no dia seguinte ainda carregava o peso desta imagem. A todos os que pensam fazer a guerra, deviam ser enviadas estas linhas. 


segunda-feira, novembro 29, 2021

Segunda, 29.

António Costa tem razão ao enfrentar as companhias aéreas com mão de ferro e multas de 20 mil euros por passageiro não testado por Covid. Eu sou testemunha desse crime em tempo pandémico. Ao deixar Paris, ninguém me pediu no aeroporto o certificado de vacinação. 

         - Bom. Como se previa está já aí um irmãozinho da besta inicial que tomou o nome de Ómicron – e com ele a baralhação instalou-se. Novas medidas de confinamento e impacto contra a quinta vaga estão em curso a partir do próximo dia 1 de Dezembro. Pode-se dizer que o Certificado Covid-19 passou para segundo plano ou não é suficiente por si só para desafiar as actividades económicas que sempre foram mais importantes que a vida humana; e vai daí a ele junta-se o teste assim e assado. A humanidade assiste à mordedura com espanto e estupefacção. E a coisa não é para menos. Vários países fecharam-se, literalmente, ao mundo; outros obrigaram os seus cidadãos a confinar sem restrições, todos temem o parente recém-chegado que ameaça ser mais potente que o seu primogénito chinês. Em Portugal a coisa bate forte. Ontem mais 2.897 novos casos e 12 mortes. Globalmente, desde o início da peste, foram infectados 1.139.810 e faleceram 18.405 pessoas.  

         - Registo com prazer que o bluff não ganhou as eleições no seu partido; e anoto com repugnância a atitude dos chamados “barões”, pensando que tinham nele o seu guia económico-financeiro, logo se lhe colaram de olhos revirados a somar empreendimentos de toda a ordem.

         - Sábado os amigos só daqui saíram pelas 10 da noite, expugnados na torrente de conversas a bâtons rompus. À roda da mesa e depois no salão, a temperatura aconchegante da casa ajudando, o calor dos temas arpoando, foi mais uma vez Corregedor que liderou com a canga dos factos políticos de que não tenho nenhuma paciência nem interesse em entrar. Por sobre todas as divergências, imperou a estima e amizade – muitíssimo mais importantes que todas as ideologias políticas. Carmo Pólvora ofereceu-me um magnífico livro ilustrado com a sua pintura ímpar que não me canso de folhear. 


sábado, novembro 27, 2021

Sábado, 27.

Assim que cheguei precipitei-me para a Faculdade de Ciências a fim de me ser administrada a terceira dose da vacina contra a Covid-19. Mais uma vez serviço impecável, pessoal dedicado, ordem exemplar. Fui depois ao lado à CGD depositar o cheque que a casa a quem vendi a peça de ouro, em Paris, me passou. Esqueci-me que estava em Portugal onde a ganância não tem limites e surpreendi-me por ser informado que para ter a importância na conta (daqui a 20 dias!), teria de pagar 17 euros!! “É normal” diz a funcionária. “Hoje – respondo eu – porque antes não era.” De seguida fiz o trajecto até ao Rossio a pé, como se os quilómetros percorridos em Paris não me pesassem nas pernas, passando pelas ruas do meu passado quotidiano, hoje uma tristeza novo-rico de asco e enfado. Muitos dos restaurantes e casas comerciais fecharam e revividos exibem na lapela da porta nomes estrangeirados que são autênticos atentados à nossa língua, empobrecida pelo alfabetismo primário, que conta apenas para os números porque a bandeira nacional é a TAP. A Pavilhão Chinês não o vi, em frente o Faz Figura está ainda a funcionar, mais adiante o Solar dos Vinhos desapareceu, os antiquários tradicionais naquela artéria também. O que se instalou concorre para a nossa desgraçada, somos comerciantes necessitados de pouco saber e muita gula pelo dinheiro fácil na mão. Descendo o Chiado, hoje uma recordação do passado, onde o turismo de massa se pavoneia como se fosse senhor de tudo, olho-o empobrecido, oferecendo a imagem de país subdesenvolvido e pacóvio, como acontecia no séc. XIX, de braços abertos a tudo o que é estrangeiro e cuida ser esse o rumo para o desenvolvimento económico e cultural. 

