segunda-feira, maio 31, 2021

Segunda, 31.

“Estou absolutamente convencido que se encontram, neste momento, nas prisões portuguesas, a cumprir pesadas penas de prisão por homicídio ou roubo, cidadãos muito mais sérios, honestos e humanos no que toca aos sentimentos que nutrem pelos  seus concidadãos do que alguns dos personagens que têm vindo a depor na comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) ao Novo Banco.” Estas palavras são de um homem que aprecio imenso: Francisco Teixeira da Mota. Falava o ilustre advogado do escândalo que têm sido os inquéritos parlamentares aos devedores do antigo BES e, acrescento eu, à aplicação dos nossos impostos em tranches anuais para o mesmo saco. Sendo António Costa o governante, o banco vai receber outra maquia – que devia ser aprovada pelo Parlamento -, directamente do primeiro-ministro sem dar cavaco à Assembleia. Como se chama isto? Despotismo?   

         - Justamente, a propósito, quero lembrar o chumbo do PS e CDS-PP à ida de Rui Pinto à comissão de inquérito ao Novo Banco. O criador dos Football Leaks que parece estar activo e a acompanhar com interesse a trajetória dos corruptos do futebol, reagiu e no Twitter escrevendo que o significado político da rejeição da sua audição “mais que o mero veto, deve-se enaltecer o simbolismo da decisão e o seu significado político”. Mas disse mais “a simbiose entre política e os principais escritórios de advogados, (são) uma das marcas deste regime socialista”. Assim mesmo, sem tirar nem pôr. Temos homem. 

         - Vou-me quedar um pouco mais na observação do género socialista de governar. Como já aqui disse o partido de Costa tem sido ao longo do tempo – excepção para o camarada Cravinho – o mais contrário à clarificação honesta dos cargos públicos. Este mês vai ser discutida na Assembleia as várias propostas do Mecanismo Anticorrupção. Todavia, o Governo já adiantou a hipótese de excluir do novo regime os gabinetes dos principais órgãos políticos e de todos os órgãos de soberania, assim como o Banco de Portugal. Portanto, um largo campo onde tudo pode acontecer seja directamente, seja por interposto camarada. Todos estes gabinetes ficam desobrigados de apresentar planos de prevenção de riscos de corrupção. Mas há mais que me inquieta. Para esta gente que vive lá no alto e o dinheiro abunda, só é crime quem não apresentar justificação de rendimentos e património acima de 50 salários mínimos mensais (qualquer coisa como 33.250 euros) desde o início de funções e os três anos após o seu termo. Depreende-se, então, que tudo o que for abaixo deste valor não é considerado enriquecimento ilícito. Ora, tenho para mim, que é ladrão quem rouba um euro como quem furta um milhão. Depois aquela importância não aufere por ano 80 por cento da população portuguesa. O regabofe ainda vai no adro.  

         - Abri o lounge. É lá que agora trabalho debaixo do grande guarda-sol, os olhos postos nas hortênsias que abrem ao longo da entrada como andor da Virgem e o canto da passarada à desgarrada. O Verão urge, vem cada vez mais apressado e por causa dele esteve aí o Sr. Vítor esta manhã a mudar o relógio que controla o tratamento da água na piscina. No próximo fim-de-semana, sendo mais económica a energia chinesa, tenciono despertar a água e pô-la pronta às banhadas diárias. Bonheur. Bonheur.  


domingo, maio 30, 2021

Domingo, 30.

Como vai este quintal socialista? Vai como sempre tem ido, de mal a pior. Ontem António Barreto teceu duras críticas a um decreto-lei que eu havia abordado de passagem aqui. Refiro-me à Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital. Compilo do seu artigo: “A lei aprovada pelo Parlamento pelo Presidente da República e referenciada pelo Governo acaba de criar um regime de orientação, vigilância, censura a posterior, delação e controlo da liberdade de expressão, inédito na democracia e só parecido com algo em vigor durante a ditadura salazarista.” Assim sem papas na língua. Esta lei, retomo eu, decretada por Marcelo a 8 de Maio, estabelece “protecção contra a desinformação” e legaliza a censura através de uma Entidade Reguladora (julgo que ainda nem criada foi), ao invés dos tribunais, de pessoas singulares ou colectivas que “produzam, reproduzam ou difundam” informação considerada pelo Estado como “desinformação”. Eu devo ser dos primeiros a ser calado mesmo antes de ser julgado! Se atentarmos na data, vemos que ela foi aprovada à revelia da nação, dos portugueses, num período em que todos nós estávamos preocupados com os que sofriam nos hospitais, morriam sós, e confinados sob a revolta. A esquerda, com esta mordaça, vai poder continuar e alargar a sua hegemonia, impor as suas ideias, ditar o que é desinformação, o lápis azul em riste desde que não lhe agrade as verdades. A democracia dá para tudo. O que antes Salazar fazia chamavam fascista, o que hoje a esquerda faz é ao abrigo da democracia. Que embuste! Mais: a lei nº 27/21 de Maio, foi aprovada por toda a esquerda, pela direita e pelo centro (PS, PSD, BE, CDS, PAN, e as meninas ditas independentes Joacine Moreira e Cristina Rodrigues), com a abstenção do PCP e PEV, Chega e IL. Como se vê o Parlamento inteiro, muitos deles combateram a Censura fascista, sofreram com ela, mas isso são águas passadas. Uma canalhice. Gente que teme a verdade, a liberdade. Insistem eles que vivemos em democracia... 

         - Por exemplo. O socialista da ala esquerda do PS (é apelidado assim, por isso não me venham dizer que isto é desinformação), de nome Pedro Nuno Santos, prepotente e arrogante personagem da nossa história (posso provar em tribunal), investiu contra o dono da Ryanair (não sei se deva dizer CIO porque agora todos são CIO, a pacovice impera), Sr. Michael O Leary que, e muito bem, protestou junto da UE contra as ajudas que Portugal deu à TAP por achar que se trata de concorrência desleal. O holandês justificou como eu  costumo fazer, afirmando que os contribuintes portugueses precisam de hospitais e escolas mais do que uma empresa dita “de bandeira nacional”. Que respondeu o nosso socialista estimadíssimo dos trabalhadores que despediu em massa, reduziu salários e espezinhou-os como quis: “Portugal não aceita intromissões nem lições de uma companhia aérea estrangeira.” A fragilidade do homem está na resposta. 

         - Realmente, se somos tão bem governados, porque raio nos insurgimos tanto?! Outro exemplo. Eu tenho cada vez mais tendência a estar do lado dos alienados amantes do futebol e da juventude que se embebeda pela noite dentro nos bares das grandes e pequenas cidades, nas tintas para o coronavírus, para as ordens emanadas da sacrossanta DGS, a polícia que perdeu os serões com os filhinhos queridos. Apetece-me dizer: “tendes razão”. Eu digo e redigo que não há como os socialistas no amor, obsessão e importância do dinheiro. O inteligente Boris Johnson, protegendo o povo que governa, enxotou a canalha do futebol, mais os vírus e as bebedeiras, para o Porto ou seja Portugal sempre de mão estendida a receber os patacos dos que sabem fazer crescer as suas industrias e são ricos pelo saber da sua política e o trabalho das suas populações. Bom. Na propaganda socialista que antecedeu a chegada dos grosseiros ingleses, o Governo disse que vinham “numa bolha” quer isto dizer num avião que os despejava no estádio e os recolhia logo a seguir ao jogo de volta; o senhor lá do Norte, designado “penso eu de que”, chegou a dizer que o Porto não tinha a canalhada de Lisboa referindo-se aos tristes episódios do final na taça não de quê. Vai-se a ver foi o delírio: milhares nas ruas da cidade Invicta, sem máscara nem distanciamento, alcoolizados, selvagens, a ponto de ter havido confrontos graves com a Polícia e os bares haverem fechado por medo dos desacatos. Tudo isto quando a malta do futebol nacional, anda há dois anos a carpir o desespero de não poder assistir nos campos à exibição dos seus ídolos. Qual é a lógica desta governação socialista? Tem esta gente algum crédito ainda? À conta deles, de todos os deputados e do Presidente da República morreram milhares a seguir ao Natal e milhares de milhares caíram em sofrimento atroz. Eu não me esqueço. 


sábado, maio 29, 2021

Sábado, 29.

