quarta-feira, maio 31, 2023

Quarta, 31.

A pouco e pouco vou retomando o meu quotidiano: leituras, romance, trabalhos lá fora. Há todavia uma apreensão que subjaz: a Annie. Saí de Paris com o sentimento que não a voltarei a ver e os beijos que trocámos no carro foram a despedida de uma terna e gratificante amizade de quase quarenta anos. Que Deus a conserve, apesar da fragilidade, por mais uns tempos. Troquei com o Robert esta mesma tristeza e ele disse-me que também tem a sensação que tudo se aproxima do fim. 

        - A mim parece-me normal que a Ucrânia tendo sido atacada pela Rússia, tenha direito a fazer o mesmo, quero dizer, a investir sobre o agressor. Porque o que Zelensky tem vindo a fazer há já um ano, é defender-se - sem ganhar nada com isso. 

         - João diz-me que está muito interessado na IA. Coitado. Não deve saber quem é Sam Altman, porque se soubesse compreenderia o alcance da coisa e estaria no primeiro lugar a combatê-la. As teorias do homem, estão em ligação directa com o futuro à moda de Putin, Xi e todos os outros galifões que pretendem reduzir a humanidade a pequenos iscos. 

         - Escrevo estas linhas diante da montanha que ondula de Setúbal a Palmela. Do recorte de toda esta mancha de arvoredo projectado no céu nublado, sai uma paleta de cores que nenhum artista consegue traduzir para a tela. Até porque, quando as sombras se passeiam, introduzem na paisagem a inconstância – a mesma que a vida contém e nós com ela até ao limite do entorpecimento.  

         - Desde que cheguei que não vejo o meu vizinho, mas sofro pela ausência da beleza que o seu crime matou. Felizmente o produto assassino, não passou para o meu lado. Imagino, contudo, a paralisia que a ganância produz numa vida árida, onde não entra um pingo de luz e a misericórdia é palavrão atribuído aos pobres de Cristo. Por isso, não estou a ver o irmão mais velho, mais sensato, a perdoar-lhe um prejuízo desta monta. Ele que possui uma excelente adega na Quinta do Anjo e apostou na associação com irmão que sempre perseguiu o dinheiro fácil. Antes, estes imensos hectares, eram campo de eucaliptos sem qualquer limpeza, uma bomba atómica. 


segunda-feira, maio 29, 2023

Segunda, 29.

Francis, ainda mal cheguei, já me está a telefonar.  Lamenta não nos termos encontrado, não termos ido juntos à Comedie Française ver o Proust, e diz que, dada a sua idade, talvez não nos voltemos a ver. Contesto. Contra-argumenta que trabalha imenso porque aceitou fazer parte de uma comissão aos Jogos Olímpicos; insiste que volte a Paris no próximo ano por essa altura porque tenho entrada gratuita e oficial nas modalidades que quiser. Não me ouve quando lhe digo que estive com uma bronquite que me pegou a Laure e não queria passá-la a ele. De facto, recebi dezenas de apelos telefónicos e não atendi porque não desejava contaminá-lo com a praga que levou tempo a passar.  

         - Só desapareceu quando a Annie e o Robert foram passar quatro dias num rally a norte de Paris. Então, todas as manhãs, abria portas e janelas, no primeiro andar e rés-do-chão, de forma a fazer circular o ar. Aquela gente vive num casulo de vírus, numa atmosfera pesada, malsã, porque não querem perder os tostões que gastam a aquecer a casa. A pobre da Laure já vinha com a doença e no Porto impus-me para que tomasse pelo menos um xarope. Porque para o Robert, nada tem importância e tanto a filha como a mãe, é frequente andarem nos limites porque sua excelência diz que assim é todos os anos e de nada vale tomar fármacos. Mesmo quando é atingido como foi o caso sendo o último a tossir como um desalmado.  

         - Ante o avanço da direita, Sánchez empreende fuga para a frente, e convoca eleições legislativas antecipadas. Pobrecito. Tendo melhorado bastante nestes últimos dois, três anos, pelo menos mais e melhor que o camarada Costa, não chega para travar a direita que está em folguedo por todo o lado. Os povos, fartos das mentiras, dos trocadilhos e da corrupção da esquerda, tentam mudar o rumo da história servindo-se da democracia. Espero que em Espanha como em Portugal, aconteça o que aconteceu em França onde os franceses erradicaram por muitos e largos anos o socialismo. 

         - Enormes dificuldades em retomar o quotidiano. Não é cansaço, é apatia. O rigor que é o meu desnorteia-me, abate-me, neutraliza-me. Se preciso de ritmos certos, também necessito de movimento, reflexão, horas a pensar parado diante do tempo, como se este fosse movido pelos pensamentos e eu o pudesse sustê-lo no intervalo entre dois sentimentos, entre dois suspiros, entre duas recordações.  

         - Precisava de arranjar coragem para narrar o que me aconteceu, em Paris, durante duas semanas seguidas sem folga um só dia. As faltas – como a Igreja diz – foram quotidianas lembrando os meus vinte anos desabridos. Que monstruosa surpresa! Que força da natureza se veio juntar a mim para acordar todos os sentidos, todos os corpos adormecidos no meu corpo, todas as horas voltadas do avesso, num hino à vida pleno da liberdade que só o corpo desbravando o tempo pode oferecer. O passado e o presente estiveram inteiros num hosana inqualificável e maravilhoso, o tempo esteve sempre parado, cercando-me, abençoando os movimentos, os langores, os segredos que eu julgava olvidados. Quebrado de haver estado intensamente com os seres que marcaram o meu destino e abriram nele a luz que ainda hoje me ilumina,  me rendi à noite e puxei o manto das estrelas para cobrir o corpo estafado. 


domingo, maio 28, 2023

Domingo, 28.

Talvez a ganância esteja na origem deste desastre. O facto é quando acordei e abri a janela do quarto, olhei a vinha do meu vizinho antes um tapete de verdura bem cuidado, vejo um drama ecológico de consequências terríveis. Telefonei à Piedade a saber o que se tinha passado e sou informado que o dono da quinta tinha andado a sulfatar e, acrescenta ela, deve-se ter enganado no produto. Seja como for, é um descuido que lhe custou milhares de euros, ele que tanto adora dinheiro, e quando lhe digo que não infeste a vinha com tanto produto químico, me responde que só não o faz com mais frequência porque o ministério não autoriza. Então, teria o Ministério da Agricultura  dado ordem de tratar o vinhedo com o produto que ele utilizou, ou ele o fez à socapa dos valores químicos controlados pelo organismo estatal?   

Antes 

Depois: 250 mil pés de vinha queimados. 

         - Há muito que deixámos de ser um país honrado. Estive um mês afastado disto e o que encontro ao chegar é mais do mesmo: intrigas, ódios, invejas, gritaria de comadres desavindas, mentiras, máfias, corrupção, saloiice, pobreza, miséria moral, enfim, o lodo chavascal do costume. 

