segunda-feira, novembro 30, 2015

Segunda, 30.
A imagem mais simpática e simultaneamente mais trágica do português, encontrei-a eu logo que pus os pés em terra. Foi na Expo quando aguardava pelo autocarro que me traria de regresso a casa. Ante a demora, perguntei a uma senhora de meia idade que esperava ao meu lado, a que horas chegaria o próximo transporte. A pergunta activou um caudal de palavras que não mais parou. Contou-me ela que trabalhava numa creche ao Príncipe Real, e aos fins-de-semana ia a Setúbal acudir a uma idosa. “E quando descansa? Não descanso. Não tenho tempo.” Nesse momento aproxima-se uma velha andrajosa a esmolar para o filho. Ela diz-lhe que não tem dinheiro, mas se quiser um croissant ainda quente que acabou de comprar... A pedinte aceita a oferta com indiferença e vai à vida.
         Entrado ao portão, verifico que tenho um pneu em baixo. Chamo o mecânico e com o pneu sobressalente vou à cidade sadina remendar o que furou. A operação deve demorar uma hora, durante a qual aproveito para fazer compras no super, tomar café, ler os jornais. Volto ao mecânico para levantar o carro. Este está de conversa com um cliente sobre depilação corporal. Bom. “Quanto lhe devo? – Não deve nada. – Como assim, não devo nada? – Pode levar o carro, não se preocupe com isso. – Mas... você nem me conhece! – Nem preciso.”     

         - Em Paris decorre uma reunião mundana absolutamente inútil. Mais de uma centena de chefes de Estado conversam por conversar. O tema é o nosso caro Planeta. Todos sabem que dali não sairá nada que jeito tenha. Porque nenhum deles quer mudar radicalmente a civilização do lucro, do consumo desenfreado que é causa dos desarranjos climáticos. Pelo contrário, aquele encontro contribuiu para piorar ainda mais os efeitos de estufa, atendendo aos potentes carros e aviões que utilizam, aos gastos de energia, à poluição do evento, às compras de perfumes das queridas primeiras-damas... Vivemos num mundo de cinismo insuportável.

         - É o escritor Rentes de Carvalho que faz esta significativa comparação: Portugal, com 10,4 milhões de habitantes, PIB per capita de 16.700 €, 18 ministros e 41 secretários de Estado; enquanto a  Holanda com 16,8 milhões de habitantes, PIB per capita de 37.000 €, 13 ministros e 7 secretários de Estado.


         - Almocei no Corte Inglês com a Alzira que encontrei por acaso na livraria. Almoço veloz, com tempo para lhe falar do pintor americano Jean-Michel Basquiat que vi outro dia no Grand Palais, porque ela tinha bilhete comprado para a primeira sessão de cinema. Uma hora antes, com os meus amigos pintores da Brasileira, também eles nunca ouviram falar do poderoso artista que morreu muito jovem. Alzira viaja muito e interessa-se por artes plásticas. Surpreendeu-me ela não ter conhecimento da obra deste extraordinário criador. Aconselhei-a a comprar o dvd com a sua história e obra, da autoria de Tamra Davis.

domingo, novembro 29, 2015

Domingo, 29.
Chegado a Portugal, fui recebido por um sol e uma temperatura que desviou o impacto da desgraça. Saí de Paris com três graus e um clima social de cortar à faca. Esta terra abençoada pela vida plantada à beira-nada, logo me sugou pela força do tempo paralisado sempre num equinócio desconhecido. Nada acontece e contudo a vida consome-se em pequenos murmúrios, solilóquios requentados de inveja, golpes baixos, modesta ganância, pelintrice e comadrice partidária. Está onde sempre ambicionou estar António Costa. Mas quer ele queira que não, está por um malabarismo constitucional idiota, e não pelo voto popular. Uma rápida vista aos jornais, mostrou-me que o que se conseguiu ao fim de dois meses de patuá, foi adiar novas eleições. Estamos, pois, a ser governados por um governo a prazo. Nada do que reuniu, enfim, a esquerda é sólido a começar pelo chefe da orquestra. Pelo simples motivo, o homem nada sabe de música. Aqui até a tragédia é medíocre.

