Sexta,
6.
Mal
pousei a bagagem, reparti para Cambrai (a 170 km) onde vim com os meus amigos e
espero o Christian que desce de Lille para o nosso tradicional almoço. Ele
acabou de pedir a reforma de engenheiro e delegado sindical de uma importante
empresa de controlo de sistemas que imagino choruda. Sendo abastado, vive
preocupado com a conta bancária numa altura em que nada é seguro e os
movimentos de capital instáveis. Daí, seguindo os conselhos da filha que casou
e divorciou de um especulador inglês, aplicou todo o dinheiro que tinha na
compra de um imóvel inteiro para, após as obras, alugar os apartamentos. Como o
prédio se situa numa estância de veraneio ao Norte da França muito procurada e face
a Inglaterra, ele pensa ter ali mais um meio de multiplicar os seus dividendos.
“Voilà un vrai communista”, digo-lhe eu.
Sorri ele.
- Os Champs Élysées pelas dez da noite
fervilham de gente. Após a lei Macron que permite que os estabelecimentos fiquem
abertos até à meia-noite, a conhecida avenida transformou-se num mar de gente
subindo e descendo, entrando e saindo das lojas de luxo que ladeiam ambos os lados
dos passeios. Porém, observando de perto quem por ali acorre num alvoroço,
verifica tratar-se do petit monde sem
cheta para satisfazer a ambição consumista. A menos que façam como o rasca Sarkosy.
Segundo Berlusconi, a ordinária criatura quando casou com a dulcineia Carla
Bruni, aproximou-se do antigo primeiro-ministro italiano e disse: “Agora sou
tão rico como tu”. Seja como for, vê-se bem que o pagode estrangeiro e nacional
que pisa “a mais bela avenida do mundo”, deixa nela os traços das suas origens
e educação na forma de imundices no chão, balbúrdia, gritaria e assim. Não
tarda os Champs Élysées concorrem com Saint-Denis no espectáculo degradante do
turismo de massas ou dos imigrantes que amesendam à mesa do erário
público.
- Embora se fale pouco deles, os
infelizes que fogem da guerra e da fome, continuam a aportar à Grécia aos
milhares. A querida União Europeia finge desconhecer a tragédia e deixa nos
braços dos gregos a resolução do problema. Que se saiba, dos milhões que foram
prometidos para ajudar a recepção e reintegração deles, o Governo de Tsipras
ainda não viu um chavo. A desorganização é total, o respeito pelos cidadãos
nulo.
- Escrevo estas linhas num simpático
café no centro de Cambrai enquanto aguardo pelo Christian. A atmosfera é
contagiante, com imensos clientes a bebericar encostados ao bar. O filho do
dono, um sorridente rapagão gordo, quando eu entrei estendeu-me a mão para um cumprimento
à maneira. Todos falam e o ruído é ensurdecedor. Nada que me incomode, porque
transversal ao clima humano, transita um derivo de alegria que me aquece o
coração. Uma mulher toda vestida de couro, acaba de entrar. É a única entre
tantos homens de idade e meia-idade. Tem as duas pernas, de alto abaixo,
tatuadas de uma corbeille de flores
escuras. Todos os presentes a saúdam, mas ela desembaraçou-se deles para vir
perto de mim assinalar os postais ilustrados que estão pregados a uma porta
onde se vê uns sensuais traseiros de mulher decorados. Nefasto só o som que cai
da TV por cima de mim. É a praga que enquanto seres vivos temos que suportar. Reparo agora que diante de mim, numa mesa comprida com um sofá ao correr, está
uma placa com fundo azul que diz Place de
L´amour. Esta em que estou sentado,vejo agora, diz Place de la Sieste, outra mais adiante, num lugar para um frente a
frente, leio Faites l´Amour, pas la
Guerre, no rebordo do balcão esta inscrição Place des Retraitées. Imagino que esta sinalética seja trabalho do
filho grandalhão por quem começo a sentir simpatia. Deve ser um rapaz rigolote, que se interessa pelas coisas
sãs da vida sem desprezar as caranguejolas electrónicas. À noite, em casa, não
dispensa um jogo de futebol, embora seja também capaz de apreciar e até
excitar-se com uma mulher virtual em cenas obscenas com o companheiro no seu
computador. Não há todavia nele um assomo de perversidade. É o típico francês
de província que ajuda o pai, vai à missa ao domingo, auxilia a mãe na lide
caseira. Casará decerto pró-tarde, porque mulheres tem-nas aos montes e todas
as que entram no seu estabelecimento são potenciais namoradas ou “coisas” de
circunstância. Não sei o que pensa o pai que trabalha mais que ele. Talvez veja
o filho como seu sucessor no projecto
hoteleiro para o qual tem trabalhado como escravo, falhado o esforço de lhe dar
um canudo que o faria um desses advogados inchados como uma couve flor,
cruzados da importância que extravasa da barra dos tribunais. Por agora ele é
uma espécie de mestre de cerimónias, com o seu smartphone a colher informação
que partilha em sorrisos com a clientela. Disso com certeza o progenitor nada
sabe. Nota-se, contudo, entre os dois, pai e filho, um entendimento feliz, mas
simultaneamente distante, como se cada um tivesse o seu lugar numa estrutura de
complemento do outro, com os fregueses por cúmplices. Muitos homens que
entraram enquanto alinho estas parlapatices, acercam-se da minha mesa e
estendem-me uma mão áspera num cumprimento de gentleman´s de clube. Que vistas bem as coisas, somos todos os que
neste café, não distante da praça principal, na cidade de província que outrora
viu reis e príncipes da Igreja cruzar caminhos e destinos, somos. O moçalhão
deve andar pelos vinte e poucos e usa uma T-shirt branca que não chega para
cobrir o ventre gelatinoso que espreita entre a camisa e as calças, formando
uns lábios carnudos que talvez excitem intimamente a mulher das tatuagens
desenhadas nas pernas bem torneadas. Ela olha-o de um modo arisco, os lábios
desenhados por um batom provocante que lhe redimensiona a boca, semelhantes aos
de Brigitte Bardot no filme E Deus Criou
a Mulher. Deve até ter a mesma altura da heroína do filme de Vadim, mas não
chega a ser tão provocante. Talvez tenha um laivo ligeiro de bairro de
periferia que não deve desagradar de todo ao rapaz, pese embora as diferenças
de idade. Este, constato, não pára um segundo quieto, conquanto a atenção maior
vá para o mostrador do smartphone que parece ser mais atractivo que a freguesa
das pernas floridas. Em torno do bar, os homens que foram chegando e me
cumprimentaram, bebericam por pequenos copos de base estreita. Estão onde está
a placa que os identifica, rosados e bonacheirões, talvez felizes por possuírem
o tempo no redondo das suas vidas transitáveis por caminhos custosos. Com a
reforma, encontraram o tempo que nunca tiveram. Talvez achem que o possuem hoje
em demasia e o copito antes e depois do almoço, conjugado com o sorriso do mocetão
e a sobriedade do dono do café-bar, tenha a magia de os fazer mergulhar num
espaço familiar que a rectaguarda das suas vidas simples, por razões que não
sabem explicar, não lhes brindou. O que observo do lugar da sesta, é que aquela
floresta humana... (interrompido. Christian acaba de chegar).