Todo o dia de ontem às voltas por Lisboa. Ou antes ondulando pela cidade tomado por uma espécie de retorno aos meus vinte anos. Comecei, naturalmente, por me encontrar com os amigos na Brasileira e de seguida fui travar a batalha de convencer a minha gestora de conta a conceder-me um empréstimo sob as minhas condições e não das do banco. Comecei por recusar responder a inquéritos que entram na nossa vida pessoal e impus que só respondia ao que achasse apropriado ao caso. Depois bati-me pelo juro mais baixo, argumentei, lutei, coagi a coxearia e por fim adiantei uma fiança no valor do que necessitava, mas com a condição de receber juros do montante. Bati-me uma boa hora, ao cabo da qual saí com um juro de pouco mais de 2 por cento. Satisfeito, dei-me ao luxo de um bom almoço no Chiado, seguido de café no bar da fnac, leitura do Público e, pelas cinco da tarde, tomei o metro e fui ao dentista. Ficaram feitos os moldes para adaptação dos implantes. Paguei a primeira tranche e tomei um táxi para a Av. de Roma. Regressei a casa num comboio apinhado e pensei durante o percurso que aquilo comparado com a charada em que se transformaram as normas da DGS, assinadas por Costa, era o corriqueiro dos dias normais mas de freio nos dentes. Não desembarquei em Pinhal Novo, mas algures numa estação parecida com Montmartre. Todo eu refulgia, andara quilómetros sobre as pernas, a que coxeia e a outra que parece depender agora da que toda a vida esteve sob a sua alçada. A distância a que o Fertagus parou, obrigou-me a palmilhar ainda mais. Enquanto caminhava, ia pensando que todos os quilómetros que se cumularam nas pernas, são espaços de liberdade surripiados à escravidão da escrita e da leitura, à reclusão e ao ritmo-cadência os meus dias. Melhor esgotar-me no asfalto que a galopar as palavras, a página em branco, o esforço da memória que as arrasta para o texto e lhes dá significado ou significação. Quando entrei em casa abracei a Blacka ou Black que me esperava com olhos de fome. Portas dentro, senti progressivamente invadir-me do silêncio que aqui mora e, subitamente, era Outono e o táxi estacionara lá fora, à porta da casa, e eu entrara aspirando o perfume da cera, das divisões passajadas pela Piedade, dos livros que atapetam os muros. Refastelei-me diante da lareira acesa que a minha boa empregada tivera a gentileza de a acender e disse alto para todos os autores que me olhavam satisfeitos e aprumados nas estantes: “Voltei, rapazes! Aqui tendes o vosso vassalo!”  Um ou outro sorriu. 

         - Devia ocupar-me do mundo e do nosso pobre país, mas não quero fazê-lo hoje. Estou ainda mal refeito da alegria e do convívio que reina dentro destas divisões; quero deixar ao portão as misérias dos grandes homens que nos governam. De manhã fui tomar café com o Raul e a Glória a uma esplanada da vila e recebi dele o grosso volume de 1020 páginas do journal de guerre 1939-1943 de Paul Morand que lhe havia encomendado de Paris. Faz calor. Corre uma aragem forte. A tarde reconstituiu-se-me num compacto maço de memórias. 


quinta-feira, maio 27, 2021

Quinta, 27.

Esta manhã dei comigo a pensar no tempo que a velhice ocupa com médicos e consultórios, clínicas e laboratórios. É uma espécie de condenação à morte antecipada ou forma de reter a vida às ordens de clínicos que parecem estar acima dela. Havia em toda aquela gente que se cruzou comigo nos corredores e salas de espera, algo de abdicante  e simultaneamente golpe de energia e luz que dimana da heroicidade com que encaram tratamentos e operações, longas horas de espera e o ensaio da morte a chamar pelos vivos que recusam ouvir o seu chamamento. Só um senhor ocupava o tempo a ler. O resto para ali estava, meio apatetados, sem sequer dar atenção ao ecrã que chamava pelo número da senha que ficara perdida entre os dedos. A bem dizer deixaram de viver há muito, mas não se dão conta. Estão um pedaço do que foram, a doença trabalhando para arruinar o que resta. O que noto sempre que sou confrontado com ida aos hospitais, é que dois mundos diametralmente opostos coexistem sob a forma do impulso que a ciência veio trazer à esperança. A própria morte, o morrer simplesmente, sempre achei ser uma questão cultural. A pessoa que possui cultura aceita com altivez as adversidades; a outra que a não tem oferece o triste espectáculo da rendição. Isso, provavelmente, tem a ver com a aceitação da velhice. Devíamos receber a velhice como colhemos a infância. E não nos abandonarmos a ela porque pensamos que os dados estão lançados e só nos resta esperar pelo fim. Acontece que não há fim nenhum; há quando muito a transformação da vida tal qual a conhecemos, numa outra vivência que é a continuação natural desta. Uma vez nascidos, como nos mostra a natureza, renovamo-nos, continuamos e somos por vontade própria um ser que nunca se apaga. A velhice é um ciclo, é um período que nos prepara para a sequência de um outro que não conhecemos, como não sabíamos da existência que nos trouxe aqui antes de contemplarmos o mundo. Os lares estão cheios de velhos, não por serem idosos, mas porque a família se desinteressou deles. É por isso que eu louvo a heroicidade, o sentido solitário que nos aporta imensas armas, mas nenhuma traz o selo da dependência. Envelhece-se mais rápido quando dependemos dos outros, quando lhes entregamos a nossa existência para que eles a governem. Nessa altura, fomos nós que nos rendemos tornando-nos um objecto sem importância nenhuma - um prossegue os seus dias; o outro parou a relembrar o tempo que continua a encher os dias do seu protector. Esse olhar, essa expressão da tristeza que dói e mata, esse descer ao passado prestes a findar, sem, contudo, ver ainda o luz ao fundo do túnel, as horas que faltam para entrarmos no desconhecido, essa viagem sem fim nem regresso, estuga sob o formato de uma amargura que corrói o tempo vazio e invade as vidas dos que nos lares vão apodrecendo. Porque verdadeiramente, num país atrasado como o nosso, onde a vida humana não tem direito à dignidade como, de resto, não a teve a vida activa, é na misericórdia, no coitadinho, no cristãmente amparo que se desenha a desonra de haver vivido num país de rezadeiros, convertidos por uma Igreja que criou um Deus vingativo, para que pudesse submeter o conhecimento, a evolução e o progresso, a dignidade e a revolta, o inconformismo e a liberdade, criando um rebanho de ignorantes facilmente manobrados e aceitando tudo o que viesse da ira de Deus. Se olharmos a velhice que apascenta a existência nos lares, vemos que a base cultural é extremamente baixa ou nula. Se escutarmos nos consultórios a maneira como certos médicos falam aos pacientes anciãos, impondo o seu saber, remetendo depois para o paciente a responsabilidade do acto médico, com papel assinado e tudo a que se julgam com direito e a lei lhes concede, vemos quão são tratados como atrasados mentais, crianças, mentecaptos. Pressinto como deve ser destruidor da identidade do idoso partir sem respeito nem decência, como se a sua vida tivesse sido um fardo para filhos e o Estado que esfrega as mãos de contentamento – menos uma reforma, apesar de miserável, a pagar.


quarta-feira, maio 26, 2021

Quarta, 26.

Este Governo não deve ser levado a sério, está gasto, já não consegue vender a mentira no leilão da sua imensa desfaçatez. Apressa-se o primeiro-ministro e o secretário (será?) da DGS, os dois em uníssono a pregar que o aumento substancial de novos contágios por coronavírus em Lisboa, não se deve ao futebol, mas ao cruzamento de muitas raças como no tempo das Descobertas. Mais: primeiro, diziam que se ultrapassasse (Rt) 1,02 por 100 mil habitantes, confinariam; já vamos em 1,07 e ainda estão nas ameaças. A economia passa à frente de tudo e todos. Até ao dia em que estejamos todos mortos e a economia não tenha pessoas para enganar e ricos para enriquecer. Talvez sobreviva a elite política corrupta, mentirosa, negligente, megalómana e, evidentemente, supérflua a comandar toneladas de ratazanas. 

         - Eu não sabia, mas não me surpreende. O jornalista Román Protasevich, preso pelo ditador Lukashenko, corre o risco de ser condenado à morte. Toda a história do seu rapto é não só sinistra como delatora do que é um regime titubeia, onde um só homem põe e dispõe da vida de um ser humano como de milhões. A UE, como sempre, vacina nas medidas a tomar. Já o Reino Unido, na pessoa de Boris Johnson, cortou imediatamente todo e qualquer voo para a Bielorrússia. A Inglaterra, por quem tenho grande apreço, não vacila quando se trata do essencial em democracia. 

         - Ontem passei a manhã nos Capuchos. Tanta trapalhada, deste para aquela, exame aqui, outro acolá, sobe e desce escadas, entra e sai de gabinetes, longos corredores, esperas infindáveis, médicos e enfermeiras por uma simples e pequena catarata. Dito isto, fui sempre muito bem acolhido e no final disse à médica e à enfermeira: “vou inventar uma doença para continuar a ser tratado por pessoal tão simpático e generoso”. Gargalhada comum. 

