quarta-feira, novembro 29, 2017

Quarta, 29.
Hélène Delavault veio almoçar connosco. Fui eu que me ocupei de confeccionar o prato de bacalhau que ela aprecia especialmente. Ampla e interessante conversa em torno da mesa, como nos tempos das grandes famílias felizes. Entre todos – Annie, Robert, Hugo e eu – felicitámos a nossa convidada pelo trabalho que tem feito no cinema, no teatro e no canto lírico. Hélène é uma mulher atraente, coberta de uma áurea de diva sem que se tome de importância. Senti-a um pouco amortecida contrariamente a outras vezes que os seus olhos brilhavam de entusiasmo pela vida.

         - O Papa está em visita à Birmânia país de maioria budista. A questão dos rohingya não foi trata em público pelo soberano Pontífice, mas abordada entre linhas. Questão que tem ocupado os medias nestes últimos tempos. Para as autoridades birmanesas, eles não são mais do que imigrantes ilegais bengalis. Nesta afirmação tecnocrata, esconde-se todo o sofrimento de um povo.   

         - Um curioso e bem elucidativo programa no canal ARTE sobre colesterol. Vários médicos do mundo inteiro vieram falar sobre o assunto: uns a favor (sobretudo americanos), outros contra. A maioria porém, está de acordo que o colesterol é essencial ao organismo e muitos disseram, preto no branco, que o efeito da toma das estatinas contribui para a diabetes, alguns cancros, falta de memória, tonturas e outros mimos assim, além de não ter ficado provado que os problemas cardíacos são a causa do excesso de colesterol no sangue. O mais surpreende (para mim não), foi a implicação de equipas de médicos nos estudos realizados para apuramento dos efeitos colaterais, pagos pelas multinacionais dos laboratórios que fabricam o produto. Estamos entregues à bicharada.


         - Hoje 0 graus. Brrrrrrr!

segunda-feira, novembro 27, 2017

Segunda, 27.
Quando outro dia o Robert chegou ao Café Hoche para me trazer de regresso a Paris, concluía eu o parágrafo que a seguir se apresenta. Deixo-o como incentivo a prosseguir e, eventualmente, receber o estímulo dos leitores.

         “Havia nas palavras de Flávio Jardim algo que ultrapassava a questão imediata da firma e liquidação das dívidas. No fundo, por sobre toda a desgraça presente, o jovem idealista dos tempos da universidade, não perdoava ao amigo do peito ter atraiçoado uma relação para ele indispensável à consumação do equilíbrio do todo, assente no pressuposto que não se separa o que a adolescência uniu. Jardim tinha lá, nesse reino de luz, o caleidoscópio das sensações, dos rumorejos que nascem e morrem dentro de nós, a matriz, as bases indispensáveis a robustez dos dias na consagração do império eterno do amor que não se mostra à luz das noites, nem é visível ao sol dos dias. “  

         - Profetizam-nos a partir de sexta-feira os primeiros flocos de neve. Cá estarei para os ver cair com o olhar encantado da criança que descobre o mundo.

         - Houve recentemente mais uma mexida no Governo. Chou Chou não consegue estabilizar a sua equipa. Longe, muito longe vão já os dias do deslumbre. A prática dura da política anula todas as ambições de uma vida.

domingo, novembro 26, 2017

Domingo, 26.
Em Quiberon terminei de joelhos em acção de graças, a fascinante obra de Klaus Mann sobre Alexandre – o Grande. Poucos escritores, na idade de começar a viver a vida, quero dizer aos 23 anos, se habilitariam a escrever um romance com aquela envergadura histórica. Em momento algum o talentoso escritor nos desvia do período entre 356 e 323 a.C. Desde a morte de Filipe II da Macedónia às conquistas do filho de Olímpia do Egipto, vai um longo calvário de guerras, traições, amores, vitórias e atentados. Tudo contado magistralmente e decerto com muita fantasia e um laivo biográfico pessoal pelo meio. Filho do dominador Thomas Mann, o pai que tantas vezes o ostracizou ou esterilizou por marginal, homo e drogado, mas sobretudo por ciúme das capacidades criativas do filho. Enquanto o progenitor se ocupava de uma literatura burguesa, o descendente investia a sua genialidade na luta por ideais, na acção política, atolado na descoberta dos valores humanos, ditando a liberdade como bandeira do mundo civilizado e da conquista do espírito livre. Os seus biógrafos falam na interligação que o autor de Le Tournant faz de Filipe II com Thomas Mann – e têm razão. A construção do Rei da Macedónia, tem uma grande força e percebe-se que a personagem reflete comportamentos e temperamentos duplos que serviram ao autor de referência pessoal e concomitante semelhança com o pai.