         - Há anos que não sentia uma tão grande satisfação em chegar a casa. Assim que pus a chave à porta e avancei até ao salão, fui banhado – é o termo – por uma felicidade pura, presença de algo ou alguém que me esperava. O interior cheirava a cera, a tijoleira brilhava, os livros foram arrumados, as carpetes limpas, e por todo o lado reinava um silêncio acolhedor cobrindo cada movimento, e quando me sentei no sofá e olhei em volta, fui literalmente engolido pela sensação de ter chegado a um mundo irreal onde as sombras se atropelam e irrompem em memórias, qual delas a mais feliz, qual delas a mais real, perenes até ao limite supremo da noite... Este bem-estar é obra da Piedade e decerto do neto, que velaram por mim enquanto estive fora, como velam há quarenta anos, e reconhecido formamos uma unívoca amizade. 

         - O John veio aí desafiar-me para um café. Na volta, pedi-lhe me visse o que se passava com o pequeno aparelho de televisão da cozinha. Rápida olhada para concluir: a pilha pifou (tradução do termo por ele empregado « battery no charge ») ou seja atestado de menoridade da minha parte. Máquinas, com efeito, não querem nada comigo. 

         - Encontro o povo contentíssimo com pouco : a vitória do Benfica. É disto que somos feitos e os políticos chicos-espertos sabem disso. Daí que atrás de cada vitória futebolística, se escondam milhares de adeptos pobres e analfabetos. Estas duas condições, são a arma que só aproveita a classe política.   




sexta-feira, maio 26, 2023

Sexta, 26.

Antes de deixar Paris, fui visitar a bonita e paisible cidade de Beauvais que dista da capital hora e meia de carro. No centro do seu património está a catedral de S. Pedro, com a nave central a atingir 48 metros de altura, no estilo gótico, mas, como dizer, limpo, puro, sem o aparato das figuras que normalmente adornam as igrejas e catedrais da Idade Média. Desde 1225 até ao século XVII, que o velho edifício foi sofrendo derrocadas atrás de derrocadas, logo edificado por cónegos fervorosos e decerto ambiciosos. Uma parte da catedral nunca mais foi reconstruída e o que resta ainda hoje oferece a incerteza que mostram as fotografias. Li não sei onde, que a altura do monumento é a maior do mundo! 



         - Mais tarde, flanámos pelo centro de boa arquitectura, de vastas praças, fachadas imponentes sem serem impositivas, ao rigor haussmanniano, largas, belas, um convite ao olhar que corre o fio das frontarias sóbrias e elegantes, em pedra rosa, onde os automóveis não entram e as esplanadas se perdem de vista. É um prazer atravessar a cidade que parece ter sido erguida em louvor à calma, à doce vida pacata, que enche de timbre cintilante cada semblante, cada recanto, cada espaço ajardinado, cada estátua e o edifício da Mairie impõe-se sólido, majestoso de dignidade no centro da cidade. Como o dia estava mais aberto ali que em Paris, e o sol apesar de fraco lambia ruas e praças, abancámos numa das muitas brasseries para um almoço tranquilo. Pela primeira vez desde que cheguei, pude comer peixe, no caso salmão saboroso a lembrar os dotes culinários franceses de antanho. Como sobremesa (para mim novidade), veio um prato com uma quantidade de doces, pequenos bocados, ao todo talvez seis, que acompanhavam o café.  No final, o Robert, achou a conta demasiado elevada, mas a Annie, como sempre oportuna, rematou: “De qualquer modo sou sempre eu que pago.” 

         - Dali embarquei num avião da EasyJet de regresso a casa. Forma de falar. Em verdade, mercê das qualidades prestigiadoras da companhia, eu e todos os passageiros, transformámo-nos em ovelhas que os senhores britânicos pastoreiam como muito bem entendem. Deste modo, embora no placard a informação fosse que o voo partia a horas, deixaram-nos uma boa meia hora na pista, de pé, ao monte, até que nos deram ordem de caminhar a penates até ao avião. Não contentes, à chegada, ficámos um tempo eterno dentro do avião, até que os autocarros nos viessem buscar ao aeroporto 2 para nos levar ao principal. A ideia de partir daquele minimalista aeroporto, foi do Robert. É certo que eu decidi acompanhá-los à última hora, mas preferia pagar mais cinquenta euros e ser tratado com dignidade. 

         - Dignidade que me faltou à chegada a este triste país. Como o atraso era de hora e meia, decidi meter-me num táxi. Perguntei ao desvairado motorista quanto custava a corrida, ele respondeu entre 30 a 35 euros. Achei razoável e em sintonia com o que costumo desembolsar. No final acabei por pagar 50 euros, porque o suga condutor, optou por atender ao GPS em vez de ao passageiro. A dada altura decidi impor-me sob ameaça de o denunciar à empresa que o emprega. Foi então que a viagem de passeio acabou e eu pude chegar são e salvo ao destino. 

         - A Alemanha acabou de declarar que vai entrar em recessão. Segue-se-lhe o Reino Unido. Portugal, ao que dizem os socialistas, está livre deste calvário e até faz figura de ricaço quando comparado com os demais países do euro. Morde aqui a ver se eu deixo. 


quarta-feira, maio 24, 2023

Quarta, 24.

Fomos de abalada até à floresta de Montmorency que dista de Paris uma boa hora de viagem. É lá que se levanta um monumento interessante que já Charlemagne lhe faz referência. Trata-se de um pavilhão de caça, construído (ou reconstruído) no início do século XIII, mais tarde referenciado como pertencendo a Mathieu II de Montmorency, que chegou até hoje depois de passar por várias e numerosas peripécias e mãos, não escapando no início da Revolução como depósito de armas e sendo agora propriedade autárquica. Por ele e pelo seu majestoso parque, passaram Napoleão Bonaparte, Louis Bonaparte e a rainha Hortense, o seu filho Napoleão III. Mas também homens da cultura como Victor Hugo e Jean-Jacques Rousseau, filósofos, políticos. A particular obra arquitectónica, está cercada por uma vastíssima área florestada, com árvores centenárias, lagos, espaços verdes bem cuidados, onde apetece ficar deixando para trás tudo o que a França tem em horror e se igualha ao que outros países europeus possuem. Tomámos chá num pavilhão ali perto, olhando a paisagem, o dia que mais uma vez acordou tristonho, sem sol, depressivo. No regresso o inferno dos carros a passo de caracol, o dito progresso que as nações traduzem em felicidade, em desenvolvimento, incentivando a criação de seres abéculas, reis que atravessam ruas montados no seu troco de lata.  

         - Terminei o livro do professor espanhol sobre o fim do imperador Adriano. Tanto havia para dizer, tanto há para dizer. Reservarei para outra altura, até porque o livro não será guardado tão depressa. Ficará por perto para que eu releia os sublinhados, relembre Tivoli que visitei na companhia do Simão há um par de anos.  


domingo, maio 21, 2023

Domingo, 21.

