Sexta, 15.
Perdi-me em longos passeios pela Rive
Droite. À uma hora, abanquei no 4pat, Rue Saint Merri, no Marais, um
restaurante cujos donos são homos, com espectáculo de travestis em certas
noites, de uma gentileza extrema. Conheceram-me logo e saudaram-me como se
fosse um cliente de todos os dias. Almocei uma salada rica de vários legumes e
um café acompanhado de um petit-four au
chocolat. Impus-me um dia de jejum por forma a limpar o organismo da quantidade
de porcarias boas que tenho ingerido desde que cheguei. Bom. De seguida fui ao
Beaubourg ver a exposição Francis Bacon. Estranho e fabuloso artista. As suas
telas traduzem um mundo desconchavado onde desaguam todas as agonias e onde o
ser humano não sai ileso do seu olhar tenebroso, nem ele próprio. A capacidade
extraordinária que o pintor possui de combinar as cores, o ambiente, de forma a
introduzir o clima e as condições dramáticas e poéticas que tanto nos aproximam
dele e tornam os seus quadros únicos. No fundo Becon não larga Becon, projeta-se
nas suas personagens, expõe a complexidade do seu interior atormentado, doente,
debochado, povoado de todos os demónios que o habitam, construindo e
desconstruindo mundos que o obcecam, numa busca diabólica, sim, diabólica por fazer
convergir o drama e a luz sobre a sua existência torturada. A arte não é nele
uma fuga, é um estado obsessivo da morte, uma conjugação de memórias arrumadas
como pedaços de sofrimento no lugar impreparado para a felicidade – o coração. Os
seus modelos têm com o seu criador uma cumplicidade doentia, marginal,
possessiva e vice-versa.
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Auto-retrato |
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Michel Leiris |
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Homem no lavabo |
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Triplico - 1970 |
- Acabo de entrar (são 22,26) de um lanche ajantarado em casa da
Françoise, no sesième. Atingida pelo mal
que os médicos dizem inevitável com a idade, apesar da doença e da quimioterapia,
a nossa amiga mantém-se confiante e decidida a enfrentá-la. Assim, como se nada
houvesse, estivemos à conversa desde as sete da tarde, as horas a perderem-se
no rumor da chuva que não parava de tombar sobre a cidade, a política a
desenquadrar opiniões, comigo a enfrentar Robert que parece aceitar a pobreza
como inevitável. Falou-se, bem entendido, dos gilets jaunes que para amanhã prometem festejar o início das
reivindicações com uma marcha sobre Paris e os Champs-Éliysées. Prazer de
atravessar a cidade à noite arrasada de chuva ora forte, ora terna. O carro
quentinho, a vista a perder-se na malha humana e arquitectural, com o Sena
sossegado cheio da luz que inunda as artérias abandonadas ao temporal.
- Os franceses detestam o frio e a chuva. Mas precisam desta porque há
zonas onde a água já foi racionada. Hoje choveu forte todo o santo dia. Porém,
em vez de darem graças a são Pedro, ils râlant
todo o tempo.
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Paris numa tarde de chuva vista do Centro Pompidou |