         - Tempo, enfim, de Verão. Mas tenho tanto trabalho a fazer, ando mesmo enervado por não poder avançar devido ao corrupio de consultas que parecem descrever um homem em fim de vida. Agora vou parar com a oftalmologia até Agosto, mas esta sexta começo semanalmente com a estomatologia. No final do mês espero oferecer a quem passar por mim um grande, luminoso e largo sorriso de estrela de Hollywood. Penso até fazer o pinote em pelo Chiado. 


segunda-feira, maio 24, 2021

Segunda, 24.

Como já aqui disse, Mário Soares chamou três membros do CDS para governar com ele. Chamavam na altura ao partido de Freitas do Amaral, de extrema-direita. Por isso, o BE bem pode pregar: termos um acordo à direita ou à esquerda, quer eles queiram quer não, é a democracia a funcionar. 

         - Afinal o partido (são os senhores jornalistas que assim designam o Bloco) possui referências político-ideológicas. Segundo um dos seus membros, o “partido” das duas governantas, tem três tendências internas: leninista, trotskista e estalinista. Olha que três! Felizmente que as meninas e o seu vigário, hoje na reforma, limita-se a sonhar que uma delas venha a ser ministra das Finanças. Podem os três esperar... deitados. 

         - A coisa está preta. Lisboa e Vale do Tejo em breve entrarão em nova fase de confinamento. Tudo resultante do futebol e dos seus adeptos. Os energúmenos que saíram à rua quando o Sporting ganhou, nas tintas para os que não gostam de futebol ou gostando foram comedidos, são os responsáveis. E o Governo, autarquia, clube, polícia, todos deviam responder por um crime que vai sobrar para o SNS, os doentes que esperam há dois anos por consultas, operações, assistência médica. Já não nos chegava a praga em si mesma, ainda temos a doença e o sofrimento a somar à alienação nacional. Se o futebol não agitasse somas astronómicas, não tinha a defendê-lo políticos de todos os quadrantes partidários. Quando jogar à bola era uma actividade amadora, salutar para a saúde, solidária e com sentido humano e cívico, nenhum político o defendia e só os carolas trabalhavam nas colectividades desportivas. No que está hoje transformado – corrupção a granel, exploração, escravidão, alienação, especulação e monopólio – não há político nenhum que o diabolize. Antes, quando era movimento praticado como exercício útil ao bem-estar, tinha labregos, vendedores de pneus, pequenos empresários a apoiá-lo; agora tem médicos, banqueiros, malta da alta finança, muitos ex isto e aquilo, com ordenados principescos e fama saloia que faz vergar as árvores da rua ou os telhados das barracas da Quinta da Marinha à sua passagem. Falam mal, têm esgares de loucos, bebem tinto rasca, vestem fato de treino ao domingo e usam ténis nos pés, exalam bodum, mas todos estão de joelhos a implorar-lhes o benefício. Não sabem o que é o ridículo, ignoram a sobriedade, desconhecem o resguardo. São pura e simplesmente uns pobres coitados, decorados com notas de banco e cartola de palhaço. 

         - Um voo da Raynair foi obrigado a aterrar de emergência na capital da Biolorrússia com o pretexto de armamento bélico a bordo. O único “terrorista” que seguia no avião e foi de imediato preso, era Román Protasevich opositor do ditador Alexander Lukashenko. Se a isto não se chama terrorismo de Estado, o que é então? 


domingo, maio 23, 2021

Domingo, 23.

Nestes últimos dias pegou-se-me uma cavada taciturnidade do passado. Eu tão pouco dado a ir ao fundo das sombras ressuscitar os esqueletos, vi-me invadido pela obsessão de entrar no meu outrora apartamento da Rua de S. Marçal, fazer sinal a Maria que subisse para um serão a dois, onde só ela falava na linguagem sábia de quem não teve nenhuma espécie de instrução, mas por magia da inteligência e do carinho que dedicava ao vizinho do primeiro andar, enchia de felicidade as quatro paredes da sala e as horas deslizavam no encanto do seu convívio. Quantas vezes foi ela que inundou com a sua presença as minhas noites vazias, cansadas, solitárias e chegava sempre com qualquer mimo – um prato de arroz doce, uma compota, uma panela de sopa, meia dúzia de pataniscas – mais a disponibilidade para pôr ordem na cozinha, lavando os pratos que se amontoavam na banca de mármore e outras pequenas tarefas que a minha vida nessa altura desarrumada e cheia de trabalho não permitia. No número 17 conheci todos os hosanas do amor, por vezes impulsivos, como um rasgão que em vez de causar dor, se acomoda nos sentidos traduzindo os instantes de orgias-luz que aquieta, acalma, irmana num mesmo amplexo corpo e alma. Os primeiros acenos de liberdade, foi lá que os vivi, os cantei, naquela imensa casa velha, pombalina, com tectos em madeira e pinturas antigas nas paredes, um saguão para as traseiras com dois bancos em pedra de cada lado das janelas de guilhotina. O sol banhava-a logo às primeiras horas da manhã e, quando a pouco e pouco foram entrando os amigos por muito tempo encostados às paredes da divisão,  até que houve dinheiro para construir a grande estante que ocupava a parede do fundo do escritório, onde eles exibiam silhuetas radiosas. Ao interior chegavam não só os amigos sem imagem publica, como os outros ligados ao mundo onde cedo navegava: colegas jornalistas, escritores, gente da cultura, actores... A vizinhança a princípio estranhou o “miúdo” com cara e corpo muito juvenil pudesse viver só; com o passar dos meses adoptou-me e tinha em todos um amigo. Foi lá que escrevi o primeiro romance, que sonhei uma vida que no íntimo sabia não ser possível, me fatiguei a trabalhar sem espaço verdadeiramente para o sonho, para a vida no pleno do entusiasmo, sem a inconveniência das responsabilidades que sempre me prostraram os ombros. Dividi-me por mil caminhos e nenhum encontrei que pudesse substituir as horas íntimas e profundas vividas dentro daquelas sólidas paredes. Foi lá que me apercebi da imensa liberdade que tinha, e isso formou o meu carácter e juntou a quem sou o elemento original que a minha natureza solitária surpreende os meus interlocutores. O meu projecto de vida, finalmente, sempre se teceu nos fios infindáveis da liberdade. Fui e sou um ser livre e por muito que a idade ao avançar se queira intrometer, acho que possuo no meu interior a força que acumulei nos meus primeiros anos de adulto longe das amarras sociais e morais, naquela casa de S. Marçal onde só entrava quem eu queria e onde a felicidade reinou nos espaços confinados dos segredos de que toda a habitação possui a custódia. Até a minha primeira e inopinada entrega ao amor, na casa ainda completamente vazia, sem uma única peça: mesa, cadeira, colchão, prato ou sofá, nesse dia imorredouro, onde dois corpos em pureza e beleza se consagraram, num suspiro de eternidade, sobre o chão de tábuas corridas, devo as horas que me rejuvenesceram até hoje; a esta tarde cheia de sol, neste lugar isolado onde nenhuma presença humana nem voz de gente chega; reivindico a vida vivida há quarenta anos, num bairro lisboeta sossegado, ouvindo o jogo da bola dos miúdos da rua, num sincronismo perfeito onde tudo e cada elemento traz à recordação a mais impressionante imagem que o presente pode imprimir para sobreviver à catástrofe. Então como agora, resta-me fechar a porta da casa, embrulhar a dor, deixar o cérebro perder-se em imagens de uma nitidez impressionante, respirar o silêncio irmão da liberdade e esperar que a harmonia volte ao enlaçamento do futuro. Carpe diem! Farei os possíveis, querido Horácio. 


sábado, maio 22, 2021

Sábado, 22.

Não vou ao ponto de dizer que o Bloco de Esquerda não é útil à democracia, claro que é. Quanto mais não seja para, no quadro da Assembleia da República, alertar para os desvarios de muita ordem que o PS não ousa tocar. Exemplos recentes não faltam: os dinheiros desviados para o BES, as falcatruas na EDP, etc. Só que o Bloco deve ficar circunscrito à percentagem de votos que o povo lhe concedeu e não insuflar de aparições na televisão, como se as duas dirigentes do grupo fossem uma espécie de madres superiores que velam pelo convento que é Portugal. 

         - Estive a ler as moções levadas ao seu Congresso sendo a principal lutar na posição de anti-sistema. É curioso! Então as duas governantas não têm andado fisgadas em fazer parte do Governo?! Mais: dentro da organização, na Moção Q, há quem diga preto no prato: “Passados mais de 20 anos da sua fundação, surge apenas como partido tradicional: falta democracia interna, militância significativa e protagonismo das bases, sobra centralização, institucionalização e rotina.” Claro, como agrupamento centralizador, inquieta-se com o futuro e pensa na juventude cada vez mais descrente dos partidos e dele Bloco. Então diz: “Não devemos excluir a hipótese da criação de uma juventude bloquista, especialmente se formos capazes de contornar os defeitos que vemos nas juventudes de outros partidos” (não diz quais), mas cita os defeitos: “o tarefismo, o carreirismo e a descriminação dos jovens pelos mais velhos.” Temos, portanto, um Bloco puro, quase místico. 

