sábado, novembro 30, 2019

Sábado, 30.
Amáveis, os meus amigos condescenderam a meu pedido em visitarmos o museu Henri Matisse, em Cateau, uns vinte quilómetros daqui. Fomos através de vistosos campos semeados de cereais – couves, beterraba e sob a terra as famosas endívias. Não é a primeira vez que entro no admirável museu que o departamento de Cadeau-Cambrésis conserva impecável e com dignidade de um museu nacional. Acresce que este ano celebra-se os 150 anos do artista (1869-1954), que aqui nasceu e fundou o museu, em 1952. A mostra pretende dar a conhecer os 20 primeiros anos de formação do pintor e, de facto, ao percorrermos as diversas salas, vamos admirando como se forma um talento tão impressionante, que marcou a arte do início do século passado. Evidentemente, o estudo dos clássicos está lá como plataforma importante para se chegar à desenvoltura que lhe permitiu voar sobre o panorama artístico, ao lado dos maiores do século XX: Pablo Picasso, Renoir, outros mais.
Henri Matisse - Auto-retrato 

Renoir - Ambroise Vollard 

A cor que mais tarde seriam as do artista

Picasso - Auto-retrato

         - A pequena vila de Cateau que desta vez visitei quando a noite se acomodava, é um encanto. Parece um presépio em miniatura, tal o arrumo das suas ruas, as casas baixas, os pequenos terreiros como salas de visita para conversar, namorar, ver quem passa. A cada hora tombam desamparadas as badaladas da igreja matriz, as lareiras soltam os primeiros fumos que perfumam o ar e são o aconchego de quem como eu vive projectado no mundo encantado das emoções. Ficar ali, naquele recanto perdido, era tudo quanto pedia aos deuses que, evidentemente, não me ouviram. Não porque não existam, mas simplesmente porque não sou digno dos seus favores.

         - Para cinco do mês de Dezembro, a França vai estar paralisada com uma greve dita geral. Todos os sectores públicos e privados vão parar para protestar contra a Lei de Trabalho e mais não sei o quê, porque só 30 por cento dos franceses votou em Chou Chou, não lhe perdoam ter-se tornado o rei do país. A mim tanto se me faz – vou-me escapar a tempo.


          - Mas o mundo está à mercê de todas as catástrofes. Num dia só, dois atentados: em Londres onde morreram pelo menos duas  pessoas às mãos de um extremista com arma branca que feriu também meia dúzia de outras e na Holanda, em Haia, um grupo de rapazes atingido por outro louco à facada numa rua concorrida da cidade. No primeiro caso, o homem de 28 anos já estava referenciado e tinha até estado preso por ligações a grupos terroristas; no segundo caso, não se apuraram ainda as razões.

quinta-feira, novembro 28, 2019

Quinta, 28.
Remoo sem descanso o primeiro capítulo do romance que me deixou desagradado. Vou ter que o reler pela quarta vez, de modo a obter um parecer da insatisfação que me deixou.

         - Fomos ver o filme J´acuse de Roman Polanski. Essencialmente fala de honra e consciência moral por contraste com o mundo de hoje cujos valores éticos foram transferidos para a importância do dinheiro e poder. O curioso da argumentação, vem do facto de a inocência de Dreyfus ser feita por um anti-semita, Marie-Georges Picquart, interpretado por Jean Dujardim. Todo o filme é uma obra de arte, de equilíbrio sólido, servido por uma narrativa argumentativa corrente, bem desenhada, com todos os actores e fundamentos de época bem enquadrados, denunciando o cinismo do poder do exército francês. O oficial que todos querem encobrir e esteve na origem daquele triste caso que abalou a França do princípio do século passado, e levou ao célebre artigo de Zola, é Marie Charles Ferdinand Walsin Esterházy. Foi ele que compôs o famoso bordereau em nome de Dreyfus de origem judaica, inculpando-o de passar informação confidencial para os alemães. Em consequência o capitão é enviado para as masmorras da ilha do Diabo onde iria apodrecer não fosse a chegada ao processo de Picquart. Este empreende nova investigação, contra todas as formas de ética militar, que conflui na inocência de Dreyfus e na culpa de Esterházy. Novo julgamento tem lugar e o tribunal aceita, embora não totalmente convencido, libertar o prisioneiro.