         - Aquela da mãozinha marota do Francis outro dia na Comédie Française, foi puro engano. Só esta manhã ao telefone soube, quando ele me explica que é assim que as coisas começam no camarote com o petit oiseau...

         - Estou à espera da Marília e do João acompanhados da Carmo Pólvora convidados para uma raclette. Deviam ter chegado às 13,20, mas mais uma vez a taralhouca da Carmo trocou-lhes as voltas. Devem chegar - se chegarem - pelas 14,20. Eu, entretanto, perdido de fome, ataquei no combustível. 

         - Tenho a casa bem aquecida não vão os convidados já com alguns anos em cima derrapar numa gripe. Lá fora corre um vento frio, desalmado. Todo o conforto do inverno se fechou aqui dentro com as memórias de outros invernos mais a ternura do presente em diálogo. 


sexta-feira, novembro 26, 2021

Sexta, 26. 

Logo que regressei uma catrefa de problemas caseiros me esperavam. Nem tempo tive para percorrer a casa, respirar a serenidade que me pareceu mais densa, cumprimentar os meus amigos que nas estantes me aguardam com carinho, olhar os espaços limpos e perfumados pela Piedade com a ajuda da cunhada, sorver o cheiro da cera nos soalhos e tijoleiras, abrir as janelas e espreitar o campo adormecido ao sol de inverno, pôr os relógios em andamento, acender as lareiras, desfazer a mala e arrumar os novos livros, todos estes gestos habitualmente entusiasmantes, foram adiados para acudir ao essencial: pôr o carro a funcionar (ficou sem bateria), arranjar quem venha repor a água (houve uma ruptura à saída do balão), como me alimentar (não tinha nada no frigorifico).   

         - E o meu país como o encontrei eu? Igual a si mesmo, quero dizer, a brincar à justiça, à governação, à estabilidade, ao progresso, à economia e passo. 

         - Vejamos: o futebol continua a dirigir não só o país, mas sobretudo os portugueses. Os corruptos que o tomaram de assalto, têm uma qualidade que é também um defeito: fazer trabalhar os tribunais e seus agentes, mas estes encobrem na dobra das leis os criminosos. Assim que liguei a televisão, lá estavam os mesmos a jogar ao esconde-escondes : os Pinto da Costa, os Filipe Vieira, os Deco e por aí adiante. 

         - Alimentados pelos energúmenos e patetas que os endeusam. Uns e outros, tendo desembarcado em Lisboa para seguir fanaticamente os seus ídolos, semearam a desordem e o pânico no Bairro Alto. A polícia foi agredida pelas bestas inglesas, cadeiras, garrafas, e outras peças de restauração voaram, vários lisboetas feridos, a  noite foi coberta do clamor selvagem desta gente lôbrega.  

         - Morreram pelo menos 27 migrantes nas águas do Canal da Mancha. Calais está a transformar-se num memorial que condena em primeiro lugar os políticos, descreve a sua indiferença ante a tragédia ou antes as tragédias que ali acontecem, o número de mortos parece não ter fim. Todos lamentam hipocritamente estas mortes, mas no fundo é a indiferença que actua na retaguarda. Pergunto-me muitas vezes como seria uma guerra nesta altura, com os políticos actuais. Os nossos já esqueceram os seus concidadãos que passaram toda a sorte de perigos e privações durante a Segunda Grande Guerra e depois para fugir à fome, as noites de frio e medo, fome e mágoas pelas montanhas agrestes calcorreadas a pés descalços. 

         - Deixei Paris com 548 páginas lidas: 114 de Todo Es Nada e as restantes do Journal Intégral (vol. 2) de Julien Green. Nada mau, atendendo ao muito movimento durante o mês e meio de estadia em  França. 


quarta-feira, novembro 24, 2021

Quarta,24. 