         - Em Paris decorre a cimeira do Planeta. As consequências de uma tal concentração de ilustres cabeças, traz aos parisienses um desarranjo colossal. Eu próprio fui vítima não só dos crimes praticados pelos barbudos, como pelas represálias do executivo. Estando a França em “estado de guerra” vale tudo até a caça às bruxas. Nunca se falou tanto de sunitas, xiitas e Islão. Por sobre tudo andou presente a bíblica dos muçulmanos o Alcorão. Que tal como a Bíblia dos cristãos, pela sua hermenêutica, presta-se a toda a série de traduções, sem ter em conta o texto e sobretudo o contexto. Entretanto, atrasados, os futebolistas, no seu francês de balneário, juntam-se à mediocridade e afirmam sem convicção: Je suis Paris.  


         - Durante a viagem Quiberon-Paris, indo no banco de trás do carro, pus-me a imaginar coisas. Uma delas que me tinha saído uma fortuna e eu decidira comprar uma vaca desenhada pelo melhor escultor internacional, em tamanho natural. O animal ficou tão perfeito que era difícil acreditar que não era real. Depois, um dia a Annie veio visitar-me a Palmela. À chegada, vendo a magnificência corporal que se distinguia da vegetação, naquele seu modo de se extasiar, disse: “Oh, uma vaca!” Mal entrámos em casa, ela manifestou desejo de ir ver o leiteira de perto. Eu saí, cortei um punhado de erva em frente à casa e dei-lhe para que ela levasse à corpulenta. Acompanhei-a até ao fundo da quinta, uns metros recuado dela. Annie estava frente a frente com o bicho, quando lhe estendeu o que eu lhe havia dado para ele comer. Nessa altura, a vaca, educada, respondeu: “Merci, Madame!” Annie, assustada, tomba para trás, bate com a nuca numa pedra e morre. O que poderia ser uma história cómica, acaba em tragédia! Oh, este cérebro! Hélas!

sexta-feira, novembro 27, 2015

Sexta, 27.
Esquecia-me de dizer que ontem começámos o dia no pequeno mercado de rua de Saint-Pierre Quiberon, onde comprei uns quantos queijos de cabra, foie gras e rillettes de fabrico caseiro,  para levar comigo. Saint-Pierre é uma aldeola com um braço de mar e praia, preferido dos artistas, escritores sobretudo, com casas simples e bonitas, ruas estreitas e tradicionais, por onde sabe bem jornadear sem ter em conta os minutos e muito menos as horas. Não fazia sol, mas não chovia. O mercado, segundo Annie, não tinha a expressão da época estival. Que importa! As queijarias artesanais estavam em força, os legumes também, e os nativos, os mais velhotes, ofereciam um ar satisfeito e saudável decerto porque o que ali compram não contem a desgraça que envenena os corpos.

         - Hoje demos uma volta por Port-Haliguen do outro lado da costa. Uma impressionante marina exibia os barcos dos seus ricos proprietários. Como não havia vivalma, quedámo-nos rente à praia reino das aves negras que de cada vez que mergulham para caçar a sua presa enxugam as asas em terra, satisfeitas. O Oceano a perder de vista, estava calmo e irmanava-se com o horizonte de cinza que tudo uniformiza: rochas, pessoas, paisagem. Ao longo da costa, o silêncio do Inverno tinha-se estatelado com preguiça. Não corria uma aragem, o tempo desaparecera, a Natureza sonhava. Nós vamo-nos embora a seguir ao almoço. Domingo estarei longe daqui, a cabeça submersa ainda do mar bretão.

Robert insistiu em me fotografar diante desta sereia


         - Vagueando, perdendo-me por tudo e por nada, longe das minhas preocupações literárias, sem nada para escrever ou pensar, não tenho tido tendência para olhar o mundo que, de resto, oferece sempre de um modo monótono e triste os mesmos dramas. Assim, o recente ataque jihadista na Tunísia, em Bruxelas, as vítimas inocentes em Paris.   


