sábado, outubro 31, 2015

Sábado 31.
Strasbourg. Cheguei por assim dizer directamente do convento depois de uma noite de oração no Sacré Coeur, em Montmartre, para os braços do meu querido amigo Lionel e da mulher que me receberam simpaticamente. Eu explico. As freiras que tomam conta da basílica e vivem no mosteiro nas traseiras, servindo uma velha tradição que vem praticamente do século XIX, segundo a qual o Senhor exposto no altar teria sempre, noite e dia, alguém em vigília e oração. Para que se cumpra a ideia de Charles de Foucauld, elas alugam um quarto para quantos desejem fazer a experiência religiosa que eu fiz. A mim coube-me a hora entre a meia-noite e a uma da manhã, altura em que desceram dos quartos duas raparigas para me substituir. Mas o tempo de oração começara às nove horas com o ofício religioso cantado pelas irmãs, seguido de missa celebrada por um sacerdote estrangeiro sem a ajuda de qualquer diácono ou subdiácono e perante a igreja plena até à porta. Terminada esta, os fiéis que não possuam autorização de oração nocturna são convidados a abandonar o templo. Nessa altura as luzes fecham-se e fica apenas o altar dourado e a relíquia do Sagrado Coração de Jesus iluminados, o templo na escuridão é de um punhado de crentes que se vai revezando até de madrugada. Regressei à igreja depois de poucas horas de sono às sete da manhã, para novo ofício cantado pelas freiras, seguido de missa, desta feita com as portas abertas a todos os fiéis.  

         - O mais surpreendente para mim, foi a quantidade de participantes à comunhão da missa da noite. Praticamente só eu e mais uns poucos presentes não nos abeirámos do altar para receber a hóstia sagrada. Outra surpresa foi a participação de jovens nas orações da noite. Raparigas e rapazes, entre os 17 e os vinte e cinco, vieram fazer a vigília, sós ou em grupo, muito concentrados, usando uma fé que parecia convincente, não só nos gestos como no respeito devido. Sobretudo, posso afirmar, porque se trata de uma prova dura fisicamente, mas intensa do ponto de vista espiritual, sobrenatural, diria. Exige muita concentração, firmeza de propósitos, crença absoluta, amor a Deus.


         - Paris assemelha-se ao Rio de Janeiro. Outro dia pela manhã os trabalhadores de uma empresa vieram procurar a vizinha de uma vivenda perto para lhe entregar a mala de mão que tinham achado no chão junto à Avenida Romain Rolland. Como eu vinha a chegar com a Annie, falaram connosco. Ficámos nós incumbidos de a entregar quando a víssemos, o que aconteceu ao fim do dia. A infeliz contou-nos que havia sido assaltada pelas dez horas assim que parou o carro a um semáforo. Os assaltantes abriram a porta e sacaram-lhe a mala do banco ao lado da condutora e puseram-se em fuga a pé. Isto na avenida mais frequentada da zona.

quarta-feira, outubro 28, 2015

Quarta, 28.
Pela manhã cedo, subi a Montmartre para reservar uma noite no convento das irmãs que velam pela basílica do Sacré Coeur. Há uma eternidade que não escalava (é este o termo correcto) a colina sagrada dos artistas, não sendo eu um turista. A penúltima foi para jantar em casa de Jean Le Brun que morava no sopé do morro num apartamento confortável; a última com o Eugénio num dia com temperaturas abaixo dos 15 graus. Hoje o sol que reinou magnificente na grande passeata que me levou vadio por todo o lado e terminou no marché aux puces de Clignancourt. Almocei (solitário) no Cabaret o restaurante ainda hoje frequentado por actores, escritores e políticos e que fica na Rue Norvins a dois passos da praça principal. Nas paredes retratos a perto e branco dos artistas de antanho e a cores da plêiade actual. Atmosfera simpática, pessoal solícito, comida a condizer. Bem aconchegado, desci a penates para entrar num dos mais antigos centros comerciais: as galerias Saint-Pierre. Conheci-as há mais de vinte anos com a Annie que lá costumava ir comprar o que lhe fazia falta e não só ela como os decoradores teatrais, actores, encenadores e assim. Um mundo à parte num bairro atapetado de turistas. Não há velha gaiteira ou pobre armada ao fino, que lá não vá adquirir os adornos pessoais ou para casa. O ambiente não evoluiu e o que observei foi a trama densa de um tempo voltado sobre si próprio, remoendo recordações, explorando materiais, dando vida a novas gerações que reclamam os mesmos botões, metros de tafetá, sedas amareladas, chitas, rendas, fechos éclair, pedaços de bombazinas, atoalhados, veludos, popelinas, turcos, damascos, ténues de dance, num imenso patchwork onde nos perdemos, nos rimos, tocamos, admiramos do fundo do espanto o que se vende como as gaiteiras compradoras. Daí o 85 levou-me ao puce em dia de descanso. Procurava um boquinista, mas não o encontrei e estando por lá deambulei pelas ruas em dia de feira cobertas de tendas e passantes, hoje às moscas. Terminei a tarde num bistrot não só para descansar, como para uma cerveja fresca porque a tarde fora de Verão. Como sardinha enlatada, entrei no metro que me devolveu à procedência. O dia estava ganho, a noite era uma incógnita.   
Sacré Coeur ao fundo da vegetação outonal