Nas minhas deambulações pela cidade, estando ontem sentado numa esplanada dos Champs Élysées, presenciei esta cena delirante: um vendedor de automóveis a tentar transaccionar um Peujeot a um africano. O curioso da história, é que o vendedor era igual aos que se vêem em Lisboa: bem vestido, barriga saliente, as chaves rodando entre os dedos, agressivo e amável, um pouco calvo. Os dois andaram tempos perdidos à roda da viatura, o vendedor argumentando, o negro fotografando tudo com o portátil. A dada altura quer ver o porta-bagagem; o cliente faz entrar um pequeno saco de mão provavelmente para se certificar que tem espaço para ele. Afasta-se, ronda o objecto dos seus sonhos e pede para ver o motor. Não parece perceber nada de mecânica, mas fotografa também o que se esconde sob o capot. Murmuram os dois um longo espaço de minutos, o africano parece não estar convencido, aponta uma amolgadela do lado esquerdo traseiro. Ficam os dois a olhá-la, o vendedor não pára de falar, desaperta e aperta o botão do casaco. O negro, sem dizer palavra, de súbito abandona o carro e segue caminho avenida abaixo. Furioso o vendedor entra no carro já sem casaco e vai no seu encalço. O que se seguiu já não vi porque o trânsito era muito.  

         - Almocei num restaurante que sempre frequento quando venho a Paris. Fica na Place de S. Michel e mudou de gerência. Antes os donos eram dois homens feitos; hoje são dois jovens imaturos. O que antes era francês, hoje é uma salada de coisa nenhuma, caro, atirado ao turista de chinelo. Em face existia a grande livraria Chez Gilbert que ocupava três andares espaçosos. O que vejo hoje é mais um hotel. Os livros foram transportados para o outro lado da rua, vendidos ao desbarato, como material em segunda mão. Foi lá que adquiri um livro de Jean d´Ormesson por... cinquenta cêntimos, outro de Montherlant por três euros, o de António Costa Gomes a um euro!! Assim vai a vida. Livros com centenas de páginas ao desbarato. Como vivem os escritores? 

         - Eu não visito Paris, estou em Paris.  

      - Missa na magnífica basílica de Saint-Denis. Antes café tomado no velho Khédive de tantas memórias, desde logo os anos em que a Annie presidiu à câmara;  os momentos com o Mário saboreados diante da Mairie, o autocarro que arrancava sempre ao sairmos de casa e depois no regresso... Hoje a imensa nave central estava quase cheia, com a curiosidade dos muitos carros carregados de compras à entrada, as crianças que brincavam por entre eles enquanto a missa decorria sem que ninguém se importasse. Dia de sol cheio, pouco quente, mas agradável. Estou à espera dos meus amigos que devem chegar a qualquer momento. Acabou-se a tranquilidade da casa, a solidão benfazeja, a intimidade comigo no grande pátio onde o silencio serpenteia.  


sábado, maio 20, 2023

Sábado, 20.

Não foi só Yourcenar que se ocupou do imperador Publius Aelius Hadrianus, também o filósofo e professor de Letras da universidade de Madrid, António Costa Gomes com um livro que estou a ler com imenso interesse: La Sérénité passionnée. No fim da vida, o imperador retirou-se para a sua propriedade de Tivoli nos arredores de Roma. O livro começa assim, “La nuit du 2 juin était arrivé. Il était épuisé et il avait mal aux reins et au dos.” Adriano, nos últimos instantes de vida é ainda em Antinous que pensa: “Antinoûs faisait avec son corps la même chose que Praxitèle avec un bloc de marbre. Il en extrayait toute la beauté, l´iluminait. Il le transformait en quelque chose de serein, en dehors du temps.” 

         - Entrei pois na casa onde Victor Hugo viveu entre 1832 e 1848, hoje transformada em museu. Há muitos anos que não subia ao primeiro andar do velho edifício e só me recordava do horror da chinesice que embeleza a sala de jantar. De resto, devo confessar, muito pouco me aliciou, o mau-gosto está em todas as divisões e nem a pintura, grosso modo, me convenceu. Apenas a sala consagrada ao pintor Julius Baltazar, ilustrador de obras literárias, me atraiu e me deteve um certo tempo a admirar a sua maestria, também as fotos dos cenários e actores das suas peças de teatro, um ou outro móvel construído pelo grand homme e o jardim onde fiquei algum tempo diante da chávena de café. Tomei de seguida o metro na Bastille depois de ter atravessado parte do Marais hoje uma imensa e contínua esplanada que atravessa ruas e ruas, enche pátios e becos e toma por inteiro todo o bairro.  

Julius Baltazar 

A Place des Vosges vista do segundo andar do Museu Victor Hugo

         - Sempre que entro na Internet, o Público dá-me novidades do meu pobre país. Pouco me interessa e muito menos quando as notícias se referem àquele que tem ar de rufia e se pavoneia nos carros do Estado com motorista como se tivesse ganhado ao euromilhões. Tenho dois amigos que trabalharam ou estiveram perto dele no anterior emprego no ministério que dirigiu e ambos me dizem que o sujeito é de uma mediocridade abissal. Portugal está transformado numa pocilga. 

         - De regresso a casa com a mochila carregada de livros, não esperava o horror que ia viver. Escolhi as quatro e meia da tarde para fugir àquilo que outrora se definia por “hora de ponta”. Tomei o metro em Cluny-Sorbonne e mudei em Duroc para a linha 13. As carruagens já cheias, foram enchendo até que os que seguiam nelas não ficaram com espaço para mover os pés, um braço, narizes de encontro uns aos outros, apertado como nunca estive, sentindo o corpo de um negro imenso, as mamas flácidas de uma indiana, o cheiro do seu suor, o bater desalmado dos seus corações arfantes sem ar. Felizmente trazia máscara, mas não creio que fosse de grande utilidade naquele cenário dantesco. 

         - O Sol continua por aí, mas declinou, arrefeceu, o seu brilho é murcho e intermitente. Vou ter de gramar este clima por mais uma semana. Infelizmente. 


sexta-feira, maio 19, 2023

Sexta, 19.