         - Papa disse em Nairobi onde se encontra em missão episcopal: A experiência demonstra que a violência, os conflitos e o terrorismo se alimentam com o medo, a desconfiança e o desespero que nascem da pobreza e da frustração. Em última análise, a luta contra estes inimigos da paz e da prosperidade deve ser conduzida por homens e mulheres que, destemidamente, acreditam e, honestamente, dão testemunho dos grandes valores espirituais e políticos que inspiram o nascimento da nação. 

quinta-feira, novembro 26, 2015

Quinta, 26.
Ontem fomos de visita a Quimper antigo condado da Cornualha. Como sempre por estas paragens chuva e sol casam-se para nos chatear ou lançar súbitos sorrisos provocadores. Foi assim durante toda a viagem de hora e meia para cada lado. Chegados à cidade, todas as provocações iniciais desaparecem ante o vigor que se vê por toda a banda. Quimper é a cidade da juventude, ela está airosa e impertinente por todo o lado, a tal ponto que temos de pregar os olhos no chão de forma a não termos terríveis abalos de coração... Descidos do carro, o olhar aponta as flechas da catedral e com os olhos nelas, avançamos ao seu encontro por ruas e casas com séculos, praças e becos onde o tempo petrificou num espanto ou numa carícia banhada da ternura que a idade possui em abundância. Entre raios de sol e pequenas incursões de chuva miúda, flanámos por aqui e por acolá, deixando os sentidos andarilhar cada espaço, extasiar ante uma velha carcaça bem cuidada, onde por detrás das cortinas avistamos uma luz e uma sombra, um ruído fino trespassado do mistério que se esconde nas horas, murmúrio ciciado, quase um golpe de dor, um suspiro, um desmaio, uma recordação caída no fundo do tempo...  

         - Antes de despertarmos das emoções da chegada, sendo tarde, entrámos numa velha creperie drapejada de história, onde nos sentámos diante de um fogo de lenha, na mesa corrida do canto da sala. Fizemos um almoço inteiramente com crepes - ovos, peixes, doces – regados com uma excelente sidra, a melhor de todas as que bebi, indiferentes às horas que, desprezando-nos, prosseguiam o seu caminho para... Deixámos o agradável restaurante para nos salpicarmos de uma chuva de doidos, por ruas festivas adornadas de fachadas de todas a cores, nas traves de madeira que as embelezam à moda germânica, de resto, persiste no ar a par de uma atitude céltica que se vê por todo o lado. O amplo centro é uma joia conservada pelo tempo e pela inteligência humana. Vários séculos acumulam-se nas pedras, nas personagens que as decoram, no rigor do traço arquitectónico, na sua geometria à escala humana. Ali ninguém morreu definitivamente. Pelo contrário, os mortos mantêm um diálogo permanente com os vivos, vigiando-os, orientando-os na conservação e manutenção do seu legado.

         - Entrámos na catedral de S. Corentin e somos recebidos pela imponente nave central, que curva ligeiramente para esquerda até ao altar, tudo majestoso e sólido, que recebe a pouca luz espaçada do exterior através dos vitrais de uma beleza comovente. Gótica no belo exemplar destas paragens, imponente como a desejou no século XV o seu bispo, respira-se dentro dela os alvores de outros tempos, quando a Igreja rica e prepotente, dispunha dos fiéis segundo regras estritamente pessoais e muitas vezes arbitrárias. Uma grande tela, mostra o padre Maunoir recebendo do anjo suspenso das alturas, tocando a língua do sacerdote com um dedo delicado e gracioso - segundo a lenda nasceu então o bretão como expressão linguística.





         - Mais tarde visitámos o Museu das Belas Artes. Espaçoso para uma cidade do Finisterra, cuidado e simples, com espaço folgado para o visitante admirar o rés-do-chão consagrado à história da Bretanha e das suas gentes. No primeiro andar, nem tudo merece uma atenção especial, mas mesmo assim vale a pena ficar por minutos a admirar as belas telas de Lucien Simon, de Matisse, alguns da escola de Pont-Aven, de Robert Delanay ou os desenhos de François Beaulu. A arte sacra é de fugir, os quadros espanhóis uma peste, os franceses um susto. E todavia, os dois quadros que contam a lenda das lavadeiras pela calada da noite, segundo o conto de Yann Postik que começa assim: Prions, chrétiens, prions pour les trépassés, car les Bretons aiment leurs morts, pela qualidade do trabalho e profundidade interpretativa da lenda merecem uma atenção atenta.



quarta-feira, novembro 25, 2015

Quarta, 25.
O tempo seja aqui na Bretanha ou em Paris, muda várias vezes ao dia, às vezes oferecendo as quatro estações. Quando chegámos encontrámos um fim de dia lindíssimo, um pôr-do-sol magnífico, tudo impresso na paleta cinza típica desta região. Depois, segunda e terça, o clima oscilou entre um sol discreto e rajadas de vento e chuva forte. A casa custou a aquecer, e a última noite, no meu quarto do primeiro andar, foi de emoções intensas devido à sinfonia de sons vindos do mar, do vento e da chuva a embalarem o meu sono profundo.

