Sábado, 16.
Há diversos mistérios que dão que pensar
sobre o incêndio de Notre-Dame. No meio daquele inferno, alguns símbolos da
cristandade escaparam miraculosamente: a Santa Coroa, que se acredita ter sido
a que Jesus Cristo usou na crucificação, a Túnica que São Luís teria usado, em
1238, as maravilhosas Rosáceas laterais e central, a Cruz do altar principal, e
algumas mais relíquias que ninguém consegue explicar como foi possível escaparem
de um tal cataclismo. Paul Claudel, num poema célebre, explica a sua conversão,
e diz que “foi a Virgem que salvou a França” em vários momentos terríveis da
sua história.
Tirei o dia para visitar os despojos da
catedral de Notre-Dame. É um perfeito estaleiro onde se afadigam centenas de
operários e técnicos de muitas ciências. Talvez não fique reerguida no tempo
que Macron previu, mas o que me foi dado observar cortou-me o coração, eu que
tantas vezes ali me recolhi em oração e ainda o ano passado a admirei do Sena
com espanto e veneração. Toda a História de França passou por lá, desde os primeiros
reis a Napoleão Bonaparte. Nos nossos dias, talvez contra a Igreja, ela era
praticamente um museu que milhões de turistas conspurcavam com a sua presença,
despudor dos flaches dos smartphones e atropelo de toda a ordem que o respeito
e o silêncio impõem. Diversas vezes vandalizada, incendiada e maltratada,
Notre-Dame, desde os confins do século XII, soube resistir pela graça e favores
divinos menosprezados nos tempos presentes, onde outro deus, o do dinheiro,
irrompeu vencedor.
O esforço de conter as estruturas |
Os trabalhos colossais a empreender |
A Cruz de Cristo misteriosamente erguida no meio das chamas |
Apesar do desastre a beleza impõe-se |
A frontaria de Notre-Dame |
- No regresso a casa sob um céu de chumbo, passando em Odéon, não
consegui escapar às memórias que me invadiam. Simone de Beauvoir habitava umas
águas furtadas na zona e o seu número de telefone era Odéon 28 28. Eu estava em
Paris para fazer uma série de reportagens sobre a condição dos emigrantes portugueses
para o jornal A Capital e
telefonei-lhe para a entrevistar. Ríspida, declinou o convite com o pretexto de
ter muito trabalho e não conhecer a situação dos nossos concidadãos. O resto
está plasmado nas páginas deste Diário de então.
- Como previsto, os tumultos na Place d´Italie e Champs-Élysées foram
impressionantes. Carros incendiados, material urbano destruído, confrontos
violentos com a polícia, um dia desastrado de comemoração do início da revolta
há um ano. Os governantes do mundo, têm de passar a contar com as opiniões e a
vida dos seus compatriotas. De contrário é na rua que eles imporão a nova ordem
que os bem instalados chamam de desordem e anarquia.