Ontem passei uma parte do dia no bairro do Marais agora transformado completamente numa enorme zona para piões. Vim a pé desde Châtelet, Hôtel de Ville, rue Rambuteau, Temple, Saint Antoine, e mais à frente Place des Vosges. A manhã não estando quente, transpirava doçura, imponderação, frescura. A dada altura entrei na igreja Notre-Dame des Blancs-Manteaux para admirar os luminosos e excelentes vitrais. Celebrava-se a missa das onze e deixei-me ficar hipnotizado pelos cânticos, as orações, as vozes dos fiéis e dos sacerdotes em número de quatro. Dei-me conta então que a versão do latim nem sempre se fez do mesmo modo e muitas palavras e até expressões são diferentes na tradução francesa e portuguesa. Fiquei até ao fim da missa. Gostei particularmente da preocupação dos celebrantes quando no final do ofício, ficaram um bom momento em silêncio, em introspecção com os fieis. Só então fomos convidados a ir às nossas vidas. Se falo nisto, é para comparar com as missas apressadas, vaidosas, impertinentes do sacerdotal português. As padres que vi, eram humildes, fervorosos, pouco se importando com o que se passava para além do Santo Sacrifício da Missa, centrados na fé, compenetrados no fervor da oração. Não eram profissionais, eram pastores de um rebanho onde cabem todas as raças, pobres e ricas, irmanadas sob o mesmo manto de Jesus Cristo.  

         - Estando perto do restaurante onde costumo ir, desandei uma série de ruas para trás, e fui sentar-me na mesma mesa de há dois anos. Estava tudo na mesma, apenas a esplanada havia crescido, como cresceram – e bem – os preços. Ao célebre “Menu-formule” foi-lhe suprido quase tudo e o que resta tem o mesmo preço de antigamente onde cabia entrada, prato e sobremesa. Isto tratando-se de um restaurante tipicamente francês, porque os grandes cafés, bistrôs e brasseries tradicionais e belíssimos, com as cadeiras de duas cores em palhinha ou cana sintética, entregaram-se a vulgaridade da cozinha dita internacional. Todo o Saint-Michel que hoje atravessei e onde almocei, está convertido em comida barata e rápida: sandes, cerveja, pequenos croquetes. Esta merda que a sociedade democrática criou com as viagens de massa, transfigurou uma cidade que outrora se orgulhava da sua cozinha e não cedia às facilidades das coisas vulgares e baratas. Como esta gente que se desloca como baratas tontas não tem cheta, tiveram que se render a imundície dos produtos maus e cheios de colesterol, molhos e picantes. É disto que estes novos viajantes gostam e a cozinha francesa média e boa rendeu-se.  

         - Há, todavia, um charme onde cabe a placidez da vida. Assim que acabei de almoçar, pedi para me servirem o café na esplanada. Precisava de descansar, de pensar, de olhar quem passava e imaginar as suas vidas, públicas e privadas. Não saí desiludido – oh, não! – o bairro com a sua animação e frequentação de gente sensível, fez-me ficar por mais de uma hora em contacto com um mundo onde os olhares, os sorrisos, as mãos e os trejeitos corporais dialogam connosco, desafiam-nos, interpelam-nos, imploram-nos até... um segundo pleno onde cabe todo o amor que o vazio expulsa. 

         - Falei que o sol finalmente deu um ar de sua graça. Logo as lagartixas francesas se expuseram, descontroladas, ao mavioso suspiro do seu raio. Vou a caminho da casa onde viveu Victor Hugo que a França celebra este ano os seus 120 anos. Não entro hoje; só amanhã se não se importam. 

O jardim da Place des Vosges 



quarta-feira, maio 17, 2023

Quarta, 17. 

Ramsés está no Grande Halle de La Villette. Há muitos anos que não ia por aquela zona de Paris, que sempre achei um pouco inóspita, fria, mineral. Desta vez como não passei do rés-do-chão e a exposição contorna várias salas escuras, não tive acesso aos espaços que antes visitara. Ramsès & l´or des pharaons está centrada em Ramsés II e no seu reino para a eternidade. O Faraó, depois de ter feito a guerra aos Hititas, acaba por casar com uma hitita e como viveu nonagenário, fez 110 filhos de várias outras esposas. Se juntarmos a isto, a capacidade de fazer guerras que chegaram até à Síria e acordos de paz, o grande homem pôde ainda dedicar-se à arte, ao seu Império, à construção da paz duradoura e, sobretudo, ao sentido estético da morte enquanto signo de passagem, testemunho do tempo, dimensão espiritual que perpectua através dos séculos a sua dinastia – a XIX. Com ele começou a erguer-se Tebas, nasceu Abou Simbel,  o tumulo da rainha Nefertari, uma grande parte de Karnac, a coluna de Luxor, necrópoles, santuários. A actividade artística foi notória a tal ponto que ainda hoje os vestígios que restam levantam admiração e impõem-no como o grande deus de um tempo onde só o Faraó era a divindade única e imortal.  Tudo o que vemos de boca aberta em La Villette, permaneceu sob os escombros, sepultado por terramotos, guerras e dilúvios. Graças ao dinamismo dos nossos dias, à paixão de sábios e cientistas, foi possível trazer à superfície a morte carregada do seu mistério, da sua inquietação, como nos fala o Templo de Tebas erigido por Ramsés II. A morte que tudo ilumina. 

O templo de Abou Simbel, na Níbia. 

Faraó Mérenptah, 13 filho de Ramsés II

Túmulo externo se Sennedjem sobre rodas de bois 

Cheahonq II que viveu 100 anos, representado com cabeça de falcão. 

Sarcófago de Ramsés II - a morte como descoberta da vida.  

Todo este mundo tive oportunidade de conhecer in loco. Nesse tempo, o museu do Cairo onde se encontrava o sarcófago de Ramsés, estava muito mal vigiado. Por todo o lado, muita gente roubava a céu aberto, as estruturas museológicas eram frágeis, as necrópoles estavam ao abandono. Era fácil a pilhagem, as peças amontoavam-se em qualquer canto, tudo estava à mercê do visitante vindo dos quatro continentes com o intuito de furtar. Os próprios funcionários dos museus, contribuíam para o desaparecimento de objectos a troco de uns míseros dólares. Felizmente que o Egipto como decerto também a Tunísia onde assisti a vários roubos, estão melhor protegidos e atribuem à sua história e à arte a função ímpar de perpetuação do seu passado. Só não fui a PI-Ramsés porque ainda nada se conhecia de real.  

         - Almocei num modesto restaurante da Cité Floreal, perto dos pobres mais pobres de Saint-Denis. Tomei, contudo, uma mesa equi-distante das mulheres e homens que, na sua generosidade, partilhavam as sandes e o café entre si. Eram na sua maioria maltrapilhos, as luvas rotas na ponta das luvas de malha, elas, os capotes sujos e desleixados, eles. Pelo meio, no centro da sala, imperavam os rufias à moda antiga, mas de portáteis último modelo. Curiosa fauna que não difere em nada daquela outra que aparece por certos lugares em Lisboa.     

         - Ressuscitei! Hosana! Dois acontecimentos contribuíram para isso: o sol inundou, finalmente, a cidade; Annie e Robert partiram para rally na Normandia. Vou ficar, portanto, quatro dias seul, (à portuguesa: sozinho, coitadinho), e espero expulsar desta casa a colónia de vírus que se instalou, abrindo portas e janelas, berrando: vade retro satanás! Être seule pour se retrouver! 


segunda-feira, maio 15, 2023

Segunda, 15.

