sábado, agosto 29, 2015

Sábado, 29.
O espectáculo desumano da migração que foge dos países em guerra ou onde há fome, parece não comover a Europa de Bruxelas. Há anos que o baronato do euro assiste insensível ao drama, à morte, ao enriquecimento de uns quantos, que extorquem antes de condenar à morte milhares de homens, crianças, mulheres. Como se tivesse passado por todos eles uma criminosa amnésia que não os leva recordar que há sessenta anos muitas das suas famílias e alguns deles passaram pelos mesmos caminhos de fuga, o mesmo mar, as mesmas angústias, os mesmos sofrimentos e humilhações. Não conseguem achar uma estratégia para fazer face ao drama que não tarda atingirá um milhão de pessoas, mas encontram saídas para afundar numa folha de cálculo os países que ousem praticar políticas económicas que saiam da página Excel por eles traçada. Para estes incompetentes, estes chicos espertos, é mais fácil reduzir ordenados, aumentar impostos, atirar para a miséria os pequenos povos que os fazem inchar de orgulho e presunção, que pensar a maneira de acolher aqueles que fogem dos conflitos que eles e os Estados Unidos criaram. Os grandes problemas que dizem respeito às pessoas, eles não possuem dimensão para os resolver. São economistas – e isso diz tudo.

         - Como o furgão frigorífico que foi encontrado há dois dias na estrada que liga a Hungria à Áustria, com pelo menos 70 pessoas lá dentro entre crianças, mulheres e homens, por mero acaso por uma patrulha de trânsito. Para estupefacção dos agentes os imigrantes estavam todos mortos e já em estado de putrefacção, devido à falta de ar e ao facto de terem sido deliberadamente abandonados pelos criminosos condutores do veículo. Não é só o mar Mediterrâneo que está juncado de cadáveres, são também as montanhas, as estradas, os portos desta Europa governada por uma seita de palermas que nada entende de coisa nenhuma. A tragédias destas os políticos da União Europeia responde que não os chateiem porque estão de férias.


         - Ontem, nas nossas deambulações pela Baixa, em todas as lojas que entrávamos, Conceição e eu, instalava-se uma espécie de frisson. Eu explico. Sou de fácil abordagem e tudo me interessa que diga respeito ao ser humano com quem tenho a honra de falar. Vai daí, num ápice, emergia uma atmosfera divertida, como se empregado e cliente se conhecessem de longa data. Com medo que a minha amiga se sentisse incomodada, pu-la de sobreaviso: “Não sei se lhe incomoda a minha maneira de ser” e logo ela muito rápida: “Os aristocratas procedem assim com todas as pessoas.” Bum catrapus. Levanta-te, aristocrata.

sexta-feira, agosto 28, 2015

Sexta, 28.
É muito curioso ver a ambição dos aspirantes a políticos naquilo que os partidos definem por “Universidades de Verão”. Que mais não são que palanques oratórios para os anafados barões instalados e desejosos que as crianças não lhes tomem o lugar. Estas ainda mal deixaram os cueiros e já exibem os tiques, as fardas (é vê-los engravatados e em pose na sua idade), os ideais, as propostas, a postura e a ronha dos seus papagueados. Se esta é a geração seguinte, vamos ter que gramar os mesmos papagaios, os mesmos realejos, treinados no faz-de-conta e ensaiados desde cedo no submundo de uma classe que aprendeu a esquecer a honorabilidade, a honra, a verdade, a dignidade, fazendo do partido o clube mafioso onde tudo é permitido para alcançar o poder. 

         - Este mundo não está para conversas. Ou antes o desprezo pela vida humana atingiu um nível tal, que tudo e nada serve para a eliminar. Foi o que aconteceu, em directo, numa estação de televisão americana. O apresentadora e o cameraman foram abatidos enquanto apresentavam o programa. O assassino, um colega da estação, foi depois postar o vídeo nas redes sociais, e suicidou-se. Assim, limpo como água. 

         - Ontem passei uma boa parte da manhã a serrar lenha. Tinha para aí uma considerável quantidade de braços de árvores e troncos grossos, e decidi aproveitá-los para as lareiras. Na sequência, estou com os lombares feitos num oito. A Piedade que assistiu à operação, debitou sentença: “tem aí para várias noites”.