Piscina de botões galerias Saint-Pierre

O amor louco não atinge só os adultos


         - A vida recompõe-se não para refazer o passado, mas para enfrentar o futuro.

         - Eu não vejo aqui nenhuma cadeia de televisão interromper os noticiários, os programas culturais ou de diversão para encharcar os olhos ou enfiar pela goela abaixo anúncios publicitários na forma de pipocas, como se faz no petit pays onde toda a gente se está marimbando para o espectador, perdão, consumidor.

terça-feira, outubro 27, 2015

Terça, 27.

Elisabeth Louise Vigée Le Brun que uma centena de telas dá a conhecer pela primeira vez em França, começou por ser admirada em Nova Iorque, em 1982, quando os americanos lhe consagraram uma importante exposição. A retrospectiva que o museu dos Champs-Élysées mostra, segue o rasto da artista dos primórdios à forçada deambulação por uma Europa que o século XVIII francês tentou impor em elegância e padrões culturais que se arrastaram até à entrada no século XX. Vigée Le Brun compreendeu cedo que quem dispunha de gosto e de dinheiro era a aristocracia que imperava em quase todos os países europeus e foi aí que desde logo se impôs. Primeiro na corte de Louis XVI e depois na Rússia, Áustria, Itália, Inglaterra. Quando Napoleão toma o poder, ela regressa a Paris e aproxima-se para fazer o retrato de Joséphine Bonaparte como antes havia feito o de Marie Antoinette. Vigée Le Brun, entenda-se, foi uma retratista ao estilo clássico do século que a viu nascer e na senda do pai também pintor que a apoiou. Com perfeito domínio da pintura, controlo da cor, do ambiente de sombras e luz, todas as suas telas mostram uma artista dotada que soube tratar o pormenor com pinças. Contudo, a meu ver falta-lhe aquela ponta de génio, de aproximação ao mundo íntimo, que desarruma os conceitos e impõe o cunho pessoal que faz a diferença. A Parisiense foi, o que hoje se poderia chamar, uma pessoa politicamente correcta. Para manter o trem de vida que foi o seu, cedeu tudo e o mais, transformando a sua galeria de aristocratas num bloco uniforme, sem carácter, enfeitados de plumas, grandes chapéus amazónicos, às vezes um assomo de sensualidade, quase sempre um desfile de vestidos, lantejoulas, boquinhas semelhantes, abertas como uma flor murcha que não atrai os apaixonados... Digamos de outro modo, Vigée Le Brun foi perfeita, mas a arte dois séculos depois veio demonstrar que o ruído ensurdecedor da perfeição é dispensável a caracterização do humano na sua imperfeição.
Marie Antoinette
Josephine Bonaparte

Madame du Barry


Elisabeth Louise Vigée Le Brun











segunda-feira, outubro 26, 2015

Segunda, 26.
Francisco de Assis esta semana ao Paris Match a propósito do fanatismo capitalista: Le capitalisme et le profit ne sont pas diaboliques si on ne les transforme pas en idoles. Si, en revanche, domine l´ambition déchaînée de l´argent, si le bien commun et la dignité des êtres humains passent au deuxième voire au troisième plan, si l´argent et le profit à tout prix deviennet des fétiches qu´on adore, si l´avidité est à la base de notre système social et économique, alors nos sociétés courent à la ruine. Les hommes et la création tout entière ne doivent pas être au service de l´argent: les conséquences de ce qui est en train d´arriver sont sous les yeux de tous!    