         - Vou referir apenas como registo o que escreveu Raquel Varela: “A taxação média de um trabalhador está em 27,4% em Portugal, na OCDE 24,8%. Pagamos impostos como ricos, recebemos serviços públicos como pobres.” Evidentemente, somos governados por socialistas que dizem que o país é rico. 

         - Aqui fica um louvor para que não se diga que estou sempre do contra. Gostei das medidas de segurança contra o coronavírus postas em prática no hospital de S. José; mas o Estado continua a tratar-nos de qualquer maneira. Obriga-nos e chegar às unidades hospitalares, por exemplo, às oito para consulta ou tratamento, mas somos atendidos às dez da manhã. Somos lacaios do sistema, não há respeito pelo doente. 

         - Tempo incerto. Sol aos bochechos. O black II trouxe à minha porta um gato preto de tenra idade, morto com dentada no pescoço – exctamente o que fez uma vez o seu suposto pai.  


quinta-feira, maio 20, 2021

Quinta, 20.

Fui de abalada para o hospital de S. José fazer um electrocardiograma de que resultou este comentário: “O senhor tem um coração óptimo.” Bom. A minha oftalmologista quis espreitar para saber como vai este desgraçado que se farta de “inchitar” (linguagem da Madame Juju) quer através da escrita, quer nas sinapses que envia ao cérebro que não se dá ao descanso um minuto mesmo enquanto durmo. Quando assomei à gare da estação de Pinhal Novo, apanhei um susto: tive a sensação que tinha chegado a Angola ou esta havia desembarcado ali. A multidão, sim, multidão de negros era tal que a plataforma de uma extremidade à outra era uma manta escura onde olhinhos brilhavam num desassossego. Eram sete da manhã e quando o comboio parou, em golfadas, todas as carruagens ficaram atulhadas. Enfim, todos tinham máscara, mas as distâncias e a distribuição de lugares, era impossível manter. Em Sete Rios (ou teria sido em Jardim Zoológico, o bebé Nestlé que responda) aquelas revoadas de africanos carregados de mochilas, desembarcou inundando os pisos superiores. Foi o motorista do táxi que me levou ao hospital que respondeu à minha inquietação: “Hoje há greve dos barcos do Barreiro.”  Mas o Barreiro ainda é longe de Palmela, pensei. Mistério. De qualquer modo do nunca visto, salvo em Saint-Denis, mas a periferia de Paris é um recanto de África.   

         - Ontem, ao tentar dormir a sesta, o meu cérebro mergulhou num rodopio de pensamentos sobre a natureza de Deus. Questionei-me como pode Ele acudir em simultâneo aos triliões de pedidos que os seres humanos abandonados e sofredores Lhe dirigem. Porque é preciso observá-los, catalogá-los, fazer a triagem correcta, saber quem merece o Seu auxílio, e tudo isso num espaço de milésimo de segundo. Ante a incomensurável vastidão de questões, renunciei à soneca. 

         - Parece que o Verão se instalou. Dia quente, céu de um azul limpo como mostra a foto que tirei no Rossio todo aformoseado de Jacarandás em flor. 



quarta-feira, maio 19, 2021

Quarta, 19.

Ontem entreguei o dia inteiro a ida e volta a Badajoz. Aproxima-se a época de verão e é tempo de me consagrar à piscina. Este ano com um desejo acrescentado: adquirir um robô de limpeza. Devido ao elevado preço que me pedem por aqui, e tendo precisão de produtos para o tratamento da água igualmente a custos exorbitantes nesta santa terrinha, e ainda necessidade de espairecer depois de dois anos amargurados, espécie de viagem de férias com almoço repimpado no restaurante onde tenho garfo e faca, na companhia dos habitués, Marília e João, por lá nos quedámos até ao fim da tarde. Eu gosto dos espanhóis, adorava mudar-me para Madrid, mas ontem adoptei por largo tempo a praça com o seu jardim florido, as árvores de sombra numa tarde abafada, a  canção trinada dos nossos vizinhos de mesa, aquela paz que cirandava nas paredes dos prédios que fecham o jardim, manto de sombras e afago do calor, da Plaza de los Alféreces. Por largos momentos senti que pertencia ao vento quente que cruzava em golfadas suaves a esplanada onde estávamos em conversa amena e o tempo corria na indiferença das horas, o cérebro amortecido pelo vinho, um assomo de sono no berço aconchegante descendo, descendo, num embalo doce para os braços de Hypnos... 

         - Não há, todavia, bem que sempre dure. Depressa a política se intrometeu, inundando de nojo os instantes de felicidade. João não passa sem ela, não sabe mesmo falar de outra coisa, a cassete que não consente o contraditório, viciada em aceitar as instruções que o Partido impõe. Ao ponto de a mulher concordar comigo quando, em conversa de passagem sobre Thomas Mann, se junta para afirmar que muita da filosofia de Marx foi colhida na Bíblia, “no Novo Testamento” acrescento eu. Naquela família de ateus, só a Marília e a filha Maria João são cristãs. A filha por opção própria, ela, os filhos e o marido, foram batizados já na idade adulta. A Marília é a grande matriarca da família, sem que esta designação aponte para prepotência ou excessos de apoios e condescendências. É uma personalidade como antigamente se significava alguém com carácter, saber e sagesse. João não desarma, não desarma nunca, fala comigo como se eu fosse um ignorante, que não acompanha o mundo em que vive, e repete-me à exaustão as notícias que eu ouço todos os dias, como se eu estivesse morto e houvesse ressuscitado naquele instante. Cita-me as leis que o PCP apresentou na Assembleia, fala-me das acções da esquerda no Parlamento, etc. etc. Digo-lhe que aquilo é um meio engenhoso para o PCP apanhar no colo a democracia e destruí-la logo depois. Porque muitas das acções que propõe sabe que nunca as poria em prática se viesse a ser Governo. São coisas infazíveis que só arruinam o país e quanto mais arruinado ele estiver mais a tomada do poder fica facilitada. É uma tática, uma estratégia que não desarma os comunistas. Como, de resto, todos os outros partidos, embora no caso concreto, devido à sua filosofia, plasmada no que se passa na China, Rússia, Coreia do Norte e alguns outros países de menor grandeza. Depois vem à baila a Hungria. João fala nos direitos humanos postos em causa no país, e eu recordo-lhe quando Costa se associou nessa matéria a Viktor Orbán e reafirmo que Portugal é dos piores países da Europa onde os direitos humanos são tábua rasa. Não me ouve, insiste no facto de na Hungria a imprensa ser amordaçada como se por cá ela fosse independente e livre. 

         - Lá está. Nestes últimos dias cerca de 8 mil marroquinos chegaram a Ceuta a... nado. No número há milhares de crianças e o socialista que governa Espanha (mauzinho, arrogante e tatibitates), trata de os recambiar para o seu país sem demora. Nas imagens televisivas vêem-se pessoas exaustas, crianças debilitadas, uma catástrofe humana que merecia outro tratamento, até porque estão a ser “carne para canhão” como se costuma dizer; sem falar nos Direitos Humanos rubricados na Convenção Europeia. No centro deste jogo político, está o Sara Ocidental que o movimento sarauí reclama e Marrocos combate. A Espanha apoia o movimento independentista e daí o jogo sujo que põe em risco milhares de vidas. A política hoje é isto. Onde falta inteligência, tacto, diplomacia, entram os povos desprezados nos seus países. Que mundo!


segunda-feira, maio 17, 2021

Segunda, 17.

Ao abrigo dos extremismos estão a morrer todos os dias palestinianos e judeus. A já declarada guerra entre a Faixa de Gaza e Israel, não dá tréguas. Na origem está a solução encontrada depois da Segunda Grande Guerra dando primazia aos judeus que com o tempo foram ocupando todo o espaço em pelejas curtas e eficazes. Os árabes ficaram ali encurralados, sem autonomia, à mercê de um povo colonizador, bem armado, que os submete e do qual dependem em quase tudo. Não têm independência, não são livres, não são nada. Todos se indignam porque os judeus sofrem, são mortos; mas ninguém fala nos seus vizinhos que não possuem armamento de defesa à altura, são escorraçados das suas casas e território, vivem pobremente, fazem a guerra com pedras e uns quantos rockets que os sofisticados esquemas de defesa dos israelitas interceptam. Esta hipocrisia internacional tem de mudar para que a paz aconteça na zona. 

