Sexta,
28.
Fogos,
fogos e mais fogos. Todo o drama do mundo esvai-se na tristeza dos que foram
atingidos e na cantilena partidária daqueles que se aproveitam para conseguir o
voto do gato morto, do cão vadio, da floresta transformada em cinzas, do logro
que constrói a realidade portuguesa. Hoje, o espectáculo da morte e da
desgraça, é de todos o mais atractivo e aquele que entretém uma sociedade de
sádicos embrutecidos pela televisão.
- Outro dia estive à beira de me
desfazer deste paraíso. Uns franceses amigos de amigos meus, ofereceram 700 mil
euros para deixar o que me custou trinta anos a construir. Sorri, disfarcei e
depois disse que há alguns anos recebi aqui um casal que me ofereceu 800 mil.
Conversa mole, a tentar distrair-me da tentação e evitar que a cavaqueira
ultrapassasse os limites do razoável. Tomando o Porto no terraço, dizem-me os
meus amigos: “a oferta tem a ver com uns amigos nossos que compraram o mês
passado um apartamento no Chiado por 700 mil euros!” Ah! A isto chama o Mágico
progresso.
- O livro de Matrick Modiano, Une jeunesse é um longo calvário de
olhares sobre o manto escorregadio da cidade, Paris. Avançamos de página em
página com o sentimento de que não vamos prosseguir por demasiado circular,
deambulante e girando em torno das personagens que aparentemente não marcam o
texto. Mas depois, há qualquer coisa na construção da narrativa, um toque de
sedução, uma carícia no leitor que nos detém e nos impele a continuar. Dir-se-ia
que são os lugares que a memória não ousa esquecer que dão cor e força ao
romance e as personagens apenas uma forma de humanização do enredo de si
absolutamente feliz e errante. Aliás à imagem do seu criador, tal como o vi num
programa de Bernard Pivot. Há algo de etéreo, de sublime, de simpático até no Nobel
da Literatura.
- Tenho sempre a sensação de tempo
perdido, gasto no vazio dos afazeres quotidianos – contactos, almoços, idas
aqui e acolá – quando não prendo as manhãs ao romance. Necessito
ab-so-lu-ta-men-te de me ausentar, desenvolver a conversa com o juiz
Apostolatos e outras personagens que em torno dele desconstroem o mundo de
atropelos e soberba. Essas horas irreais, longe do bulício da realidade, são sagradas
e constituem os alicerces da minha existência e reforçam os valores de justiça e
ética de que todos os dias me quero aproximar um pouco mais.