         - Acabámos de entrar de um passeio ao longo da costa selvagem. Choveu e, por entre as nuvens escuras, abria a espaços curtos uma macha de sol dourado que ficava a espreitar a terra e o mar, exibindo um sorriso de criança descarada. Nesta altura do ano, vêem-se muitas casas fechadas e mesmo na praça central toda adornada de um novo visual, com esplanadas e bares avançados para o que antes era a estrada atravessada por carros e hoje um centro pedestre, instalou-se uma espécie de nostalgia do Verão, um aceno estival estendido ao longo da calçada no antigo mercado dos sábados. Os grandes cafés correram as portas metálicas, algumas lojas afixam avisos de fecho temporário, mas a vida circula nas ruas estreitas que contornam a praça do general Hoche. As deliciosas creperies, os pequenos restaurantes simpáticos, os cafés tradicionais, os quiosques e toda essa actividade artesanal que não finda nunca e dá para a praia deserta, persiste em não interromper um quotidiano típico de uma cidade de província habitada por sólidos homens e mulheres, gente habituada ao trabalho duro, com personalidade e crença cristã, honestidade e persistência, difícil de abalar. 

         - Portugal é citado, enfim, nos noticiários da noite. Parece que António Costa foi convidado a formar governo. Pobre país, infelizes portugueses! O que nos espera é mais do mesmo e o mesmo é a miséria, a grandeza de uns quantos e a desgraça da maioria.

terça-feira, novembro 24, 2015

Terça, 24.
Outro dia fomos ao teatro ver a peça de Jean-Baptiste Poquelin, mais conhecido por Molière, Trissotin ou Les Femmes savantes. A encenação é de Macha Makeieff e, embora a acção se passe no século XVII, a senhora transpô-la para os anos Setenta do século passado: cenários, guarda-roupa, mobiliário de cena, artifícios químicos e até um gravador de bolso. Bom. Não li o penúltimo original escrito pelo autor de Tartufo antes de morrer, mas do que me foi dado ver, tudo é permitido e o resultado balança entre uma peça de revista à portuguesa e uma de boulevard, sem contudo deixar de reconhecer que há nela momentos muito bem conseguidos de humor e criatividade. Seja como for, o texto do ilustre escritor preferido de Louis XIV, resiste a tudo e passa incólume através dos tempos a todas as barbaridades. Uma nota para o naipe de actores. As três mulheres loucas (uma delas é representada por um homem num papel absolutamente extraordinário, Thomas Morris). Quanto a Trissotin sublime de provocação e sedução. Pena que a realizadora não tivesse desenvolvido melhor esta figura central de poesia e humor, hipocrisia e sensualidade, representada pelo actor Geoffroy Rondeau. Um espanto agradável: a sala do TGF estava esgotada, não obstante o terror de novos ataques. E nela, em grande número, imperava a juventude. O teatro – é salutar reconhecer - permanece enraizado nos franceses.

         - Justamente. Sempre ouvi e li toda a espécie de insinuações sobre a autoria das peças de teatro escritas por Molière. Muitos estudiosos dizem ter sido Corneille o seu autor. Bom. Por outro lado, o público interesse de Louis XIV pelo autor-actor, mais não era que o interesse de um rei centralizador e prepotente que punha e dispunha de um homem polivalente e trabalhador que trouxe à arte de representar uma riqueza literária e cénica impressionantes. Na aurora do género operático, vindo de Itália, pelo final do século XVII, o Rei-Sol, percebeu a importância da nova expressão artística e logo, pura e simplesmente, deixou cair Jean-Baptiste Poquelin seu protegido, em favor de Jean-Baptiste Lully. No final da vida, apesar de doente, nunca abandonou os palcos e a trupe de actores que o acompanhou por todo o lado e que ele adoptou como família. Um entre todos se distinguiu pelo afecto e a ternura, tão intensos que as más línguas atribuíram uma relação amorosa. Morreu em cima das tábuas.