         - Há cada vez mais cientistas a equacionar a hipótese de ter havido mão criminosa chinesa na difusão do SARS-Cov-2. Para mim isto é um ensaio, um pequeno-grande teste que vai redimensionar novas formas de conflitos e mostragem para uma guerra económica, dizimadora e eficaz. Portugal respira de alívio, a economia alegra-se, os empresários do turismo esfregam as mãos de contentamento, os militares continuam a considerar as guerras como sempre foram, com os seus altos comandos bem pagos a criar estratégias de defesa, milhões de homens prontos a morrer por interesses de uns quantos que governam lá atrás o mundo. Se me permitirem um conselho, sejam prudentes, mantenham a rectaguarda em alerta, brevemente um outro vírus ou metamorfose do mesmo, inundará o mundo. E talvez Costa tenha razão em querer reduzir custos militares. Os oficiais que não gostam de perder nem a feijões, já vêem a dispensa do lacaio do soldado que, ao volante do carro que nós pagamos com língua de fora, os leva ao aconchego do lar todos os dias. As suas pernas desabituadas de caminhar no mato ou em cenários de guerra, vão ter que subir autocarros e comboios, metro e eléctricos – elas, as pernas, agradecem e nós contribuintes também.  


sexta-feira, maio 14, 2021

Sexta, 14.

Israel invadiu a Faixa de Gaza depois de ter bombardeado o território palestiniano e feito dezenas de mortos. A guerra está declarada e o que surpreende é a resistência de um povo que sempre foi espezinhado pelos que lhe colonizaram não só a terra como as suas vidas. Isto sob a égide de um primeiro-ministro corrupto, que pensa conseguir segurar o posto investindo em força sobre um povo desarmado. 

         - Ontem passei o dia às voltas em Lisboa a tentar resolver pequenos problemas práticos da vida corrente. Sem tempo, apesar disso, aceitei tomar café com o Carlos Soares na Fnac. Longa conversa sobre a obra inovadora de Leonardo da Vinci. Depois, subi à minha antiga morada e entrei no anexo da Faculdade de Ciências para ser inoculado com a segunda dose da Pfizer. De novo tudo bem organizado, onde não faltou o lanchinho do bebé Nestlé que não desiste de namorar os velhinhos que são a maioria da população, embora ontem houvesse já mistura alguma malta nova. O rapaz que me administrou a coisa, tinha um ar tão cansado, mas respondeu à minha pergunta: “Quer então que eu faça um ligeiro strip-tease? Sim, sim – disse, rindo-se. Então vou começar pelo braço. O resto logo se vê.” Gostei de o ver rir-se com vontade. Indaguei quantas vacinas tinha já administrado. “Mais de cem. Então deve estar necessitado duma cerveja fresquinha. Oh, quem me dera!” Cumpri trinta minutos de recobro lendo Sand e depois fui à Alsaciana e comprei duas cervejas frescas e fui levar-lhas. Se vocês vissem a cara do enfermeiro! Encheu-me o dia de ventura e ainda trasbordou para a noite. Vi o homem mais feliz deste mundo. Ele nem precisou de me agradecer, porque não lhe dei ocasião para isso debandando imediatamente.  

         - Vou citar apenas para enquadrar. O que aconteceu com os adeptos do Sporting  aconteceria com os do Benfica ou Porto. Aquilo é tudo igual e saído do mesmo forno. O clube ganhou vinte anos depois de andar a apanhar bonés, mas ganha num tempo de pandemia, um tempo muito perigoso para todos nós. As manifestações primárias que se seguiram são típicas da quase maioria dos patetas do futebol. Este é o país que temos, aqui está este povo. Ponto final. Acontece porém, que este país tem um Governo, polícia, gabinetes cheios de funcionários públicos, de cabeças pensantes, e vai daí o que sucedeu foi haver milhares de adeptos nas ruas até às cinco da madrugada, todos juntos, sem máscara nem distanciamento, gritando, abraçando-se, bebendo, cantando ante agentes da autoridade a carregar sobre eles (houve alguns que deram entrada no hospital), enquanto os jogadores no interior do autocarro festejavam também. No dia seguinte – televisões, rádios, jornais, povo anónimo, as oposições fraldiqueiras e oportunistas – gritaram indignação, falta de ordem ou esta malbaratada por este e aquele gabinete, ministro ou autarquia... até que um jornalista insuspeito, aproveitando a presença de sua excelência o primeiro-ministro perguntou-lhe que tinha ele a dizer da anarquia perigosíssima para a maioria dos lisboetas. Sabem o que sua excelência respondeu? Exactamente o que costuma retorquir: “Está a correr um inquérito para se apurar responsabilidades e mais não digo.” O grande homem, fino e esperto, conhecendo o sistema, sacode a água do capote, espera pacientemente que a tempestade passe, ficando como sempre incólume. Então não é tão divertido sermos governados por uma cabeça assim! Tiro-lhe o chapéu, excelência. E mais: conte com os 10 milhões de votos que ando a monopolizar para si. Sim, sim para sua excelência. São seus. 


quarta-feira, maio 12, 2021

Quarta, 12.

Eu devo ter dado a ler o livro Os Guardas-chuvas Cintilantes de Teolinda Gersão ao meu saudoso amigo Alexandre Ribeirinho, porque dentro das suas páginas deparei com um bilhete dactilografado (ele tinha uma letra que não se podia ler) que diz assim: 

Querido HELDER, 

Refª TG – Pequenas histórias em pequenos livros. Tudo muito pequenino. Não há pachorra. Parto para outra e aproveito melhor o meu tempo! Todavia, o meu obrigado. A.R. Maio 99.” 

De facto, o livro é mauzinho. Mas não digas isso. Depois queixas-te que ninguém te quer editar. Aprende a viver, homem de Deus! Sê manso, cordato, bem comportado, em uníssono com toda a gente; lembra-te que vives num país onde todo o mundo é genial, onde existe o maior número de candidatos ao Nobel, onde escrever é uma moda que dá estatuto e não há menino ou  menina que não diga “eu sou escritor”.

         - Justamente, estou grato a Teolinda Gersão que me incentivou a ler a biografia La Vie de Katharina Pringsheim, escrita por Inge et Walter Jens que eu comprei há anos nos bouquinistes do Sena, em Paris. 

         - Os enfermeiros desceram à rua para reivindicar aumentos e condições de trabalho. Têm razão quando há dinheiro para as loucuras ideológicas como a TAP, pacotes de milhões para banqueiros e assim. Depois de se terem servido deles, de os terem obrigado a trabalhar em situações limite, põem-nos borda-fora e sem subsídio de desemprego! Isto é tratar as pessoas como tratam os imigrantes, os reformados, meio mundo de portugueses que são empregados do Estado, não dizendo em nenhum lado que temos um sistema marxista-leninista. Um país onde tantos milhões vivem a expensas do Estado, não é um país livre nem os seus cidadãos independentes. 

         - A Rússia virou um lugar próximo de qualquer reduto americano. Um rapaz de dezoito anos entrou numa escola armado e matou sete colegas e uma professora, ferindo umas dezenas mais de pessoas. A mortandade deu-se no Tartaristão.  

         - Também Israel voltou ao desassossego costumeiro. Entre Jerusalém e Faixa de Gaza os confrontos não dão tréguas. Os palestinianos utilizam pedras e pouco mais, os israelitas balas de borracha e granadas de atordoamento. Tudo porque a semana passada seis famílias palestinas foram expulsas por colonos armados em período de Ramadão. Vale tudo: assaltos a Mesquita Al-Aqsa, Pátio das Mesquitas... O Crescente Vermelho Palestiniano registou pelo menos 320 feridos e houve alguns mortos de parte e outra. 


terça-feira, maio 11, 2021

Terça, 11.

Pois é. Não sei o que me deu, quando ontem pus em dúvida que Teolinda Gersão tivesse conhecimento do Diário póstumo de Thomas Mann. Esta manhã, fui espreitar a minha biblioteca de autores portugueses, e encontrei dois livros da autora que eu havia lido quando saíram em 1984 (Os Guarda-chuvas cintilantes) e 1989 (O Cavalo de Sol). Depois sentei-me lá fora ao sol a folheá-los. De repente, peguei no último que mereceu a minha atenção. Abri numa de ler o que havia sublinhado ou anotado, quando, para meu espanto, dou com este pormenor que não deixei de ter grifado: “Mais tarde, ainda nesse ano de 1920, registei que o tinha encontrado completamente nu (ao filho Klaus), e que o seu corpo radioso de adolescente me deslumbrara. Tinha sido uma vivência avassaladora.” (pág. 71) Justamente a passagem que eu havia assinalado ontem é na realidade realçada pela autora no O Regresso de Júlia Mann a Paraty. Como boa e conscienciosa escritora e professora, ela conhecia e tinha lido os dois grossos volumes do Diários e decerto em alemão. Então o que aconteceu para ter-me esquecido? Só encontro uma razão: sendo o livro constituído de o primeiro capitulo onde Freud interpela Thomas Mann e o segundo o inverso; eu ter apreciado particularmente a construção argumentativa do psicanalista.  Depois a autora falava de Viena que eu ao ler não deixava de sobrepor as recordações que tinha vivido na capital de Áustria, em 2016, quando visitei a casa do criador da psicanálise, no número 19 da Berggasse. 