Queixo-me do tempo, da tristeza de vida que tomou de assalto os meus amigos chegados à idade que reduz a existência a olhar o fim que está perto; só não me queixo, enfim, das horas consagradas ao romance. A página que escrevi ontem e narra a viagem de Ana Boavida com o pai irremediavelmente perdido, carece, talvez, de mais substância, de maior conhecimento da fauna e flora da Ilha Verde. O essencial – a atmosfera, a escapada para a Natureza como as palavras interpostas no silêncio entre pai e filha -  parece-me perfeita. 

         - Tive uma estrondosa e súbita diarreia esta manhã. Felizmente havia chegado a casa à justa de contrário teria sido uma tragédia. Os meus anjos da guarda estiveram atentos. Tinha estado umas duas horas a visitar a exposição Ramsès & L´or des Pharaons de que falarei mais tarde. Assustei-me, mais a mais porque talvez desde a infância que semelhante sintoma não me atingia. Pensei ser devido ao novo xarope que o farmacêutico me havia aconselhado; mas, depois, pensando melhor, como aconteceu a seguir ao almoço (salada mista, lentilhas, duas salchichas pequenas, uma laranja), torturei-me a pensar que tendo sido a Annie a fazê-lo, qualquer coisa ela acrescentou ou as salchichas estavam fora de prazo como é usual, vivo em permanente angústia. Vou à farmácia e sou atendido pelo director no seu gabinete privado. Faço estas e outras perguntas, mas o farmacêutico diz-me que do xarope não foi. Então que pode ter sido? Um vírus ou qualquer coisa que comeu e o organismo por não estar habituado reagiu. “Bom quanto a vírus vivo num viveiro onde os há de todas as espécies e naturezas.” Riu-se, tratando-me como se soubesse quem eu era, ou imaginava saber, isto é, alguém importante. Aconselha-me: “Não faça nada, até amanhã. Deixe que o intestino expulse o que o agride e só daqui a três dias se continuar venha falar comigo. Entretanto, coma arroz, beba coca cola, chá ao pequeno-almoço com uma torrada sem manteiga.” Pareceu-me que o homem sabia do que falava, pois lembrei-me de escutar as mesmas recomendações em minha casa quando era criança. E aqui estou a tossir de tempos a tempos. Nunca desejei chegar a Palmela tão rapidamente. Terei, enfim, encontrado a chinesa covid?  

         - Dia moche, moche, cinzentão, triste, abominável. 


domingo, maio 14, 2023

Domingo, 14.

O fanatismo ideológico venceu no Parlamento sexta-feira passada. A lei da eutanásia foi aprovada por 129 votos a favor e 81 contra, num total de 230 deputados. Uma vergonha que denuncia por si só a leviandade como a esquerda trata um tema fundamental da existência humana. É preciso deixar claro quem  votou contra: o PSD (à excepção de sete dos seus deputados (Adão Silva, António Maló de Abreu, Rosina Ribeiro Pereira, Hugo Carvalho, Mónica Quintela, Sofia Matos, Catarina Rocha Ferreira), assim como quatro deputados do PS (João Azevedo, Cristina Sousa, Joaquim Barreto e Sobrinho Teixeira), Chega e PCP. Honra lhes seja feita. Nas próximas eleições que o povo se lembre destes partidos e deputados e não os delegue ao esquecimento político. Há uma personagem horrorosa e imunda na origem disto tudo: a socialista Isabel Moreira. Foi ela a grande dinamizadora do assassínio futuro. Tenhamos, contudo, esperança nos médicos e enfermeiros que usarão a sua consciência em favor da vida e recusem matar seres humanos como quem despacha frangos. Marcelo Rebelo de Sousa deve ter sofrido ao assinar a sentença de morte; o Papa Francisco diz-se “muito triste”; as queques do BE e os grupelhos de um e meia dúzia de deputados em torno do capelão Rui Tavares, rejubilam. Que miséria! Entregar vidas humanas à sentença de uma escumalha assim, sem ter havido discussão séria nem sondagem popular, nas costas do povo! A diferença de votos, diz tudo sobre a inevitabilidade do referendo sobre a eutanásia. É assunto demasiado sério para ser tomado por um punhado de radicais que, sem conseguirem obter resultados na governação, querem ficar na história deste modo agoirento e sinistro. Mais uma vez se constata que o governo de António Costa, foi o pior de toda a democracia. 

         - Longa caminhada que me trouxe da rue Sèvre-Babylone, Rennes, Saint Germain, até St-Michel. Tudo porque imaginando-me já parisiense, dispensei o plano do metro e actuei como se me fosse familiar uma rede impossível de reter. Bref. Deu, todavia, para perceber que os anos vão acumulando um certo cansaço. Assim, entrei num restaurante japonês já familiar e fiquei por um longo espaço de tempo após o almoço a repousar. Depois fui ao encontro dos livros, saber das novidades. E a primeira constatação, é que os preços subiram desalmadamente, as livrarias estão quase vazias, o entusiasmo doutros tempos esmoreceu. Como procurava a obra de Gustave Flaubert, que quero ler na íntegra, foi-me possível adquirir alguma coisa a preços razoáveis. 

         - Sentado um pouco mais tarde numa esplanada, pude observar a foule forrada como se fosse Inverno cerrado. Da juventude aos velhos, as roupas quentes e confortáveis, permanecem. Ainda por cima continua a chover, como se este clima desgraçado fosse amigo da saúde e imperasse na forma de sustentação da vida saudável. Muita coisa fechou a quando da covid, e o que resta tem ainda na fachada a marca da chaga chinesa insuportável e dolorosa. As suas feridas permanecem numa certa forma de distanciamento, de rejeição do outro, em espaços públicos e privados. Se as esplanadas estão cheias, é talvez porque foram a escapadela para um quotidiano envenenado, que encontrou ao ar livre a capacidade de resistência a um período sinistro, à persecução de um estilo de vida onde o relacionamento se fazia atravessando os fantasmas que se imiscuíam nas relações humanas. Eu e poucos exagerados, continuamos a usar a máscara no metro e autocarros bondés

         - Na vinda atravessando grandes extensões de vinhedo a perder de vista até Valladolid visitámos Burgos e a sua catedral. Com imensas dificuldades devido à moda autárquica que deixou de pensar nos velhos e nas pessoas que se deslocam em cadeira de rodas. Condenou-os ao isolamento, à tristeza em suas casas. A moda de fechar os espaços históricos aos automóveis sem pensar naqueles que também têm direito a conhecê-los, é desumana. No caso de Burgos, a distância entre o recinto para piões e as acessibilidades ao monumento é tal que todos desistem. Contudo, a cidade pelo vi é essencialmente universitária, deslumbrante. Grandes espaços verdes, o rio que banha uma grande parte do campus, um certo ar flamejante de vida.  


sábado, maio 13, 2023

Sábado, 13.