Lá fomos já a noite havia descido sobre a cidade, Francis parando pelo caminho para cumprimentar amigos, entrando em cafés, apresentando-me esta e aquele (uma inutilidade social sem interesse nenhum). Chegados à Comédie Française, entrados no vasto hall com a escadaria monumental de uma beleza e brancura imaculada, logo o meu amigo se desdobrou em cumprimentos, uma palavra à direita, outra à esquerda, como dominasse as espectros da corte de Louis XIII. Chegámos com tempo para que Francis me levasse a visitar o edifício. Terminada a visita, sentámo-nos no bar cheio de madames elegantes e homens perfumados. Ofereci-lhe um copo e ele vendo que eu deixei metade não sendo apreciador de tinto fora das refeições, emborcou-o. Seguimos depois para a sua loge, (um compartiment cloisonné) próxima do proscénio, do lado direito onde ele, apagadas as luzes, pensando que estava com o seu petit oiseau, aproveitou para pôr a mão discretamente sobre a minha perna... Como não lhe dei resposta, a coisa ficou por ali e, entretanto, a teia do palco subiu...

O corredor dos notáveis 

O bar da Comédie Française 

A cadeira de Molière 

         - ... para a representação de La Cerisaaie de Tchekhov. Não conhecia a peça e, por isso, limitei-me a prestar atenção ao texto que percebi desde logo ser intimista dando espaço aos actores para se exprimirem dessa forma. O primeiro acto, francamente, achei-o monótono, básico de representação, o palco com imensas personagens que pareciam interrogar-se de um modo pouco convincente. Posso estar a ser injusto, mas esperava mais de uma companhia com o prestígio da Comédie Française. Só os actores mais velhos em cena pareciam agigantar-se, dando ao trabalho do todo a competência e o esplendor que se espera: Florence Viala, Michel Favory, Nicolas Lormeau. A personagem principal, interpretada por Viala, por vezes, caía no exagero. Nota maior para a música original da autoria de Pascal Sangia e também para certas soluções técnicas de cena que resultam muito bem, como por exemplo, o racord entre actos. Quanto ao texto do autor russo, ele é por demais evidente: duas gerações confrontam-se; dois mundos: o passado aristocrático e o anúncio do bolchevismo. A juventude em palco é disso exemplo. Igual a tantos outros jovens que preferem o imediato e não dão valor à memória enquanto processo de criação de identidades e amarração ao passado ali simbolizado pela cerejeira, que deverá ficar no sítio onde nasceu e cresceu e viu crescer a fazer-se alguém uma família inteira – os Lioubov. 

O final de La Cerisaie de Anton Tchekhov

         - Faz frio, Paris vive preocupada com a quinta leva de Covid-19, é por isso tempo de levantar amarras e partir. Não estarei melhor lá do que estive aqui – em verdade, hoje, os problemas de uns são os mesmos de outros. A Europa só oferece de diferente as catedrais, as povoações remotas onde o viver se cinge estreitamente ao humano, talvez igualmente uma certa memória que perdurou através dos tempos apesar do esforço de alguns em a erradicar. Somos hoje uma imensa comunidade de robôs, conduzidos por esquemas sociais e políticos que nos anulam enquanto seres únicos, substituímos Deus pelo dinheiro nojento, somos a imagem de uma decadência que se acentua e não sabe o valor da liberdade enquanto factor de sobrevivência e fraternidade. Temos tudo, mas falta-nos sempre qualquer coisa. Vivemos no lodo do vazio e acreditamos que seremos salvos um dia por um qualquer vendedor de projectos imobiliários ou advogado de causas perdidas. 


segunda-feira, novembro 22, 2021

Segunda, 22. 

Almoçámos em casa da Françoise como é hábito quando estou por cá. Achei-a um pouco desmoralizada consequência da doença que lhe foi diagnosticada há ano e meio. A velhice é sempre triste com ou sem dinheiro. De súbito tudo se altera sem que se faça por isso, como se os anos finais se vingassem e reivindicassem todos os direitos que o tempo da juventude lhes arrebatou.   

         - A Françoise ficou perturbada quando lhe disse que tenho um convite para ir com o Francis à Comédie Française ver a peça La Cerisaie de Tchekhov. Pior ficou quando a informei que o meu amigo possui um pequeno camarote cativo ao ano, gratuito, devido aos bons serviços que prestou à Cultura. A ideia que vou formando é esta: a instituição criada pelo cardeal Richelieu não é acessível ao comum dos mortais. É uma empresa como outra qualquer, inacessível e cara, utilizada pelas grandes empresas que compram centenas de bilhetes para oferecer aos seus clientes e, portanto, o teatro depende delas. O público espera (quando consegue) meses por um lugar. 

