quinta-feira, maio 11, 2023

Quinta, 11.

Aqui não pára de chover e o frio obriga-me a reforçar agasalhos, mas em Palmela quando lá ficámos o calor não nos deixava abandonar o terraço onde a mesa fora montada para pequenos almoços, almoços e jantares. Foram horas e dias ali, naquele esplendor de vida, bem regada de boas conversas e recordações, que continuavam até ao crepúsculo. Antes, eu havia-me deslocado de autocarro (os barões da CP a tanto obrigaram) ao Porto para receber os amigos que arribavam de automóvel. Depois o primeiro jantar, num restaurante modesto da Rua de Santa Catarina onde ficámos alojados, o pequeno passeio a pé (Annie em cadeira de rodas que eu tinha alugado, empurrada pelo Robert), pela zona efervescente de juventude solta das amarras civilizacionais que se traduz num viver duplo onde cabe tudo e até o vazio. 

No dia seguinte, embarcámos num barco para fazermos a Rota do Douro. Maravilhosa ideia a minha, inesperada viagem que nos levou a subir o Douro de múltiplos encantos e restos de civilizações antigas. O programa do projecto é por si só um acontecimento, com pequeno-almoço a bordo, almoço e guias turísticos que nos elucidam sobre a história de um rio, os avanços tecnológicos, as lutas dos povos para o manter navegável e de águas cristalinas. Instala-se nos corações ao olharmos as bordas verdejantes, os socalcos onde o vinhedo reflui de luz e cor, os velhos palácios para lá das plantações erguidos em memória a sucessivas gerações de enólogos, as igrejas escondidas em cada cidade ou aldeia, uma espécie de encanto que nos arranca não só a admiração, mas um profundo e terno reconhecimento à Natureza e àqueles que fizeram dela a companheira secreta dos dias encantados. A luta do homem espelha-se em cada pedaço de terra, no aproveitamento de uma margem que não se fez para homens frágeis, políticos medíocres e agricultores passivos. Cada metro quadrado de encosta foi conquistado com o suor daqueles que amaram aquela terra, aqueles sítios inóspitos, vertiginosos, onde o sol se estatela abençoando as noites que pingam sudação dos dias bravios. Ao longo do rio, sempre inspeccionado pelas populações que nele vivem ou dele dependem, as sucessivas barragens que vieram com o desenvolvimento industrial, conheceram as lutas dos povos e cada uma delas sofreu o escrutínio muitas vezes violento dos povos de olhos negros e melancolia recatada. Durante pelo menos quinze minutos, o barco aguarda que enormes portas se abram para deixar passar o estrangeiro com pressa ou o nacional absorto e orgulhoso da paisagem única no mundo. Regressámos de autocarro, sob calor ainda intenso, e olhos esbugalhados pela beleza encantatória do lugar, do Douro e seu curso, das mulheres e homens que nele encontram sustento e alegria e graça e aquela robustez típica das gentes do Norte e aquele sentido de vida onde perpassa a felicidade feita dos nadas que os ricos rejeitam. 

Chegados ao Porto, ainda de coração travado pela paisagem que nos abraçou por curvas e contra-curvas, quis mostrar aos meus amigos como se decoram estações de comboios, autênticas salas de visita, encenadas para receber reis e povoléu que as preserva. Como era Primeiro de Maio e este enchia praças e ruas, os meus bons amigos puderam ver a qualidade de portugueses anónimos que sem conhecerem a verdadeira essência do dia, entregam-se à folia do encontro e ouvem distraídos as vozes daqueles que os adormecem com ímpetos cheios de coisa nenhuma. É tão fácil manobrar multidões e tão difícil mudar o ser humano criado único pelo Criador. 

No dia seguinte, pela manhã quente, levei-os a visitar o Palácio da Bolsa. Annie, deslocando-se em cadeira de rodas, pouco pode fazer embora os seus interesses sejam muitos. O Palácio que guarda os imortais que fizeram o orgulho e a acção dos seus dirigentes, foi visto à presa por uma operadora de longo casaco preto, rosto abonecado, rápida de voz e, sobretudo, interessada em agradar aos visitantes de língua francesa, permitindo que eles comparassem os rostos expostos nas paredes com personalidades da vida política francesa. Na sala final encontra-se um pouco da nossa história política, nomeadamente, um excelente retrato de D. Pedro IV que entrou na cidade vindo do Brasil para restaurar a nação prejudicada pelo irmão com a cumplicidade da mãe. Do muito que havia a dizer ligado com a cidade, a senhorita nada disse, apressada em se despachar do grupo heterogéneo. Fui ter com ela e disse-lhe da falta grave que tinha cometido, respondeu-me, seca: “Que quer que faça, só possuo trinta minutos e tenho de abreviar para receber o próximo rancho.” Após o almoço num restaurante popular ao lado do mercado do Bolhão revivificado, rumámos a Matozinhos, com paragem na Foz da minha adolescência. À noite fomos à Ribeira jantar. Bem e caro. As luzes da cidade reflectidas no rio embelezando o derradeiro dia da nossa estada, mais quente do que o habitual, um fogo a sair das águas, um aceno de recordação a flutuar nos limos tangentes à atmosfera soturna, onde se havia instalado um vento anabático que se expandia colima acima até ao céu limpo e estrelado da infância do mundo.  



A barragem de Crestuma-Lever, construída em 1985, oferece ao visitante esta magnificência técnica que não só espanta como obriga o barco a demorar-se para cima de quarto de hora, por forma a que as gigantes portas se abram e o espanto conquiste definitivamente o visitante.     

         - Acontece que arranjei uma tosse incomodativa. No Porto, a Laure que na sua demência nada controla, começou a tossir desesperadamente. O padrasto, ante os meus alertas, dizia ser normal, todos os anos ela passa por isto, não te incomodes, etc.. Não me conformei, e levei-a a uma farmácia que lhe deram um xarope. Demasiado tarde. Dois dias depois, viajando a seu lado no carro, comecei eu a tossir e agora até a pobre mãe foi atingida pelo micróbio. Se a isto se somar o frio e a chuva que não abrandam, temos o quadro que eu há muitos anos não experimentava.