sexta-feira, novembro 15, 2019

Sexta, 15.
Perdi-me em longos passeios pela Rive Droite. À uma hora, abanquei no 4pat, Rue Saint Merri, no Marais, um restaurante cujos donos são homos, com espectáculo de travestis em certas noites, de uma gentileza extrema. Conheceram-me logo e saudaram-me como se fosse um cliente de todos os dias. Almocei uma salada rica de vários legumes e um café acompanhado de um petit-four au chocolat. Impus-me um dia de jejum por forma a limpar o organismo da quantidade de porcarias boas que tenho ingerido desde que cheguei. Bom. De seguida fui ao Beaubourg ver a exposição Francis Bacon. Estranho e fabuloso artista. As suas telas traduzem um mundo desconchavado onde desaguam todas as agonias e onde o ser humano não sai ileso do seu olhar tenebroso, nem ele próprio. A capacidade extraordinária que o pintor possui de combinar as cores, o ambiente, de forma a introduzir o clima e as condições dramáticas e poéticas que tanto nos aproximam dele e tornam os seus quadros únicos. No fundo Becon não larga Becon, projeta-se nas suas personagens, expõe a complexidade do seu interior atormentado, doente, debochado, povoado de todos os demónios que o habitam, construindo e desconstruindo mundos que o obcecam, numa busca diabólica, sim, diabólica por fazer convergir o drama e a luz sobre a sua existência torturada. A arte não é nele uma fuga, é um estado obsessivo da morte, uma conjugação de memórias arrumadas como pedaços de sofrimento no lugar impreparado para a felicidade – o coração. Os seus modelos têm com o seu criador uma cumplicidade doentia, marginal, possessiva e vice-versa.

Auto-retrato
Michel Leiris


Homem no lavabo

Triplico - 1970


         - Acabo de entrar (são 22,26) de um lanche ajantarado em casa da Françoise, no sesième. Atingida pelo mal que os médicos dizem inevitável com a idade, apesar da doença e da quimioterapia, a nossa amiga mantém-se confiante e decidida a enfrentá-la. Assim, como se nada houvesse, estivemos à conversa desde as sete da tarde, as horas a perderem-se no rumor da chuva que não parava de tombar sobre a cidade, a política a desenquadrar opiniões, comigo a enfrentar Robert que parece aceitar a pobreza como inevitável. Falou-se, bem entendido, dos gilets jaunes que para amanhã prometem festejar o início das reivindicações com uma marcha sobre Paris e os Champs-Éliysées. Prazer de atravessar a cidade à noite arrasada de chuva ora forte, ora terna. O carro quentinho, a vista a perder-se na malha humana e arquitectural, com o Sena sossegado cheio da luz que inunda as artérias abandonadas ao temporal.


         - Os franceses detestam o frio e a chuva. Mas precisam desta porque há zonas onde a água já foi racionada. Hoje choveu forte todo o santo dia. Porém, em vez de darem graças a são Pedro, ils râlant todo o tempo. 

Paris numa tarde de chuva vista do Centro Pompidou