Terça,
24.
Outro
dia fomos ao teatro ver a peça de Jean-Baptiste Poquelin, mais conhecido por Molière,
Trissotin ou Les Femmes savantes. A
encenação é de Macha Makeieff e, embora a acção se passe no século XVII, a senhora
transpô-la para os anos Setenta do século passado: cenários, guarda-roupa,
mobiliário de cena, artifícios químicos e até um gravador de bolso. Bom. Não li
o penúltimo original escrito pelo autor de Tartufo
antes de morrer, mas do que me foi dado ver, tudo é permitido e o resultado
balança entre uma peça de revista à portuguesa e uma de boulevard, sem contudo
deixar de reconhecer que há nela momentos muito bem conseguidos de humor e
criatividade. Seja como for, o texto do ilustre escritor preferido de Louis
XIV, resiste a tudo e passa incólume através dos tempos a todas as
barbaridades. Uma nota para o naipe de actores. As três mulheres loucas (uma
delas é representada por um homem num papel absolutamente extraordinário,
Thomas Morris). Quanto a Trissotin sublime de provocação e sedução. Pena que a
realizadora não tivesse desenvolvido melhor esta figura central de poesia e
humor, hipocrisia e sensualidade, representada pelo actor Geoffroy Rondeau. Um
espanto agradável: a sala do TGF estava esgotada, não obstante o terror de
novos ataques. E nela, em grande número, imperava a juventude. O teatro – é
salutar reconhecer - permanece enraizado nos franceses.
- Justamente. Sempre ouvi e li toda a
espécie de insinuações sobre a autoria das peças de teatro escritas por
Molière. Muitos estudiosos dizem ter sido Corneille o seu autor. Bom. Por outro
lado, o público interesse de Louis XIV pelo autor-actor, mais não era que o
interesse de um rei centralizador e prepotente que punha e dispunha de um homem
polivalente e trabalhador que trouxe à arte de representar uma riqueza
literária e cénica impressionantes. Na aurora do género operático, vindo de
Itália, pelo final do século XVII, o Rei-Sol, percebeu a importância da nova
expressão artística e logo, pura e simplesmente, deixou cair Jean-Baptiste Poquelin
seu protegido, em favor de Jean-Baptiste Lully. No final da vida, apesar de doente,
nunca abandonou os palcos e a trupe de actores que o acompanhou por todo o lado
e que ele adoptou como família. Um entre todos se distinguiu pelo afecto e a
ternura, tão intensos que as más línguas atribuíram uma relação amorosa. Morreu
em cima das tábuas.
- Green est toujours assez beau, si l´on veut: un air de jeune santé, de
gros pieds aux vilains soulliers, et la réserve saxonne qui n´est pas de la
maussaderie. Mais il n´est pas très intelligent, ou plutôt il n´a aucune
habitude à l´intelligence: il n´y manoeuvre pas, n´y voit pas... Catherine
Pozzi, Journal (1913-1934). Pozzi
fala deste modo do autor de Mont-Cinère
porque ele nunca se envolveu nas questiúnculas literárias e nem sabia nadar
nessas águas. Ia nos seus 28 anos e uma vida por cumprir. Portanto, madame,
ponto final.
- Um dia da semana passada, fomos
tomar café a casa da actriz Hélène Delavault. Ela habita próximo da Place
Clichy, num magnífico andar decorado com gosto, no prédio que é propriedade da
Ursula e onde eu vivi no passado uns tempos. Conheci a Hélène começava ela o
caminho para a celebridade de que hoje usufrui. Mulher de teatro, do canto, do
espectáculo, produtora, encenadora, actriz nem por isso perdeu o encanto de
sedução e simpatia que tanto me atraíram e nos fez juntar numa amizade que
perdura através dos anos. Mesmo em casa, não deixa a postura que é natural
nela, aquela que os espectadores vêem na televisão ou no teatro, e de que os
olhos são os atributos mais impressionantes a par de um corpo de mulher elegante,
quase sempre vestida de escuro. Durante o encontro conversou-se muito dos
atentados, mais a mais porque ela adora Saint-Denis e tinha acabado de adquirir
um andar no prédio que fica mesmo por detrás daquele onde os trágicos
acontecimentos tiveram lugar. Como tinha um programa demasiado preenchido, não
pude aceitar o convite que me fez para ver a peça Farben de Mathieu Bertholet que está em cena no teatro La Tempête
desde Novembro passado. Há uns anos estivemos juntos em dois espectáculos que ela
deu em Lisboa e Costa da Caparica. Combinámos que iria visitar-me a Palmela no
próximo ano.
- A propósito de Ursula. Uma manhã
recebi uma mensagem dela, anunciando-me que acabava de desembarcar em Paris vinda
de Strasbourg aonde fora como palestrante num congresso de filosofia. Queria
estar comigo e se podia eu ir ao seu encontro, “mais a mais porque no ano
passado não estivemos juntos”. Lá fui com gosto. Estar com ela, é ficar no
centro de um vulcão expedindo larva e fogo. As histórias sucedessem sem
interrupção nem possibilidade de acompanharmos o seu raciocínio veloz, como se
toda ela fosse movida por um sistema complexo de engrenagens que engatam umas
nas outras. Encontrei-a no apartamento que conheço bem, hoje transformado num
autêntico bric-a-brac sem nenhum espaço livre de toneladas de livros, quadros,
fotografias, cadeiras, bancos baixos, maples, tapetes uns sobre os outros, à
entrada toneladas de roupa suja, numa desordem indescritível de levar à loucura
qualquer dona de casa portuguesa da classe média. Para me sentar, tive que
fazer descer do sofá uma braçada de livros que literalmente os atirei para o
chão não havendo espaço noutro sítio. Ursula, com a idade, ficou ainda mais
pequena e do modo como se veste, parece-se a um petit bonhomme: calças e casaco cinzentos, mangas tão grandes que
não se lhe vêem as mãos meãs, cabelo branco curto, um ar impositivo de pessoa
habituada a enfrentar tudo e todos, uns olhos penetrantes de sabedoria e agilidade
intelectual. Conhece todo o mundo filosófico e sendo de origem alemã, nada lhe
escapa dos pensadores que Nietzsche dizia serem uns chatos. A par da filosofia,
a música é a sua paixão. Gosta sobretudo dos clássicos germânicos que
interpreta ao seu piano que ocupa uma das cinco divisões do apartamento. Traumatizada
com a Segunda Grande Guerra, a ela volta com frequência para redizer aquilo que
ainda lhe magoa o coração. As horas que passámos juntos, voaram num ápice. Praticamente
só falei nos intervalos da chuva torrencial que brotou dos seus lábios finos e
do seu cérebro em labaredas.