Quis oferecer um almoço aos meus amigos e pedi-lhes que escolhessem o restaurante. Uma calamidade! Caro e banal, com vários desastres pelo meio, como a troca de pedidos, os pratos mal apresentados, as sobremesas que vieram trocadas, um café caiu-me sobre as calças, e no final a conta tinha quase vinte euros a mais o que me levou a reclamar. Com o suplemento de o interior não estar aquecido, o frio ser desconfortável, num dia que não parou de chover, não houve um lampejo de sol, e a atmosfera ser de inverno cerrado.

         - A Michelle veio cá a casa jantar. Forma de os meus amigos lhe agradecerem o empréstimo da sua casa de campo, na zona de Land, em Biscarrosse. Passámos lá uma noite, quando descemos de Salamanca pela fronteira de Irun-Handaia. A moradia fica, por assim dizer, ao fundo da Land, um vastíssimo território coberto de pinheiros e outra florestação densa, e dá para o lago Parentis. A paisagem é admirável, serena, perigosa no Verão devido aos incêndios, e integra um conjunto de outras vivendas com características típicas de construção francesa. A Michelle deixou-me o seu quarto onde dormi a sono profundo depois da acumulação de estrada que já levava. Sobre o seu interior, não me pronuncio por agradecimento à sua proprietária. Sempre direi, todavia, que nada tem a ver comigo.  

         - Badalada ontem pela zona desumana de La Défence para me abastecer dos produtos naturais que uma célebre para-farmácia possui por preços abordáveis. O problema é o frio que não nos larga e para quem como eu veio de longas semanas de temperaturas altas, enfiar-me neste clima, é paralisar-me. O Robert disse-me hoje que não fora a minha chegada, a chauffage não estaria ligada. Forretice. Porque a Annie, no seu estado de saúde e idade, não deve ser submetida a este desconforto. Mas aqui é a pobreza que impera. Tudo é racionado, da comida à energia, da saúde à Internet. Por exemplo, quando almoçávamos, de súbito ele levanta-se. Pergunto que se passa, “o tempo grátis do parque de estacionamento está a terminar e se continuo tenho que pagar dois euros”, daí que saindo e voltando a entrar ficava com mais hora e meia gratuita. Outra: a mulher para se manter minimamente lúcida (sempre por breves instantes), tem precisão de café. Como tínhamos acabado de beber cada um o seu, eu chamei o empregado e pedi mais uma bica. Diz Robert: “Isso fica muito caro. Ela toma em casa.” Respondi, fulo: “Não fico mais pobre nem mais rico, não te inquietes.”  

         - Por falar em Annie. Ela celebrou os seus 92 anos, dia cinco, em Palmela. Mandei fazer um bolo de aniversário numa pastelaria da Quinta do Anjo e festejámos com dignidade o dia. Forma de falar. Na verdade o seu estado é já vegetativo, uma mimosa alface, que leva os dias a dormitar. Como ficou surda seguindo o marido, é problemático falar com os dois sem ser aos berros o que me cansa sobretudo no interior do carro em viagem. Mas admiro-a e tenho por ela uma profunda amizade e reconhecimento por aquilo que me deu, trocámos, vivemos juntos. É uma mulher corajosa, poucos como ela arriscavam um percurso de dias, com calor insuportável, através de três países. Quando não possui a cadeira de rodas, desloca-se com dois bastões daqueles que o esquiadores usam no desporto. Faz três passos e pára, cansada. O vírus da filha também entrou nela. Disse ao marido que passasse numa farmácia a comprar o necessário, concordou mas não o fez. É baldas, não quer gastar dinheiro, afirmando que “aquilo passa”. A Annie perdeu a memória e a que lhe resta dura uns minutos. Daí que esteja sempre a perguntar onde estamos, onde eu estou estando na sua frente, etc.. Pobre amiga, ou me engano muito ou é a derradeira vez que a vejo viva. Ela não é crente, eu sou. Digo-lhe que peço a Deus por ela, comove-se e aperta-me a mão: “Oh, Helderrrre! 

         - A nota sinistra que agitou por estes dias a França: a ameaça de morte do Presidente da Câmara Saint-Brevin-les-Pins (Loire-Atlantique). O autarca, Yannick Morez, que pediu a demissão depois de lhe terem incendiado dois carros e a sua casa, está no centro da fúria da extra-direita que se mostra contra o acolhimento e asilo político de imigrantes. Cada vez mais me parece que caminhamos para uma qualquer forma de ditadura, direita ou esquerda; temos os dias contados se não soubermos defender a democracia pondo de parte os interesses mesquinhos partidários, a arrogância, a extrema ganância pelos negócios, a noção de que o valor comum interessa a todos sem excepção. 

         - Ontem assisti, emocionado, por Stream em directo da Basílica de Fátima, à cerimónia da oração do Terço. As imagens que chegavam ao meu computador, eram magníficas, ampliando a beleza de uma noite consagrada a Maria. Muito teria a dizer sobre isso, mas de cada vez que começo fico mudo, as palavras não me saem, como se o que eu devia contar ficasse mergulhado no segredo que guardo desde 2010, quando estive ajoelhado na Capelinha das Aparições apenas uns escassos dez minutos.  


sexta-feira, maio 12, 2023

Sexta, 12.

Pedi ao Robert me acompanhasse rue Vivienne, no centro de Paris, para me servi de guarda-costas. Com efeito, desfiz-me hoje de mais uma joia de família, traduzida em 1400 euros. Ninguém imagina a satisfação que isto me causa. Partir sem nada, sem deixar rasto de valor algum, salvo o da amizade, do convívio, das acções que levaram aos outros conforto e paz. O homem que nos recebeu, encontrámo-lo na rua, à porta de seu modesto estabelecimento. Era uma personagem de romance e foi por isso que lhe passei o bijoux em ouro para as mãos. Judeu, baixo, redondo de corpo, olho perspicaz, logo nos fez entrar no seu escritório minúsculo, onde arrumou as grandes pernas do meu amigo, mais o corpo sedutor deste que aqui anota estas impressões e trancou a porta à chave. Como lhe disse que era português, falou de Belmonte sem que algum dia lá tivesse ido. Eu conheço a terra e entrei numa conversa que o animou. De cada vez que eu utilizava a palavra judeu, ele rectificava para israelita, mas sem censura ou azedume. Depois fez pela vida, propôs um preço, observou a peça com os grandes óculos de aros negros, redondos, que pareciam os olhos de águia. Vendo-me hesitante, diz-me que ficam a seu cargo os impostos e mais tarde esta impressionante razão pela qual lhe vendi a peça: pagava-me em dinheiro. (Lembrei-me do seu colega, uns quantos metros adiante, a quem há dois anos vendi três libras de ouro e tive que peregrinar seis meses para que o dinheiro entrasse na minha conta.) Arrumado o assunto, deixou-nos por breves instantes para regressar com um maço de notas de vinte euros que contou na nossa frente. A dada altura engana-se a meu favor em cem euros. Digo-lhe que não quero o que não me é devido, e ele voltando a calcular a soma, satisfeito, diz-me que tenho razão e passa-me para as mãos o maço de vinte euros. No final, perguntou-me se não tenho mais nada para vender; disse-lhe que sim mas para a próxima. Estendeu-me o cartão de visita, explicando-me que não devo em caso algum telefonar-lhe, se precisar o procure no seu escritório. 