         - Almocei com a Conceição na Adega da Mó em plena Baixa. Antes tive que atravessar a choldra em que o centro se tornou com o turismo pé descalço a invadir tudo deixando os sítios num estado sem dignidade nem identidade. Almoço agradável, bem regado com vinho verde (a minha amiga é do Norte), bem conversado e saboreado ou não estivéssemos no lugar da velha e já saudosa cozinha portuguesa. Depois fui mostrar-lhe a sex-shop existente na zona e onde outrora a reinação era tanta - nada a ver com o sepulcro que encontrei. Ainda entrámos na fnac do Chiado e em mais uma ou outra loja para eu comprar o que me fazia falta. Despedimo-nos no Rossio sob calor abrasador, o vinho fazendo das suas nas nossas cabeças. 

quarta-feira, agosto 26, 2015

Quarta, 26.
Uma manhã abafada, sentámo-nos Alice e eu, no tablado que o namorado construiu sobre o lago coberto de palmeiras, e deixámo-nos resvalar em confissões. Percebi que com ela podia soltar o coração e durante pelo menos duas horas maravilhosas, trocámos confidências e amargos de alma. Uma total sintomia de afectos cruzou os nossos caminhos e um entendimento da vida encontrou nas palavras a mão amiga que reconforta e tem na ponta dos dedos o parecer que ajusta a emoção e reorienta os sentimentos. Tudo acompanhado de um sorriso desenhado no seu rosto bonito que anima, estreita a percepção e dá confiança no futuro. Alice habituou-se a encontrar em si o necessário na prossecução do caminho que traçou. E não desanima diante dos obstáculos. O homem chegou tarde e foi uma bênção do céu. Todavia, ela já estava habituada a estar só, a contar apenas consigo, a enfrentar os fantasmas e a vencê-los. Como o pai que com noventa anos, uma semana antes de morrer, ainda trabalhava a terra que hoje ela trata e “trazia tudo num brilho”. A médica que a segue, dá-lhe invariavelmente a mesma sugestão: “continue a tratar do campo”. A única filha que tem, não gosta do campo e ela sabe perfeitamente que após a sua morte a quinta que tanto adora, partirá em venda. “Enquanto cá andar, sou feliz aqui. O que acontecerá depois da minha morte, não me importa.” Mulher de armas, esta amiga.

         - Estava curioso em ver as obras do mercado central da cidade que a câmara levou mais de um ano a fazer. Pode-se dizer que a montanha pariu um rato e um xuxo caro. O que resulta do investimento, é o empedrado central da praça ao jeito lisboeta e nada mais. Podiam ter aproveitado para alargar as ruas que circundam, mas nem isso fizeram. As estruturas dos feirantes, são manhosas e nem um pouco de cor introduziram no ar. Resta o que há de melhor e nunca dali saiu: as pessoas, as frutas, os legumes como elementos ornamentais de vida e alegria a dignificar o espaço.

         - Como eu imaginei, os barbudos extremistas jihadistas começaram a destruir Palmira. Uma jóia da Síria, um registo da sua identidade e da sua história desapareceu em segundos. Dois mil anos de testemunho greco-romano morrem às mãos destes selvagens que os Estados Unidos e a Europa, nas suas hesitações e aproveitamentos, desconfianças e interesses geoestratégicos quanto a Bashar al-Assad, não souberam enquadrar. A Unesco fala em “crime de guerra”. Mas é a Beleza na sua expressão eterna que deixa os nossos corações e nos empobrece de humanidade.  

         - Gostava de ser como aquele casal que ali está frente a frente, sossegados, vazios, a tomar café. Não há neles senão silêncio, vida esvaziada de palavras, mas ainda assim perpassa entre eles um diálogo quedo que traduz a acomodação a um quotidiano de surdos-mudos, de algo esgotado, que paralisa, introduz nos gestos a lentidão que a atalaia da morte não disfarça. Um deles decerto morrerá primeiro e o que ficar vai recolher as sombras do que partiu e fazer delas a memória que desprende a saudade numa espera ensandecida murmúrios.    

         - Os franceses graças a três destemidos soldados americanos que  sexta-feira passada, no comboio Bruxelas-Paris, evitaram mais um atentado dramático, respiram de alívio; já os rapazes norte-americanos, aclamados como heróis, coube-lhes um final ao gosto da América brilhantemente aproveitado dos dois lados do Atlântico.  

terça-feira, agosto 25, 2015

Terça, 25.
A Europa está moribunda. Sobretudo a Europa do euro, de Bruxelas, do Eurogrupo e do Tratado de Lisboa. Milhares de migrantes abandonados nas suas fronteiras à sua sorte, forças policiais a enfrentar multidões famintas à deriva em diferentes países que de si se defrontam com uma crise sem precedentes, atentados o mais recente num comboio francês, insegurança, muros e fossas levantadas, falta de ideias, obsessão pelo PIB, de percentagens disto e daquilo, preocupação com as bolsas a cair a pique, o desemprego, o abaixamento da natalidade, a quebra de direitos que levaram mais de cem anos a conseguir, a nobreza do trabalho a conhecer o maior revês depois da Segunda Guerra, enfim, o medo a imiscuir-se sub-repticiamente e a fazer crescer os egoísmos, a noção da querida família como elemento de retrocesso a um mundo onde cada um quer salvar-se estando-se nas tintas para o vizinho, apesar de a vermos todos os dias plasmada nos jornais na forma de assassinatos, violências domésticas, abandono dos filhos...