         - A noite descia quando atravessámos a cidade. Paris era banhada pelo manto cinza do céu e a chuva caía docemente numa murmuração, os derradeiros reflexos de luz espreitavam ao longe por entre os prédios, o Sena corria num silêncio majestático e profundo, a suas catedrais brilhavam no esplendor do fim de tarde, naquele fio translúcido do tempo aonde chegam os dias exaustos. Fixar este instante de beleza e mistério, retê-lo como quem abraça um tesouro e o guarda no tabernáculo da memória. 


sábado, novembro 20, 2021

Sábado, 20.

O que me surpreende ou nem por isso, é a quantidade de pobres que estão por todo o lado a mendigar porque têm fome: nos transportes públicos, na rua, nas plataformas do metro, à entrada dos supermercados. Muitos são franceses embora o Robert diga o contrário por ignorância ou patriotismo tolo. É verdade que Paris tem centenas de migrantes que vivem na rua em condições cruéis; mas também é visível que muitos nacionais estão ao lado dos infelizes sem pátria nem família. Sempre que algum se me dirige, contribuo com algumas moedas; no meu interior, porém, acumula-se a revolta e a impaciência contra uma sociedade que os devora de indiferença. São heroicos estes nossos irmãos e nem sempre o seu heroísmo tem a ver com miséria e pobreza. Muitos, nos seus países, eram professores, técnicos qualificados, mulheres e homens honrados que deixaram a sua pátria porque o poder instalado deixou medrar a erva ruim da sua conduta governativa sectária, dos seus interesses putrefactos.  

         - Ontem tivemos ao jantar connosco a Michel recomposta do susto do assalto. À roda de uma excelente raclette e de bons vinhos, a noite arrastou-se em conversa solta e temas passageiros, daqueles que não nos dão a volta à cabeça. Hugo bebeu e comeu como se não o fizesse há uma data de meses. Esta manhã, ao pequeno-almoço, Robert comentou comigo o espectáculo da gula do filho da Annie em termos e palavras de grande repulsa, acrescentando que ele aproveita a minha presença para se impor. Hugo antes socialista, mas desde que experimentou o regime capitalista que varre os países asiáticos (ele vive em Taiwan), passou a vender teorias de direita radical com manifesto desprezo pelos pobres e derrotados da vida. De contrário, por imposição do homem da casa, quotidianamente, ele desce do seu quarto no primeiro andar, recolhe o tabuleiro que a mãe lhe prepara, e volta a subir como um monge ou presidiário para comer só na célula. À nossa mesa é que ele não tem permissão de abancar. Quelle vie! Quelle vie! 

         - A Áustria acaba de confinar toda a população. Certamente em breve outros países da cortina da UE farão o mesmo. Falam da quinta onda, mas ninguém nos explica de onde vem esta onda se do Atlântico, se do Pacífico. 

         - Outro dia, a convite do Francis, jantei num restaurante muito frequentado pela elite política e artística próximo da Ópera. Jantar animado de conversas homo que são o seu forte. À mesa estiveram muitos dos conhecidos governantes com quem ele privou de perto,  da política a altos quadros da finança e da economia. Do que ouvi acerca das suas vidas íntimas, daria um longo romance. E quem Sabe?  Francis: “Gosto de conversar contigo porque se pode falar de tudo sem preconceitos.” E eu: “Essa malta com quem te dás – reis e rainhas, Presidentes da República e primeiros-ministros - sabes a razão que os leva a serem teus amigos volvidos tantos anos de teres deixado a diplomacia? - Não. - Têm medo que contes as suas vidinhas de retaguarda.” Riu-se, agradado.  

         - Como se pode travar a expansão do coronavírus, quando as pessoas pela noite fora convivem sem máscara nem distanciamento! Na zona por onde andámos até perto da meia-noite, quase ninguém a usava. Pior ainda. O metro da linha 14, chique e sem ruído, circulava provido de noctívagos. Já a linha 13 que nos trouxe a Saint-Denis, todos os vagões vinham a abarrotar, bafo contra bafo, impressionantemente cheios àquela hora.    


quinta-feira, novembro 18, 2021

Quinta, 18.