O célebre canapé em que me sinto a mais no gabinete do ilustre médico.  



segunda-feira, maio 10, 2021

Segunda, 10.

No fim-de-semana li o último livro de Teolinda Gersão que havia comprado na livraria do Corte Inglês sexta e saído há um mês: O Regresso de Júlia Mann a Paraty. As personagens interessavam-me e julgo conhecê-las sobejamente bem. O trabalho é interessante porque efabula sobre dois homens que marcaram o século XX: Freud e Thomas Mann. Escrito com sobriedade (aparentemente) ao correr da pena, num português exemplar e escorreito, lê-se com satisfação e gosto. O duelo que em vida os dois homens não tiveram ou se aconteceu foi na cave psíquica onde cada um escondia as frustrações e vaidades, os desafios humanos e o destino que a vida escolheu por eles. Mann acusava o psiquiatra de judeu ganancioso por dinheiro; Freud Thomas de homossexual reprimido, invejoso dos êxitos do irmão Heinrich que viveu liberto de convenções morais e outras, abraçou o comunismo como o álcool e várias “excentricidades”, não deixando de ser um excelente escritor, facto que incomodava Thomas cuja escrita para mim não passa de burguesa à moda do Séc. XIX, ambígua, que não abriu aústes para outros domínios senão os que sua natureza reclamava mas ele temeroso recusava. Embora tivessem muito em comum -  fascinação por mitos e pelas filosofias de Nietzsche e Schopenhauer - no dizer de Teolinda Gersão, cada um com suas características intrínsecas, não deixaram de se apreciar e mirar de longe. Suponho que só se encontraram uma vez e foi no caminho de alguma epistemologia que alimentava um e outro, num meio excitante da ciência e da descoberta do eu profundo, em Freud como em Jung, Schnitzler que imperou no princípio do século XX. Desarmando muito do que se dizia da relação entre Freud e Salomé,  a vida dupla que cada um levava, Freud com as suas teorias e Thomas com os seus romances onde só dele fala por entrepostas personagens. “A formação do analista é por natureza diversa à liberdade proteiforme, ou `mágica`, do escritor”, observa certeiramente a autora. Até ao fim da leitura, duvidei se Teolinda Gersão teria lido os Diários póstumos de Thomas Mann. Diários que ele quando deixou a Alemanha atormentado por Hitler, abandonara esquecidos para trás. Apercebendo-se do facto no sul de França (julgo) onde estava refugiado, ordenou ao filho mais velho que fosse ao número 1 de Poschingerstrasse, em Munique, buscar o pacote onde estavam guardadas as centenas de páginas, com a admoestação de não deitar o olho àquilo que ele havia ciosamente escondido. Porque - assim me parece -, se as tivesse lido teria constatado que estão nelas grafadas muita da suspeita de Freud. (O paralelismo entre o Diário de Julien Green com indicação do autor para ser conhecido 50 anos após a sua morte, é neste caso inevitável). Aliás, as relações entre Thomas Mann e o seu filho Klaus são espantosas de descarga emocional, social e moral, e decerto de uma extrema ambivalência de sentimentos. Notável escritor, Klaus, sempre assumiu a sua homossexualidade e a sua dependência das drogas, tendo-se, inclusive, após o fim da Segunda Grande Guerra, suicidado por overdose. Recordo-me de uma passagem em que o pai entra inopinadamente no quarto do filho e o vê nu, e o que ele em consequência anota no Diário. De resto, saliento, se as relações entre o irmão mais velho e Thomas foram desastrosas, já entre Heinrich Mann e Klaus Mann muito amistosas. Eram dois espíritos livres que se apreciavam e respeitavam. Klaus tinha a obra do tio em grande apreço e foi, muito antes do pai, o primeiro a antever o Nazismo. Ele e a irmã exilaram-se nos EUA, o pai muito tempo depois juntou-se-lhes. Há este comentário logo nas primeiras páginas de Teolinda Gersão, que encerra o mundo que foi o do autor de Os Buddenbrooks: “Tudo na vida de Thomas Mann se traduzia numa dor maior do que é usual nos seres humanos, apesar de ele possivelmente não a sentir desse modo, porque se tornara quase incapaz de sentimentos.”  Eis um trabalho sério e criativo do ponto de vista literário e psicológico que eu recomendo aos meus leitores. 

         - No barbeiro esta manhã. Na cadeira ao lado, cliente e empregado conversam. Aquele conta a este que um amigo, acérrimo comunista com dinheiro, decide comprar um carro. O mais proletário que lhe parecia, era o jipe X e vai daí abre os cordões à bolsa. Pensando à moda antiga que devia fazer a rodagem da máquina, rumou, claro está para o Alentejo. Nas grandes planícies alentejanas gado não falta e eis que de súbito uma mancheia de vacas atravessa a estrada. O homem pára de repente uma vaca enfia os cornos na dianteira e o pobre condutor reclama vendo a chapa amolgada. Aqui começa a narrativa do barbeiro enquanto vai  tosquiando, fazendo a barba, lavando a cabeça e tudo o mais a que o rechonchudo cliente tem direito. Uma história leva a outra. Então, nesse mesmo Alentejo pachorrento, o nosso barbeiro em passeio com a mulher e uma amiga desta, também encontrou uma vaca: “Tava a minha mulher e a amiga, tás a ver, as gajas cagadas de medo, e o cabrão, tás ver da vaca, não saía do caminho. Tentei ultrapassar a porra da vaca, mas ela pôs-se a correr pela estrada fora, tás a ver. Para te dizer, tás a ver, que no Alentejo as cabronas das vacas vai lá vai. Depois lembrei-me de buzinar e foi quando a filha duma grandessíssima putona, borrada de medo, correu para a margem e eu pude continuar a viagem, tás a ver.” O tema repetia-se ad nauseam e os dois comparsas pareciam colher dele a história mais fabulosa das suas vidas. 


domingo, maio 09, 2021

Domingo, 9. 

Sexta-feira passei todo o santo dia às voltas em Lisboa. Comecei na Brasileira, depois almocei no Celeiro, fui no metro ao Corte Inglês, deste à Avenida de Roma ao Reviera, tornei à loja espanhola para ir ao lado à Nespresso, dali no metro ao dentista e pelas seis da tarde apanhei um táxi de novo para a Avenida de Roma e embarquei no comboio apinhado como eu costumava ver antes da pandemia quando o passe embarateceu as viagens. 

         No metro, a dada altura, sentou-se a meu lado um rapaz que exsudava simpatia e um toque natural de ternura. A propósito de irmos lado a lado, fomos conversando. Saímos na mesma estação e à nossa frente iam dois homens de mão dada. Perguntei-lhe para o provocar se era capaz de andar daquele modo na rua. Ele riu-se e devolve-me a pergunta. Digo-lhe: “Sou doutra geração.” Resposta imediata: “O homem mais velho tem bastante mais idade do que você.” Gargalhada espontânea. Assim nos despedimos, seguindo em sentidos opostos.   

         - Estou absolutamente de acordo com a intersindical quando afirma que o magusto da UE no Porto foi uma mão cheia de coisa nenhuma. 

         - Assim como estou em sintonia com Biden quando pede o levantamento imediato das patentes da vacina contra a Covid-19. A nossa querida (des)União Europeia é a favor de os laboratórios onde os governos injectaram vários milhões com o dinheiro dos contribuintes continuem a ganhar fortunas, enquanto em vários países, sobretudos africanos, morrem todos os dias milhares de almas. 

         - A propósito de vacinas. A Sputnik V que Putin, na televisão, anunciou com pompa e circunstância, indo ao ridículo de dizer que a filha já a tinha tomado (como se não bastasse o nome já caricato do foguetão), não há quem a queira. A juventude russa recusa-se e não só. O índice da população que não tem confiança na droga que o ditador quer impor, é assustador. Bem dizia eu ao João Correedor quando ele festivo me anunciou que “a Rússia já produziu uma vacina” eu lhe respondi: “Só a tomo depois de ti.” 

         - Noite e parte do dia tenebrosos. Fortes chuvadas inundaram os caminhos e deixaram no resguardo o mercado mensal do Pinhal Novo. À tarde abriu um sol quente e brilhante que eu aproveitei lendo lá fora estendido na chaise longue e de seguida para queimar um montão de entulho vegetal. 


sábado, maio 08, 2021

 Sábado, 8.

O episódio do empreendimento turístico de Odemira, não pára de nos surpreender. Desde aquele oficial graduado da GNR, todo pimpão por aparecer na televisão congratulando-se com a “operação bem sucedida”, ao patético para não dizer pateta ministro do Interior, o tal que é ministro exclusivo do partido onde milita, tudo é de tal modo desastroso que desta não sairá imune o primeiro-ministro, principal responsável pelo que aconteceu mais uma vez na noite de ontem (o homem deve gostar de morcegos). 