         - Apesar desta esgotante viagem, há uma nota que sobreleva de tudo e mais alguma coisa: o ritmo quase diário no romance. Não houve um único dia que não tivesse juntado umas linhas e, às vezes, uma página inteira. 

         - O frio e a chuva continuam. Não estou melhor da tosse e tenho estados de tremura. No fundo de mim, estende-se a revolta contra o Robert que, não obstante os meus avisos, aligeirou a dimensão sofredora da Laure. Esta, sendo inepta mental, não controla as emoções, os estados de alma, a simples actividade do dia-a-dia. Vive num mundo só dela, fala com fantasmas à nossa frente, gesticula, tem laivos de loucura, apaixona-se por grandes cantores franceses e americanos, mas escolhe-os mal – são todos homossexuais. Sem falar nos desastres fisiológicos, na incontinência, como fazer tudo sem prevenir em qualquer lado e deixar um rasto nauseabundo. Confesso que não esperava encontrar este estado de degradação na mãe e filha. Se soubesse nunca teria aceitado recebê-los e a grande viagem que se seguiu foi extremamente penosa para mim. E para Robert que vive com este drama quotidiano.  

         - Ia-me a esquecer de Salamanca. Passámos um dia inteiro e uma noite, por proposta minha, saudoso de admirar a beleza da Plaza Mayor. Decorria a Feira do Livro e a majestosa arquitectura em estilo barroco, quando as luzes se acenderam estando nós a jantar num dos muitos restaurantes que a cercam, ouviu-se o ribombar de palmas que saudavam o acontecimento. Porque é disso que trata. É na realidade um acontecimento, um fascínio intraduzível, poder olhar aquela harmonia sob o céu azul de uma noite quente, concebida pelos arquitetos Alberto e Nicolás Churriguera. O génio castelhano está inteiro na pedra de granito e nos medalhões dos soberanos e santos sobrepostos. No lado norte, onde está a câmara da cidade, vê-se o campanário ladeado por quatro figuras alegóricas. A cidade parece ter saído dela, estendendo-se a partir aquele quadrado imenso, toda com a mesma cor, a mesma solidez, a mesma simetria. 

         - Sempre gostei de Espanha, dos espanhóis. Gosto de veranear pelas suas ruas onde os automóveis não entram, de assestar o olhar sobre o povo de uma dignidade austera, de uma personalidade que se impõe pela rigidez de conceitos, de tradições, da fimbria de carácter que os faz únicos numa Europa americanizada. Eles conservam com orgulho as tradições, pecam e confessam-se com a mesma convicção, são alegres, vivem a vida com intensidade e regozijo. Se tivesse que escolher um país para viver, seria Espanha. Em qualquer quer lado, da aldeia recôndita, à cidade opulenta, porque na base de tudo está seu povo vertical. 


quinta-feira, maio 11, 2023

Quinta, 11.

Aqui não pára de chover e o frio obriga-me a reforçar agasalhos, mas em Palmela quando lá ficámos o calor não nos deixava abandonar o terraço onde a mesa fora montada para pequenos almoços, almoços e jantares. Foram horas e dias ali, naquele esplendor de vida, bem regada de boas conversas e recordações, que continuavam até ao crepúsculo. Antes, eu havia-me deslocado de autocarro (os barões da CP a tanto obrigaram) ao Porto para receber os amigos que arribavam de automóvel. Depois o primeiro jantar, num restaurante modesto da Rua de Santa Catarina onde ficámos alojados, o pequeno passeio a pé (Annie em cadeira de rodas que eu tinha alugado, empurrada pelo Robert), pela zona efervescente de juventude solta das amarras civilizacionais que se traduz num viver duplo onde cabe tudo e até o vazio. 

No dia seguinte, embarcámos num barco para fazermos a Rota do Douro. Maravilhosa ideia a minha, inesperada viagem que nos levou a subir o Douro de múltiplos encantos e restos de civilizações antigas. O programa do projecto é por si só um acontecimento, com pequeno-almoço a bordo, almoço e guias turísticos que nos elucidam sobre a história de um rio, os avanços tecnológicos, as lutas dos povos para o manter navegável e de águas cristalinas. Instala-se nos corações ao olharmos as bordas verdejantes, os socalcos onde o vinhedo reflui de luz e cor, os velhos palácios para lá das plantações erguidos em memória a sucessivas gerações de enólogos, as igrejas escondidas em cada cidade ou aldeia, uma espécie de encanto que nos arranca não só a admiração, mas um profundo e terno reconhecimento à Natureza e àqueles que fizeram dela a companheira secreta dos dias encantados. A luta do homem espelha-se em cada pedaço de terra, no aproveitamento de uma margem que não se fez para homens frágeis, políticos medíocres e agricultores passivos. Cada metro quadrado de encosta foi conquistado com o suor daqueles que amaram aquela terra, aqueles sítios inóspitos, vertiginosos, onde o sol se estatela abençoando as noites que pingam sudação dos dias bravios. Ao longo do rio, sempre inspeccionado pelas populações que nele vivem ou dele dependem, as sucessivas barragens que vieram com o desenvolvimento industrial, conheceram as lutas dos povos e cada uma delas sofreu o escrutínio muitas vezes violento dos povos de olhos negros e melancolia recatada. Durante pelo menos quinze minutos, o barco aguarda que enormes portas se abram para deixar passar o estrangeiro com pressa ou o nacional absorto e orgulhoso da paisagem única no mundo. Regressámos de autocarro, sob calor ainda intenso, e olhos esbugalhados pela beleza encantatória do lugar, do Douro e seu curso, das mulheres e homens que nele encontram sustento e alegria e graça e aquela robustez típica das gentes do Norte e aquele sentido de vida onde perpassa a felicidade feita dos nadas que os ricos rejeitam. 

Chegados ao Porto, ainda de coração travado pela paisagem que nos abraçou por curvas e contra-curvas, quis mostrar aos meus amigos como se decoram estações de comboios, autênticas salas de visita, encenadas para receber reis e povoléu que as preserva. Como era Primeiro de Maio e este enchia praças e ruas, os meus bons amigos puderam ver a qualidade de portugueses anónimos que sem conhecerem a verdadeira essência do dia, entregam-se à folia do encontro e ouvem distraídos as vozes daqueles que os adormecem com ímpetos cheios de coisa nenhuma. É tão fácil manobrar multidões e tão difícil mudar o ser humano criado único pelo Criador. 