         - Ontem grande passeio ao Norte de Paris para uma caminhada na floresta de Senlis sob um Outono suave que vai atapetando o chão de folhas que tombam das árvores altas e majestosas como pérolas que tudo adornam de beleza. Mais tarde, visitámos a vila que na Idade Média foi capital do reino, verdadeira joia do gótico medieval, onde pontua a catedral de Notre-Dame do século XII, com seus vitrais a contar a vida de S. Louis e a nave central de uma altura considerável e um branco imaculado. Em redor, por aqui e por acolá, a harmonia é perfeita, com a sua arquitectura intacta, suas ruelas empedradas, becos e passagens estreitas como se o tempo se tivesse imobilizado e nós fôssemos parte dele no concluiu entre janelas, à hora do entardecer, quando a noite se instala e os rumores de vozes esparsas contam ao passante de hoje o que esconderam ao habitante de então. Felizmente que uma brasserie de um charme tentador abriu suas portas, e nós sentámo-nos junto à lareira onde crepitava um fogo murmuroso para um chá que nos aconchegou num amplexo. A atmosfera fez o resto trazendo-nos sossego, paz e confiança no amanhã – tudo o que viajante busca em lugar nenhum e em todos os lugares.

         - Sobra do rumor do mundo a parcela de infortúnio que atinge um jovem músico detido sem julgamento numa cadeia em Luanda. Luaty Beirão é acusado de querer derrubar dos Santos com as suas letras cantadas ao desafio com o destino. Corajoso, desafia o ditador com uma greve de fome que já dura há mais de um mês, estando nesta altura num estado físico que inspira comiseração. Simplesmente, o tirano, trancado no seu palácio, finge ignorar que a vida de um simples artista corre perigo e prefere que ele morra com a sua guitarra e as suas canções, a sua revolta e a sua juventude. O mundo democrático e civilizado, olha o jovem romântico com veneração e exige justiça. Numa altura em que os povos e as nações voltaram definitivamente costas ao ideal, às ideias e à solidariedade, a coragem de um africano num remoto hospital a oferecer a vida em troca da democracia e da justiça, perturba as mentes daqueles para quem a vida se realiza apenas na luta pela honra que julgam advir da riqueza. “Só é alguém quem possui fortuna”, ouvi eu muitas vezes dizer aos pobres idiotas com quem o destino me permitiu cruzar.


         - Vou-me despachar para o Grand Palais. Tenho a tarde comprometida com uma artista francesa de nome Elisabeth Vigée Le Brun (1755-1842) e talvez depois uma caminhada até ao Arco do Triunfo.

domingo, outubro 25, 2015

Domingo, 25.
A crise sente-se e vê-se por todo o lado e é consequência de roubos e crimes. A todo o momento, surge-nos ao caminho mendicantes, os assaltos são frequentes, o despejo nos passeios e paragens de autocarros de sacos com isto e aquilo, são resultado de se ver com assiduidade gente a arrebanhar deles tudo o pode vir a servir. Sobretudo livros em muito bom estado. Há-os aos montes por aqui e por ali e roupa e cangalhada velha. Uma senhora de bom porte outro dia, em Saint Germain-des-Prés, metia para dentro de um saco uma braçada de livros. Perguntei-lhe se iria ler aquilo tudo e ela respondeu-me que para já os levava, depois se veria. À nossa vizinha da frente, assaltaram-lhe a casa sem que nós tivéssemos dado conta. Estando ausente por uns dias, foi o Robert que tendo a chave foi ver os estragos, eu segui-o. A impressão que tive ao entrar, foi que tinha havido um terramoto. Não houve sítio nenhum da vivenda que não tivesse sido destruído. Tudo para roubar aparentemente dois computadores e uma arma com munições. Os estragos sobraram para umas centenas largas de euros, fora o trauma psicológico que foi terrível.

         - Ainda não tive tempo para dar um salto à Fundação de Pierre Vergé. Mas o que sei pelos livreiros, é que a obra de Green caiu no esquecimento. Pouca ou nenhuma gente se interessa por ela. Há anos, como aqui referi, o filho adoptivo que entretanto faleceu, levou a leilão todos os manuscritos, fotografias, cartas, objectos pessoais do célebre escritor. A imprensa falava num negócio que poderia render entre 2, 2,5 milhões de euros. No final só dois originais foram vendidos. E lembrar-me eu que Julien Green tinha tanto orgulho no seu prestígio e talento e se julgava único!



         - Que tenho lido, escrito, pensado? Nada. A ver se é desta que licenceio um mundo que me escraviza e desorienta.