         - Pelas vinte e duas horas, uma patrulha da GNR fez levantar os malogrados imigrantes das camas do resort Zmar onde, esgotados do trabalho e da confusão descansavam, enfiá-los nas carrinhas e viajar para outro aldeamento onde outras casas e outras camas os esperavam. O que aconteceu entretanto? A resposta vem segundo os quadrantes políticos, empresariais, autárquicos e governamentais. Não tenho visto noticiários nacionais (ufa!) desde que consegui montar a nova box que me dá acesso ao essencial do mundo. Vou por isso, reter-me no que leio no Público. Na origem desta reviravolta, está a falsa requisição civil, redigida pelo tal amigo de Costa, e que os residentes do empreendimento não aceitaram e compagina abuso de poder por parte do ministro da Administração Interna. Ela foi escrita pelos dois amigalhaços, António Costa e Eduardo Cabrita. Entretanto, ontem, o Supremo Tribunal Administrativo aceitou a providência cautelar apresentada pelos donos das habitações do complexo. Isto levou o Governo e a Câmara de Odemira a acelerar uma alternativa. Talvez a sequência dos factos não seja bem esta, porque, como é usual nas leis portuguesas, nada é transparente para permitir aos inchados advogados manterem o seu estatuto de homens abastados e acima das leis que eles próprios fazem. 

         - Este é o Portugal democrático que os políticos tanto louvam e ai de quem proclamar o contrário, leva logo um arraso de fascista e enfiam-no no buraco do inferno a pontapé por um qualquer polícia que não defende o cidadão, mas quem lhe dá o pão-nosso de cada dia e tem poder. Para se perceber o país que os democratas depois de quase 50 anos de democracia construíram, vou transpor esta passagem do artigo de João Miguel Tavares, sempre bem documentado e lúcido (naturalmente para a esquerda, fascista). “(...) o Governo decide requisitar o Zmar inteiro, embora só precise de uma dezena de casas. Os proprietários afiam logo as garras, embora não sejam as casas deles nem se perceba muito bem que propriedades têm (as casas mas não os terrenos em que as casas estão?). Os responsáveis pelo Zmar agem como não estivessem falidos e o seu maior credor não fosse o Estado (60 milhões de dívida diz Cabrita). E o próprio Zmar que só tem licença de parque de campismo (e caducada ao que parece) que foi construído em cima de uma reserva ecológica; que é um projecto PIN (Potencial Interesse Nacional)  dos saudosos tempos socráticos (o homem está em todas, acrescento eu); que foi inventado por um membro da família Espírito Santo (oh! exclamo eu); e que foi financiado pelo BES; esse Zmar é, de facto, o cenário de sonho para exibir as disfuncionalidades do país – infelizmente à custa de gente paupérrima, que agora foi de novo enxotada por ordem do tribunal. É caso para perguntar: onde está o Estado, onde está a justiça, onde estamos nós.” Portugal está aqui bem retratado: o Portugal de ontem, de hoje e de sempre. Temos e tivemos perpetuamente maus políticos, os portugueses não merecem tão má sorte. Francamente.  

         - E todavia. Que dignidade oferecemos nós aos que nos vêm ajudar no trabalho que hoje os portugueses armados em finórios ou mal pagos pelos patrões não querem fazer. E lembrar-me eu do que vi nos anos Setenta, em Paris, aonde fui fazer uma série de seis ou sete reportagens para o jornal A Capital sobre a condição dos nossos concidadãos em França. O bidonville de Saint-Denis nos arredores da capital, era um campo de vários hectares de barracas, caminhos enlameados, miséria, promiscuidade, tristeza e dor onde viviam milhares de emigrantes que tinham saído do país “a salto”. De cada vez que lá fui em trabalho, chegava a casa e fechava-me no quarto para descarregar a tensão num choro convulsivo. Não suportava aquela desumanidade, aquele sítio onde ratazanas passavam enquanto entrava nas “casas” de tábuas carcomidas, buracos autênticos que os humanos dividiam entre si como se fossem animais. Uma vez pedi a um casal do Minho que me deixasse pernoitar na sua barraca. Aquilo eram duas divisões onde tarde na noite apareceu o filho de ambos pelos seus vinte anos. A mulher fez o jantar – bacalhau, batatas e couves galegas. Chovia se Deus a dava, trovejava, relampejava. Na divisão maior onde dormia o casal, era também a cozinha e sala de jantar, na outra repousava o rapaz. Foi com ele que dormi – enfim, forma de falar – numa esteira. Ele, abatido e morto de cansaço adormeceu logo; eu não me podendo mexer com medo de tombar da cama, passei a noite em claro, submerso num mundo de sons absolutamente terríveis: cães que ladravam sem parar, chuva a bater no telhado de chapa, ruídos de vozes, gemidos, o ressonar do rapaz e dos pais, o roncar dos trovões, como se aquele lugar fosse de almas errantes que pelo adiantado da noite ali desaguavam para levar as dores dos seus habitantes ao sacrifico do novo dia. Quando a madrugada brumosa e cinzenta mal despontara, comecei a escutar o arraial de vozes surdas, portas a bater, bacias e baldes a despejar para as ruas desordenadas do acampamento bátegas de líquidos que pareciam bofetadas ao cair no lodaçal daquele imenso, vasto campo de concentração de escravos humildes, belos, nobres e bons. Por estranho que pareça, ao despedir-me dos que me deram a possibilidade da experiência, sentia-me feliz, pacificado, por ter descoberto que a felicidade, a beleza, a dignidade interior, o aconchego das pessoas queridas, a solidariedade, passa ao lado da pobreza e do abandono dos abonados da fortuna. Ali todos eram irmãos no infortúnio, na luta pela sobrevivência, nos sonhos desenhados ao relento numa qualquer aldeia nortenha, longe do país que não os amava, onde a pobreza e a miséria – afinal a mesma que eles ali viviam – era mais suportável fora da terra que os viu nascer. Depois, mais tarde, vieram os prédios gigantes para aonde transferiram os portugueses tapando assim a vergonha xenófoba dos franceses, espécie de patamar de adaptação ao convívio civilizado. Mas isso é outra conversa de que em altura própria falarei. Por isso, é que me revolta assistir ao que se passa com os imigrantes em Odemira e noutros lugares. 


         - Parece que António Costa em fim de governação da União, botou discurso com banquete no Porto. Merkel não veio. Foi um dia e tal de palavras, palavras, promessas, promessas, desejos e desejos. Tudo o vento norte levará no seu sopro quente. As nossas televisões e jornais derramaram laudas sobre o assunto. O canal 2 francês e a BBC uns escassos cinco  minutos. 


quinta-feira, maio 06, 2021

Quinta, 6.

Os administradores do BES, apesar dos prejuízos e dos adiantamentos ao banco com os nossos impostos, vão receber dois milhões de prémio. Em Portugal nada surpreende, tudo é natural. Os administradores fazem parte da clique que nos governa. Não são políticos, mas já por lá passaram ou para lá se mudarão na dança asquerosa de cargos público-privados. A isto chamam eles democracia. 

         - Falei ontem dos acontecimentos em Odemira. Vivo revoltado nesta “democracia” prepotente, que não difere muito de um regime de oligarcas, medíocres e débeis, que mostra a sua força com um contingente de dezenas de GNRs na rectaguarda, pretendendo com essa força activa defender a dignidade e a vida dos trabalhadores que no Alentejo estão em condições desumanas. São os anjos da guarda dos infelizes, pretendem distinguir-se da direita com atitudes democráticas que salvaguardem os direitos dos trabalhadores e a honra do trabalho. Mas não passam e um punhado de hipócritas com um ministro dito do Interior, apatetado, que é verdadeiramente ministro do PS, todos assustados com o barulho que se instalou nas televisões das quais dependem em absoluto e para as quais trabalham em exclusivo. Pela calada da noite, fizeram levantar um punhado de migrantes, meteram-nos em carrinhas, arrombaram o portão de um empreendimento turístico e com cães, armas, gritos e ameaças acordaram os legítimos proprietários do resort e forçaram a entrada dos homens com crianças, assustados e sem falar a língua, cheios de fome (todos ficaram sem comer toda a manhã), exaustos, distribuindo-os pelas casas vagas. Entre eles havia positivos por Covid-19. A ordem veio do primeiro-ministro obrigando os legítimos donos das casas a aceitar a requisição com o objectivo de instalar pessoas infectadas e outras em situação de “insalubridade habitacional inadmissível, com hipersobrelotação das habitações”. O Governo socialista, lava assim as mãos como Pilatos. Em vez de ter feito o trabalho que lhe compete em casos destes que, aliás, se repetem todos os anos, aqui como em Espanta, preferiu iludir os portugueses em vez de se responsabilizar e aos culpados por este degradante e trivial caso: Ministério do Interior, autarquia, polícia local, Ministério da Agricultura, etc. Mais a mais quando os residentes sempre estiveram disponíveis para encontrar soluções para os pobres escravos; o que eles não esperavam era serem acordados de madrugada como se uma corja de ladrões lhes estivesse a assaltar as casas. Este espectáculo sinistro, degradante, miserável, prepotente de um governo, é a imagem da gestão de António Costa durante todo o mandato. À boa maneira fascista-comunista, decreta-se a propriedade privada como se fosse coisa do Estado central. Todos têm culpas no cartório, só Costa, qual deus todo-poderoso e puro, fica de fora. Espero com estas minhas indignações livres e sem temores, levar os meus leitores na hora de votar a reflectir. 