Pelas quatro e meia da manhã, senti qualquer coisa de estranho em baixo. Voltei-me na cama e tentei reconciliar o sono de novo, pensando que era a Annie que decidira levantar-se cedo como era costume noutros tempos. É quando estamos a tomar o pequeno-almoço que recebemos a notícia por Hugues: a casa da Michel – nossa vizinha da frente – tinha sido assaltada e outras duas no início da rua também. Estranho assalto de noite! Entraram pela garagem sem fazer estragos. Michel acordou, chamou a polícia e o ladrão, um pobre rapaz imigrante, foi levado pela polícia sem tempo para se abotoar com o quer que fosse. O curioso da história é que na véspera, antes de nos deitarmos, eu alertei o Robert para que trancasse bem a porta porque se alguém entrasse era eu o primeiro a ser maltratado (o meu quarto fica no cimo das escadas, o deles na outra parte da casa e, portanto, deste lado só eu habito de noite). Michel apareceu, nervosa, a pedir ao Robert que fosse com ela à esquadra dar testemunho do facto; este esquivou-se dizendo que isso não servia de nada e só contava para as estatísticas. Eu revoltei-me e argumentei que ele devia corresponder por uma questão de solidariedade entre vizinhos. Annie deu-me razão. Tudo o que desarranja o seu quotidiano trivial, é sem interesse nenhum. 

         - A Annie é uma fonte de preocupações. Há dias que traz uma tosse cavada com expectoração. Faz medo, sobretudo porque não leva o braço nem o lenço à boca e os vírus ficam à mercê dos que estão por perto como foi o caso na viagem de ida e volta a Quiberon e ainda por cima de janelas fechadas. Aqui chegados e depois do esforço que fiz para que tomasse um xarope, Robert levou-a ao médico esta manhã. O meu temor é que fosse covid - e ao que parece o médico pensou o mesmo e ordenou que fizesse o teste. O resultado do PCR chegou pelo telefone: negativo. Ufa! Respirámos todos de alívio. Eu afoito-me à vida, mas levo o coração atado ao desespero. Faço o meu melhor por me proteger, mas nem sempre esta atitude pode ser consentânea com as circunstâncias. 

         - O Diário de Green interessa-me sobremaneira, não só pela sua luta entre a matéria e o espírito, a alma e o corpo como princípios de inter-penetração, ainda como pesquisa de evolução pessoal no tocante à utilização do tempo materializado na vivência que perdura e dá consistência à razão. Aos quarenta anos ele considera-se velho e gasto e, todavia, vai acompanhar todo o século XX e falecer aos 98 anos. Saber como o tempo o arrastou ou como ele se deixou conduzir, é estudo para os próximos volumes de Toute Ma Vie. Je ne vous quitte pas, monsieur Green. 

         - Da massa sensível de que sou feito, esbatem em demora as árvores que nos acompanharam ao longo da viagem até casa. Todas as cores do Outono estavam nos seus dorsos majestosos que ao passarmos pareciam inclinar-se numa vénia a um tempo divertida e imponente. O sol que surgia de quando em vez, reflectia nelas uma animação suplementar, na embriaguez de flaches cintilantes que combinam paletas cromáticas de grande efeito. Seguíamos por um longo corredor vegetal que humaniza a paisagem e aproxima o horizonte toldado de chuva, enquanto no habitáculo a música de Bach alcantilava o espírito para regiões intangíveis de beleza. Depois... depois veio a noite e com ela cada vez mais próxima a grande cidade. As árvores fizeram-se sombras que se agitavam ao vento, um braseiro de luz e ruído na linha do horizonte, vermelha e branca, engolia o silêncio e calara a voz de Johann Sebastian Bach. De repente o vazio. O desamparo. A vastidão da noite.  

         - Dia limpo. Temperatura aceitável. As árvores do parque de la Courneuve que vejo da janela do meu quarto, são estátuas respeitáveis que me olham do fundo dos tempos e espreitam estas páginas como quem pressagia tudo o que escondo de mim. 


quarta-feira, novembro 17, 2021

Quarta, 17.

Há uma tragédia humana que me revolta: a utilização de seres humanos como canhões. É isso que faz o imbecil ditador da Bielorrússia ao dispor cidadãos na fronteira com a Polónia. A migração tem sido e continua a ser a maior vergonha da UE. A única pessoa que se distinguiu pela positiva, foi a senhora Merkel mas largou a governação.   