         Mas o filme pode também ser visto de outro prisma: o da caça às bruxas. O próprio realizador, tem sido enlameado devido a suposto envolvimento ou toque ou outra qualquer forma de enamoramento que dizem ter tido com menores há quarenta anos! Algumas instituições francesas, nomeadamente, escolas e organismos oficiais, dirigidos por feministas fanáticas, tudo têm feito para evitar que raparigas e rapazes à sua guarda, vejam um filme absolutamente indispensável nos dias de hoje. Alguma informação também tem uma parte de culpa, como aconteceu com a França dos finais do século XIX quando o caso Alfred Dreyfus dividiu a nação francesa. E, portanto, o filme devia pela tolerância, liberdade, vigor e realidade histórica, ser visto não só pelos franceses como por todos os europeus. Ainda hoje há muito anti-semitismo como provam recentes ataques a cemitérios,  sinagogas e assim.

         Uma última nota a destacar a coragem do escritor-jornalista Émile Zola que no L´aurore publicou o seu famoso J´acuse, que os meus olhos viram de perto quando visitei a sua mansão nos arredores de Paris. Zola esteve um ano na prisão e pagou 3000 francos de multa. Foi morto intoxicado pela sua chaminé, mas na altura toda a gente disse que tinha sido assassinado pelos anti-dreyfusanos.

         - Dia pardacento. Durante toda a semana chuva e temperatura pelos 13 graus centígrados. Mas hoje, apesar de encoberto, o frio instala-se a pouco e pouco. A semana que vem, os entendidos em meteorologia, anunciam-nos arrefecimento acentuado. Amanhã tornamos a Cambrai. 

quarta-feira, novembro 27, 2019

Quarta, 27.
Constato que este ano pouca ou nenhuma atenção prestei ao que se passa no meu país, como não fiz as leituras diárias de outros anos ou mesmo a confecção de um prato lusitano para os que me hospedam ou o envio de duas palavras aos amigos e familiares na forma de um postal. Apesar de ter esta mesa onde trabalho apinhada de livros que fui comprando, entreguei-me de corpo e alma ao romance que me consumiu os dias. Embora hoje me sinta mais aliviado, ronda-me já a saudade dos meus amigos com quem convivi dois anos a fio: Flávio Jardim, Rui Gonçalves, Bibilindo, Rita, Maria Teresa, Bonifácio, Crispim, Pimentel da Gaia, Patrício, Florbela, Masfondo, Fifi, Jojó, Fafá e tutti quanti. É sempre assim quando termino um trabalho. Que se passará com os outros, esses que fazem livros como o padeiro pão quente?
                              
         - Sentado num café defronte da abadia de Cluny, num fim de tarde chuvoso e triste, mordido de pensamentos estranhos, mistura melancólica do tempo que deixou de me pertencer, ou para utilizar a expressão feliz de Arthur Schnitzler “vivemos só para envelhecer. Tudo o resto, não passa de aventuras”, fui-me afundando nas fragas das horas. Quando voltei a mim, a noite derramara-se no jardim medieval e nenhum ou poucos visitantes saíam do velho edifício. Morrer ali, no completo anonimato ou na China do ditador ou em Palmela com os olhos nas árvores minhas ternas companheiras, parecia-me indiferente posto que morremos sempre sós e a passagem para o invisível fazemo-la deixando para trás as fantasias e estados de alma, ódios e instantes de graça.

         - Aquela criatura que entrou na malfadada linha 13 do metro esta tarde, toda vestida de negro da cabeça aos pés, empurrando os passageiros que seguiam à cunha na carruagem onde eu me encontrava, pedindo esmola em árabe. Só percebi a palavra Alá, o Profeta. Mesmo que falasse em chinês, a expressão e os gestos dos pobres são os mesmos em todas as línguas.

         - Numa ronda pelas livrarias, deparei com o último volume do Diário de Gabriel Matzneff L´amante de l´Arsenal (2016-2018) acabado de sair. Não o comprei porque já tenho que ler para o próximo ano inteiro.