         - Green est toujours assez beau, si l´on veut: un air de jeune santé, de gros pieds aux vilains soulliers, et la réserve saxonne qui n´est pas de la maussaderie. Mais il n´est pas très intelligent, ou plutôt il n´a aucune habitude à l´intelligence: il n´y manoeuvre pas, n´y voit pas... Catherine Pozzi, Journal (1913-1934). Pozzi fala deste modo do autor de Mont-Cinère porque ele nunca se envolveu nas questiúnculas literárias e nem sabia nadar nessas águas. Ia nos seus 28 anos e uma vida por cumprir. Portanto, madame, ponto final.

         - Um dia da semana passada, fomos tomar café a casa da actriz Hélène Delavault. Ela habita próximo da Place Clichy, num magnífico andar decorado com gosto, no prédio que é propriedade da Ursula e onde eu vivi no passado uns tempos. Conheci a Hélène começava ela o caminho para a celebridade de que hoje usufrui. Mulher de teatro, do canto, do espectáculo, produtora, encenadora, actriz nem por isso perdeu o encanto de sedução e simpatia que tanto me atraíram e nos fez juntar numa amizade que perdura através dos anos. Mesmo em casa, não deixa a postura que é natural nela, aquela que os espectadores vêem na televisão ou no teatro, e de que os olhos são os atributos mais impressionantes a par de um corpo de mulher elegante, quase sempre vestida de escuro. Durante o encontro conversou-se muito dos atentados, mais a mais porque ela adora Saint-Denis e tinha acabado de adquirir um andar no prédio que fica mesmo por detrás daquele onde os trágicos acontecimentos tiveram lugar. Como tinha um programa demasiado preenchido, não pude aceitar o convite que me fez para ver a peça Farben de Mathieu Bertholet que está em cena no teatro La Tempête desde Novembro passado. Há uns anos estivemos juntos em dois espectáculos que ela deu em Lisboa e Costa da Caparica. Combinámos que iria visitar-me a Palmela no próximo ano.  


         - A propósito de Ursula. Uma manhã recebi uma mensagem dela, anunciando-me que acabava de desembarcar em Paris vinda de Strasbourg aonde fora como palestrante num congresso de filosofia. Queria estar comigo e se podia eu ir ao seu encontro, “mais a mais porque no ano passado não estivemos juntos”. Lá fui com gosto. Estar com ela, é ficar no centro de um vulcão expedindo larva e fogo. As histórias sucedessem sem interrupção nem possibilidade de acompanharmos o seu raciocínio veloz, como se toda ela fosse movida por um sistema complexo de engrenagens que engatam umas nas outras. Encontrei-a no apartamento que conheço bem, hoje transformado num autêntico bric-a-brac sem nenhum espaço livre de toneladas de livros, quadros, fotografias, cadeiras, bancos baixos, maples, tapetes uns sobre os outros, à entrada toneladas de roupa suja, numa desordem indescritível de levar à loucura qualquer dona de casa portuguesa da classe média. Para me sentar, tive que fazer descer do sofá uma braçada de livros que literalmente os atirei para o chão não havendo espaço noutro sítio. Ursula, com a idade, ficou ainda mais pequena e do modo como se veste, parece-se a um petit bonhomme: calças e casaco cinzentos, mangas tão grandes que não se lhe vêem as mãos meãs, cabelo branco curto, um ar impositivo de pessoa habituada a enfrentar tudo e todos, uns olhos penetrantes de sabedoria e agilidade intelectual. Conhece todo o mundo filosófico e sendo de origem alemã, nada lhe escapa dos pensadores que Nietzsche dizia serem uns chatos. A par da filosofia, a música é a sua paixão. Gosta sobretudo dos clássicos germânicos que interpreta ao seu piano que ocupa uma das cinco divisões do apartamento. Traumatizada com a Segunda Grande Guerra, a ela volta com frequência para redizer aquilo que ainda lhe magoa o coração. As horas que passámos juntos, voaram num ápice. Praticamente só falei nos intervalos da chuva torrencial que brotou dos seus lábios finos e do seu cérebro em labaredas.