         - Antes de deixarmos Quiberon, fomos, Robert e eu, dar uma volta de carro pela costa selvagem até Trinité sur Mer. Impressiona a mácula de rochedo agreste, a pique para o mar, onde ninguém se afoita. Todo este mundo escuro, perigoso e belo, é o retrato de uma parte da França sem igual. Quando o mar bate nas rochas, agiganta figuras dantescas que parecem emergir do fundo dos oceanos em ameaça e fúrias demoníacas. Respeitinho é a palavra que o som das ondas emitem obrigando os seres humanos a manter a devida e cautelosa distância. Não há qualquer forma de diálogo, nem a presença das centenas de franceses passeando à sua beira, parece facilitar a aproximação. Em Trinité sentámo-nos a tomar café diante da marina engalanada. É um espectáculo digno de se ver. Tudo ali cheira a dinheiro, a bom gosto, a prosperidade. O próprio sistema que permite aos barcos subirem com a maré, é um achado de engenharia. Só a personagem da foto está a mais. 


         - Regressámos a casa a tempo de almoçarmos e prepararmos a partida com tempo. Pelas 13 e trinta minutos, tudo arrumado, o carro carregado, Annie decidiu que precisava de dormir a sesta. Robert bufou, desesperado, porque não queria chegar a Paris a desoras. Mas conformou-se, os homens conformam-se sempre, espécie de lacaios de libré ao serviço das madames coquettes, irritáveis e caprichosas. Esperámos – Laure, Robert e eu – que Annie se erguesse do seu leito real. Quando julgávamos que íamos sair, ela decide começar a capinar no jardim. Robert tem, enfim, uma reacção e vem juntar-se a nós os dois que, instalados na viatura, aproveitávamos o tempo para ler. “Ela sempre gostou de fazer esperar os outros”, diz o marido fora de si. Pelas três horas, ei-la que se aproxima, senta-se ao lado do companheiro, e ordena-lhe que siga para a marginal porque quer ver o mar antes de deixar Quiberon. Esta afronta é tão banal nos casais que nem se dão conta da falta de dignidade que devem um ao outro. Com o atraso imposto à partida, chegámos a casa passava das nove e meia da noite. Casa-te faz como os outros, Helder. 

         - Por aqui como pelo meu país, o SARS-COV-2 reaparece em força. Fui ao quartier Opéra esta manhã de coração nas mãos. O metro à pinha e as pessoas (muitas) coladas umas às outras, de máscara é verdade, mas de nariz a descoberto. No autocarro que me conduz a casa, a maioria dos passageiros, africanos e árabes, usa a máscara para iludir aquilo que ninguém vê: fiscais. Desde meados do mês passado que vou passando por entre os pingos da chuva sem me molhar. Espero assim continuar e escapar à saudação bárbara da pandemia. 

          - Pelo caminho, como é de uso, faz-se uma refeição ligeira. Esta saiu do habitual, mais rica e original, porque o Robert comprou em Concarneau um opíparo chamado Kouignette. Fazem-no doce e salgado e este que experimentámos é de comer e chorar por mais: foie gras embrulhado numa massa tenra com ervas, como se fosse um petit four ou uma tapa. A loja onde foi comprado, logo à esquerda de quem entra no forte, é por si só uma tentação; um espaço sobre o comprido onde se expõe em mesas corridas toda a sorte de doces e salgados. A variedade é tal, que nem a proprietária me conseguiu dizer quantos exemplares culinários expõe.       

         - Há instantes, no largo em frente à igreja de Notre-Dame de Lorette, uma mulher embrulhada num cobertor com dois filhos de uns dez anos, esmolavam de quem saía ou entrava no templo. A alegria traquina dos dois rapazes era tal, que contagiava todos os  que por ali passavam e outro remédio não tinham que contribuir para que aquela excitação perdurar-se. Os filhos dos ricos morrem de tédio chafurdando na riqueza dos pais; os dos pobres desfraldam os dias em liberdade e beleza provando que não é mais feliz quem possui, mas quem vive do essencial. Há em cada pobre um Poverello de Assis. 

         - A Rússia disparou um míssil de forma a destruir um satélite seu. A América insurgiu-se. Hipocrisia pura. Os EUA já fizeram o mesmo.