No dia seguinte, pela manhã quente, levei-os a visitar o Palácio da Bolsa. Annie, deslocando-se em cadeira de rodas, pouco pode fazer embora os seus interesses sejam muitos. O Palácio que guarda os imortais que fizeram o orgulho e a acção dos seus dirigentes, foi visto à presa por uma operadora de longo casaco preto, rosto abonecado, rápida de voz e, sobretudo, interessada em agradar aos visitantes de língua francesa, permitindo que eles comparassem os rostos expostos nas paredes com personalidades da vida política francesa. Na sala final encontra-se um pouco da nossa história política, nomeadamente, um excelente retrato de D. Pedro IV que entrou na cidade vindo do Brasil para restaurar a nação prejudicada pelo irmão com a cumplicidade da mãe. Do muito que havia a dizer ligado com a cidade, a senhorita nada disse, apressada em se despachar do grupo heterogéneo. Fui ter com ela e disse-lhe da falta grave que tinha cometido, respondeu-me, seca: “Que quer que faça, só possuo trinta minutos e tenho de abreviar para receber o próximo rancho.” Após o almoço num restaurante popular ao lado do mercado do Bolhão revivificado, rumámos a Matozinhos, com paragem na Foz da minha adolescência. À noite fomos à Ribeira jantar. Bem e caro. As luzes da cidade reflectidas no rio embelezando o derradeiro dia da nossa estada, mais quente do que o habitual, um fogo a sair das águas, um aceno de recordação a flutuar nos limos tangentes à atmosfera soturna, onde se havia instalado um vento anabático que se expandia colima acima até ao céu limpo e estrelado da infância do mundo.  



A barragem de Crestuma-Lever, construída em 1985, oferece ao visitante esta magnificência técnica que não só espanta como obriga o barco a demorar-se para cima de quarto de hora, por forma a que as gigantes portas se abram e o espanto conquiste definitivamente o visitante.     

         - Acontece que arranjei uma tosse incomodativa. No Porto, a Laure que na sua demência nada controla, começou a tossir desesperadamente. O padrasto, ante os meus alertas, dizia ser normal, todos os anos ela passa por isto, não te incomodes, etc.. Não me conformei, e levei-a a uma farmácia que lhe deram um xarope. Demasiado tarde. Dois dias depois, viajando a seu lado no carro, comecei eu a tossir e agora até a pobre mãe foi atingida pelo micróbio. Se a isto se somar o frio e a chuva que não abrandam, temos o quadro que eu há muitos anos não experimentava.  


quarta-feira, maio 10, 2023

Quarta, 10. 

Sobre a minha secretária deixei lida a História Deuteronomística de Josué. Ou seja a narrativa da escravidão dos israelitas no Egipto e o êxodo sob a patronagem  de Moisés a caminho de Canaã. Toda a descrição é assustadora, ensanguentada de crimes hediondos, sobre centenas de povos que viviam por aqueles territórios, sob a tirania de reis obsessivos, que Josué conduziu ajudado pelo seu Deus, YHWH. São textos incompreensíveis para nós, mas de onde sobressai já a ambição, o poder, a conquista pela guerra constante, subjugando pela força, espezinhando povos inofensivos, em nome de YHWH. À medida que iam dominando os povos e usurpando as suas terras e gados, tentavam a fusão religiosa impondo o culto de YHWH a par dos deuses que eles veneravam. A urgência em se estabelecerem na terra prometida, levou Josué a cometer sobre milhares de povos toda a sorte de crimes, guerras, mortes monstruosas que só de lermos nos afasta de Deus ou, como estamos apesar de tudo mais conhecedores e mais humanos, a pensar que o Deus que veneramos não podia nunca ser o mesmo que incentivou Josué a praticar tais monstruosidades. Porque Josué, iluminado por Moisés, não só conduziu os filhos de Israel, como os purificou. “Por volta desse tempo, o Senhor disse a Josué: “Faz para ti facas pétreas a partir de pedra afiada E, sentando-se, circuncida os filhos de Israel. E Josué fez facas pétreas afiadas e circuncidou os filhos de Israel no chamado Monte dos Prepúcios. (5: 2-3) Não obstante, eles tiveram sucessivamente a ira de Deus, que tanto os defendia como incentivava os povos subjugados, sobretudo quando os israelitas caíam na tentação de adorar também os muitos deuses que iam encontrando no caminho. “E Josué disse ao povo: “Não conseguireis servir o Senhor, pois ele é um Deus santo. E porque é ciumento (ciumento?), Ele não perdoará os vossos erros e os vossos actos de desregramento. Cada vez que abandonardes o Senhor e servirdes outros deuses, Ele virá fazer-vos mal e destruir-vos, em vez de vos fazer bem.” (24-19) Já perto do fim, o Senhor ordena a Josué: “E agora divide esta terra como herança para as nove tribos e para a meia tribo de Manassés. Dá-la-ás desde o Jordão até ao grande mar em direcção ao pôr do sol; o grande mar será a fronteira.” (13-7).  

         - Se falo no passado é porque estou em Paris. Depois de ter estado quatro dias no Porto e outros tantos na quinta, larguei o meu paraíso no carro do Robert (é a primeira vez que ele me visita em viatura), por Castelo Branco. Tinha prometido a mim mesmo não voltar tão depressa a esta casa, mas não resisti às lágrimas da Annie e prontamente esqueci o que me desgostou (sem que ela tivesse culpa alguma) há dois anos. Hugo, o filho, que esteve no centro do meu desconsolo, voltou para Taiwan e o Robert que não morre de amores por ele, inchou de satisfação. Paris, um pouco por todo o lado, parece um estaleiro com obras a decorrer a bom ritmo para receber os Jogos Olímpicos em 2024. Há muitos anos que não vinha nesta altura e, portanto, é para mim uma descoberta ver a cidade nos alvores da Primavera. Lembro-me noutros tempos da humidade viscosa que se pegava à roupa, aos colarinhos sujos quando regressava a casa vindo do centro, daquele ar sufocante que prendia a respiração dos parisienses e a minha particularmente. Porque Paris não tem mar, é uma cidade onde a razia das ruas se atropelam, o Sena não é suficiente para trazer o sopro rarefeito tão necessário ao equilíbrio. Viajar de metro hoje é um susto, sobretudo em hora de ponta que são praticamente todas. Chego depois de uma viagem de pelo menos dois mil e quinhentos quilómetros em pedaços para afrontar a chuva e o frio que aqui faz. 

A tempestade que nos recebeu à chegada, tinha tanto de belo como se assustador. 

         - Fui, todavia, colhendo os ecos relacionados com aquele que tem ar de (suprimo aqui o que escrevi, deixando para os leitores futuros a observação). Ninguém sai bem na fotografia da família socialista enquadrada no cenário dantesco onde Marcelo cresce no desespero de se evadir pela porta entreaberta das cumplicidades habituais.