         - Só uma pergunta ingénua: em que é que estas duas situações, diferem do sistema que anteriormente reinou no nosso país?


quarta-feira, maio 05, 2021

Quarta, 5.

A senhorita Ayuso por quem não tenho grandes simpatias, espécie de Durão Barroso com saias, derrotou o fracote e convencido Pedro Sánchez. A vitória foi tal, que passou para mais do dobro nos lugares autárquicos de Madrid. Bravo! De resto, ela só teve mais votos que toda aquela esquerda esfarrapada que já grita injustiça, não percebendo se a direita está a impor-se por todo o lado, a falta é sua ao teimar em prorrogar a manápula manipuladora e propagandística de ideologias ultrapassadas. 

         - Faleceu aos 73 anos o artista Julião Sarmento. Privei com ele quando ele ainda não era ninguém, mas já se revelava alguém. Paz à sua alma e ao seu corpo acossado pelos calores ensandecidos das primaveras. A sua obra, grosso modo, é notável e com alto  sentido de modernidade. O Público traz o seu elogio fúnebre e muito merecidamente. 

         - A dívida nacional está em 125% do PIB. Bah! Que novidade! Então o Portugal democrático não andou sempre por este valor! 

         - Os políticos parecem maluquinhos, coitadinhos. Pior. Querem passar para nós os seus desvarios que vão e vêm ao sabor das conveniências que dão votos. Vem isto a propósito da escravidão dos migrantes nos campos alentejanos. Portugal e Espanha, dois países tidos por católicos apostólicos romanos, são conhecidos de longa data como dois viciados em explorar desumanamente os infelizes que vêm de longínquas terras para a apanha de tomate, uva ou morango. Pois bem, fazendo tábua rasa deste facto que se repete sazonalmente, carpem com lágrimas de crocodilo o triste fim dos estrangeiros que acolhemos, vão a correr para Sul, desorganizam a escravatura e as suas condições logísticas e, com tal cinismo político o fazem, que os trabalhadores ficam sem ganhar a jorna. Tudo isto porque este governo, governa de olhos postos nas televisões e quem a elas se socorre acorda os madraços governantes que de programação, fiscalização e sanidade nada percebem nem estão para se incomodar. 

         - Comecei o dia de enxada na mão limpando os canteiros de hortênsias. Depois do duche, súbita alegria, como se aprendesse a respirar de novo, todos os pensamentos opressivos a despedirem-se do meu corpo glorioso em chamas de vida. Glória! Glória! 


terça-feira, maio 04, 2021

Terça, 4.  

Francamente não quero entrar em depressão. Mas o que sei de concreto em consequência é que sinto que tudo rui à minha volta. Desde 14 do mês passado que não acrescento uma palavra ao romance, estendido numa secura incrível que chega a ferir-me não só psicológica como fisicamente; além de arrastar consigo o meu quotidiano que depende inteiramente de mim. Se paraliso, pára tudo o resto investindo eu na leitura como forma de equilíbrio. Mas os trabalhos no campo, no jardim, na quantidade de pequenas grandes coisas que viver numa quinta acarreta, é levado na torrente de desânimo, apatia, melancolia. Como se o mundo se tivesse ausentado para mim e para ele eu não passe de uma miríade de dor suspensa algures numa sombra em viagem, um mergulho no nada obscuro. O coração parece ter definhado, o meu cérebro soltado num turbilhão de sentimentos; não estou comigo, gravito numa dimensão oca, submersa, irreal. Tudo em mim é alheio a tudo. Vivo numa caixa de pressão. Não sou eu, levo os dias a mendigar a luz do alto, apetece-me apagar o tempo, exportá-lo para lugares inóspitos, para sítios inacessíveis que o transformem num cadáver mais fino que a areia dos desertos. Ando a matutar em recomeçar O Matricida de novo, reorientar a obsessão de Semyon pela mãe numa perspectiva de desconhecimento absoluto da sua existência, sendo o material da narrativa contado pelo pai. Este modo, aliviar-me-ia o cérebro porque o esforço psicológico que eu concentro na história vista pelo filho, esgota-me. Mas então, assim sendo, levanta-se outro problema: como pode Semyon varrer da memória uma existência que não viveu ou viveu enterpostamente? Por outra lado, a passagem de testemunho paterno pode carregar muito ódio, falsidade, sofrimento  comum aos casais que se separam. Que tipo de homem vem a ser Semyon? Terá ele o discernimento, a capacidade de encarar a vida adulta com os paralelismos falsos da uniões perfeitas típicos das sociedades moralistas e superficiais? Não tenho coragem de contar tanta perturbação a ninguém. Por isso, é a este refúgio que consigno as palavras que não ouso contar a alguém, mas me atravancam as noites e os dias. Anseio até que a Internet se afunde para sempre. 


segunda-feira, maio 03, 2021

Segunda, 3. 

Vou resumir a discussão, por vezes azeda, que tive com o Carmo de manhã e mais tarde com o João, a propósito da dor que o primeiro tem por não ter entrado no catálogo dos 100 anos do Partido Comunista: a caricatura só é arte quando contorna a realidade e se impõe enquanto objecto de confronto com o quotidiano. Tenho dito. 

         - É avassalador o que se passa na Índia onde grandes fogueiras a céu aberto queimam os corpos por covid-19. As filas para cremação são imensas e o fogo arde noite e dia. O país está sem oxigénio e os infelizes chegam num estado doloroso de aflição, morrendo pouco tempo depois imagino numa agonia inumana. O Governo tem culpa de toda esta tragédia que por estes dias atingiu o número condenável de 400 mil novos casos. 

         - Estamos em Maio e o frio não nos larga. A nós e pelo que vejo na BBC, TV5Monde ou Rai todos falam do mesmo nos noticiários de meia hora. Terminei a limpeza da erva invasora do lado das figueiras, mas tenho de voltar a rapar na frente da casa porque as chuvas que não dão tréguas o impõem.  


sábado, maio 01, 2021

Domingo, 2 de Maio.

Chamam-lhe o dia do trabalhador. Entre nós os comunistas assenhorearam-se dele e, obsessivamente, despejam nas ruas a massa de descontentes que muitos deles vi apoderarem-se dos bens dos ricos quando a revolução estava na rua. Até colegas meus jornalistas, ficaram com bens que a avidez de possuir aquilo que condenavam aos capitalistas, parecia esquecida ou por direito lhes pertencia. A verdade é esta: quem verdadeiramente precisa, vive abaixo da linha de pobreza, luta como um desesperado por sobreviver, não tem força anímica, partido que o apoie, esforço suplementar para reivindicar aquilo que os manifestantes reclamam: estes que possuem trabalho, ordenado em conformidade, vida mais ou menos estável, fazem das reivindicações políticas e imprescindíveis uma festa; enquanto aqueles olham com desdém e impotência a má sorte que se instalou nos casebres onde esperam por sóis que nunca chegam. Karl Marx isto não previu... 

         - E portanto. Esta manhã, estando por aqui lojas e supers abertos, quero dizer umas centenas de trabalhadores de costas voltadas ao seu dia (perguntei a um ou outra se tinham sido obrigados todos disseram que não), pude adquirir o Público. Mas recordo-me, quando uns aninhos depois do 25 de Abril, os centros comerciais começaram a ignorar o Primeiro de Maio, ter abordado uma empregada no super indignado por a ver a trabalhar, ela me ter respondido: “Se ninguém fizesse compras neste dia, eles eram obrigados a fechar.” Resposta certíssima que mereceu da minha parte este parecer: “Nunca tinha pensado nisso e dou-lhe razão. A partir de agora não entrarei em nenhuma loja neste dia.” Assim aconteceu durante anos. Até que uma vez, tendo sido convidado para almoçar por um colega PCP que decerto se esquecera da data, assim que entrei no restaurante disse ao empregado: “Hoje ninguém devia comer fora. Porquê? Porque é o seu dia de descanso. Nada disso. Eu se não trabalho, não como.” Tanto o meu amigo como eu empancámos. Marx na sua tumba deu duas voltas... 

         - Aconselho vivamente aos meus leitores o artigo de António Barreto hoje no Público. É de antologia.