         - Um dos canais de televisão apresentou um documentário seguido de mesa redonda sobre os métodos do ditador da China para controlar os milhões de cidadãos. Atroz. Servindo-se das modernas tecnologias, criou uma pura prisão ao ar livre, que lhe permite, por pontos, vigiar os cidadãos em qualquer parte, a qualquer hora. Uma falta, por minúscula que seja, faz o indivíduo descer ao nível de zero pontos, significando que perde o direito a assistência social, por exemplo. Tudo, o bom e o mau, fica registado. Não me espantaria que começasse na China de Xi Jinping ping ping a introdução de um chip sob a pele do recém-nascido (como já se faz com gatos e cães) para acumulação da informação necessária ao ditador e de seguida a todos os tiranos que por aí espreitam impor-se.


         - Protesto dos agricultores que para o efeito cercaram estradas de acesso a Paris. Exigem do Governo medidas que retire os lucros excessivos a supermercados e distribuidoras, deixando quase na completa miséria os que trabalham a terra. Claro que Chou Chou não irá fazer nada a favor dos escravos agrícolas. Ele pertence ao sector que os explora até à fome. Macron foi a grande desilusão da França. A mim nunca ele me enganou. Do seu reinado não restará nada que os franceses lhe agradeçam. É tão medíocre e, sobretudo, oportunista como o seu antecessor. Arrasou a esquerda para deixar a direita crescer. Até Annie e Robert que votaram nele, se mostram frustrados.

segunda-feira, novembro 25, 2019

Segunda, 25.
O facto mais entusiasmante do dia, foi a vitória dos que dão voz a democracia em Hong Kong. Resta saber como vai reagir o ditador Xi Jinpíng ping ping, para quem a democracia é um sistema bizarro. A ele só que lhe interessa a filosofia, a moral e o poder chinês.

         - Rocha Pinto telefonou-me, emocionado, com o artigo que escrevi acerca da sua recente exposição (ver quarta-feira, 6 de Novembro). Os papéis inverteram-se. Quem devia estar agradecido era eu pelos momentos de puro prazer para o espírito que ele me proporcionou.

         - Dou-me conta que nada disse sobre a exposição que o museu Louis Vuitton consagra a Charlotte Perriand (1903-1999). Confesso que conhecia vagamente o seu nome, mas nada sabia em concreto das suas actividades. Que foram múltiplas e arrumadas em pioneira da sustentabilidade do Planeta e do desperdício das sociedades de consumo. Ela pensou cedo no equilíbrio da natureza e dos espaços habitacionais, sem descorar o conforto, a arte e a humanização, numa junção feliz e funcional cara à nossa existência. Arquitecta, trabalhou com os maiores do século passado: Corbusier, Pierre Jeanneret, André Tournon e tantos com quem traçou as linhas funcionais dos interiores, dos prédios, dos objectos práticos da vida quotidiana, num afã inventivo que começou pelos anos 1920 e nunca a largou. Quando se dá a Segunda Grande Guerra, Charlotte Perriand é convidada a trabalhar no Japão. Para a época uma tal aventura, sobretudo sendo mulher, é quase a consagração. Integrando a equipa do atelier de Corbusier, conhece dois arquitectos japoneses debutantes: Junzo Sakakura e Kunio Maekawa É graças a eles que as portas do Oriente se abrem e ela se impregna de um certo conceito estético nos anos de estudo e labor em Tóquio. Deixou a sua assinatura em inúmeros trabalhos e até ao fim da vida nunca largou de participar em acontecimentos relevantes no país. País que fez questão de conhecer em todas as latitudes e saberes: do artesanato aos interiores leves e de um certo rigor minimalista, às cidades e campos tradicionais, carregados de história. A fusão do Ocidente com o Oriente foi um passo. Em simultâneo, a arquitecta artista, conviveu com os maiores do seu tempo: Picasso, Léger, Laurens, Braque, Miró e passo. É de tudo isto que se fala nos quatro ou cinco andares da Fundação. Mais uma vez, Louis Vuitton marca a diferença pelo modernismo e vigor da arte contemporânea.
O diálogo entre a artista e o visitante.

Mobiliário de interior 

Maqueta para residência hoteleira, 1980

Dora Maar, Picasso, 1936

Duas mulheres, a corda e o cão, Le Corbusier, 1935 

A Banhista,  Léger, 1932 


         - Os jornais aqui citam o Papa Francisco: “L´utilization de l´énergie atomique à des fins militaires est aujourd´hui plus que jamais un crime. (...) La véritable paix ne peut être qu´une paix désarmée.”