         - Soube há dias da morte de Éric Jourdan, filho adoptivo de Julien Green. Morreu em Paris, em Fevereiro, aos 77 anos e foi sepultado ao lado do pai na igreja de Santo Egídio, nos arredores de Viena d´Áustria, em campa rasa construída em vida do autor de Moira. Escritor de vasta obra romanesca de caris essencialmente homossexual, dele li dois ou três livros que não me atraíram. Um homem não se esgota no exercício da sua sexualidade por muito importante que ela seja. Li na net que um e outro deixaram há muito de ser lidos – destino comum a milhares de escritores, poucos sendo os que perduram através do tempo. Green é um deles, embora a moda dos tempos presentes vá no sentido do balofo, da historiazinha risível contada para adormecer, do espectáculo que começa nas televisões e na cena emproada da vanidade. Reparo que fiquei associado a ele, não sei como, nem a que propósito, uma vez que o meu nome aparece nos artigos que dão a notícia da sua morte. Talvez porque escrevi neste blog uma vez algo acerca da sua ligação a Green desde os seus 18 anos de idade quando o consagrado autor ia nos 56. Seja como for, não sendo desprestigiante, também não me enobrece. Registo que Éric terá sido muito útil a Julien Green e não me parece que se tenha aproveitado como muitos leitores afirmam nas redes sociais. Se o fazem é porque não leram o majestoso Diário do velho escritor que morreu aos 98 anos de idade. Dos escritores ditos marginais, resta Gabriel Matzneff.

         - Príncipe telefonou-me a dar a notícia da morte do seu maîte à penser Hermínio Martins. Mais um que se vai. Era um intelectual como há poucos no nosso país: discreto, profundo, original na forma de pensar Portugal e os portugueses. 


         - Acabei de entrar vindo de Caldas da Rainha onde estive com a minha amiga Alice. Procedi como fazia o cardeal Mazarino que nunca se deslocava sem um livro, na circunstância Cartas a Lucílio (94 e 95), primeira edição de 1991, apresentadas e traduzidas pelo nosso eminente latinista Segurado e Campos, edição da Fundação Calouste Gulbenkian, o mesmo que me levou à sua releitura a propósito de Cícero e das concepções filosóficas da chamada parenética muito utilizada por Séneca. As Cartas é um livro profusamente anotado e sublinhado por mim quando o li arrebatado e a ele volto quando a vida se desnorteia e eu preciso da voz amiga que ma reoriente. (Estou cheio de sono. Vou dormir e noutra altura falarei do que se me oferecer ou vier no fio do pensamento.) 

domingo, agosto 23, 2015

Domingo, 23.
A Igreja desde a Idade Média fez da remissão dos pecados o passaporte para a vida eterna redentora, para a salvação. Que pecados? Os dos sexo que são a base da sua doutrina capital. Quem pecasse por adultério, homossexualidade, masturbação teria uma morte assustadora e um fim nas profundezas do inferno. A igreja de S. Francisco no Porto, é disso o paradigma que assusta, afasta os espíritos menos pensantes, deposita nas consciências o pavor tenebroso de Deus. A tudo isto ela juntava, junta ainda embora noutra dimensão, o castigo e o sofrimento atroz, sem os quais a alma não se salvará, como se do outro lado nos esperasse Deus o juiz vingativo. Séculos foram corridos sob a batuta de uma instituição todo poderosa, que dispôs do destino da humanidade a seu bel contendo, esmagando-a e humilhando-a no pressuposto de um Além feliz. A vida na terra é uma passagem que deve ser vivida na subjugação de normas sinistras que a tornam já de si num inferno. Ajudar a humanidade a ser livre, a pensar pela sua cabeça, a entregar o coração ao largo da alegria e da felicidade, é recusar a salvação e entregar o destino ao abismo, apregoavam. Donne dizia que “todos devemos uma morte a Deus”. Eu estou do lado de Newman: Me and my Creator. E acredito que há mortes serenas, tendo a ver com o modo como vivemos e encaramos com naturalidade um fim que desde a nascença estava destinado a morrer ou a prosseguir noutra dimensão. A tortura da Cruz foi a opção de Deus por nós, para que fôssemos felizes na terra por ele criada para a nossa bem-aventurança. Um puro e sublime acto de Amor.