         - A Gallimard publicou as missivas que François Mitterand enviou a Anne Pingeot: 1218, reunidas num tijolo com 1276 paginas. Eles conheceram-se em 1962 e a partir daí nunca mais se largaram. Dessa clandestina união nasceu a filha Mazarine. Muitos anos depois, Presidente da República, ele dá a conhecer aos franceses a filha e a mulher que nunca saiu do seu pensamento e que amou até ao último dia. Mitterand está em Belle île, Bretanha, de onde eu cheguei ontem e de Quiberon avistava todos os dias. Sarah Bernard teve lá uma casa com um balcão dando para o mar que eu visitei há alguns anos e debruçado no mesmo local declamei para os meus amigos alguns poemas de Fernando Pessoa. A doença cerca-o, o fim está iminente. Extraio da derradeira carta, o último ágrafo: 
         Et voilà que je ne sais quoi faire de moi, de mon temps fini. Une vrai conjuration! Mais je sortirai de ce bizarre état, ridicule et pittoresque. C´est déjà si difficile de connaître l´usage qu´on doit faire de sa vie! Le reste est plus simple puisqu´il suffit de décider.
        
         Mon bonheur est de penser à toi et t´aimer.
        
         Tu m´as toujours apporté plus. Tu as été ma chance de vie. Comment ne pas t´aimer davantage?

         - À saída da missa na Basílica de S. Denis, três graus. A temperatura caiu a pique.


         - No autocarro de volta a casa, todos os odores de África eram possíveis respirar.

sábado, novembro 25, 2017

Sábado, 25.
Deixámos Quiberon de manhã para Paris onde acabámos de chegar. Para trás ficou a cidade simpática, que vive ao ritmo lento do Inverno, de trancas nas portas, entregue aos genuínos habitantes, rodeada do oceano que barafusta sacudido pelo vento, o encantador mercado de rua aos sábados, com suas ruelas estreitas que descem na direcção do mar, cheias de pequenos cafés acolhedores, berço de muitos homens ilustres, de outros bravos cidadãos que comungam dos regimes liberais ou capitalistas, católicos na sua maioria, tementes a Deus a quase totalidade. Penso já nas noites recostado no espaldar da cama a ler, embalado pelo vento forte acompanhado dos gritos das ondas a bater no areal, ou na Brasserie Hosche onde passei momentos inolvidáveis a trabalhar, intervalados com instantes de pausa para admirar a praça, o friso de lojas do outro lado, a estátua do grande homem ao centro, o traçado das ruas onde de quando em vez passava um carro a caminho do paredão construído ao longo da praia. Recordo já com saudade os nossos passeios pedestres diários, Robert e eu, que começavam no edifício Talassa onde antes a Annie ia pagando 7 mil euros uma semana, para nos sumirmos nas dunas por um carreiro construído para os meditativos como nós, entre mar e terra selvagem, coberta de pedras com formas bizarras, um mundo geológico que se confunde com a água que a ele chega para o acariciar e retornar à origem vestida das cores de cada seixo, de cada galho de árvore, de cada náufrago... Mais além, quando a água abraça as duas margens deixando baixas ilhas cobertas de densa vegetação, pinheiros e valados, flora variada com cheiros fortes a maresia e algas, encontramos o mundo do silêncio emaranhado nos destroços de vendavais, de grandes ondas destruidoras, verdadeiras catedrais a céu aberto, onde no Verão os amorosos virão viver as sensações fortes que cobrem os corpos virgens e são pela beleza dos instantes a imagem derradeira do Atlântico cúmplice daqueles que ousam convidá-lo para a festa da ressurreição da vida.    


         - Um extermino no Egipto à hora da oração numa mesquita do Sinai. Saldo até ao momento: 300 mortos, mais de uma centena de feridos. Os fiéis saíam duma mesquita sufi quando foram atacados à bomba e com balas. Os assassinos são os mesmos: o incorrectamente denominado estado islâmico. Sisi, o presidente, prometeu vigança. Assim vai o nosso mundo, aos 25 dias andados do mês de Novembro do ano 2017.

quinta-feira, novembro 23, 2017

Quinta, 23.
Ontem subi ao meu quarto no primeiro andar da casa para dormir. Aquecido e confortável, fiquei até tarde a ler. Lá fora corria o vendaval, com chuva forte a que se juntou o barulho do mar, revolto. Agradáveis horas a ouvir aquela sinfonia de sons insubmissos, que faziam tremer as janelas, mas deixavam-me uma sensação de conforto e serenidade. Pela uma da manhã, apaguei a luz. Durante muito tempo pensei que adormecia embalado pela tempestade. Qual quê! Só pelas três da madrugada, quando, enfim, a orquestra entrou no final pianíssimo, pude mergulhar no doce feitiço do sono profundo.

         - Após o almoço que Robert nos ofereceu num restaurante simpático da Praça Hosche, deixámos a Annie no carro e fomos caminhar através das arribas selvagens, seguindo o trajecto pré-definido que limita a orientação do visitante e abre à natureza o caminho que sempre fora o seu. Antes, num café barulhento que parecia ter sido criado para receber todos os coxinhos, coitadinhos, trabalho com imensa dificuldade no romance. Não só devido ao barulho que reinava à minha volta, como ao facto de as frases não brotarem e eu ter que as refazer uma dúzia de vezes. Só ao cabo de duas horas, o cérebro pôde orientar o discurso narrativo e torná-lo consistente.
Ponta selvagem de Congel 

         - A propósito da atenção que Corregedor tem com os seus amigos, tenho algo a dizer. O João é pai de três filhos, avô, tem uma vida movimentada do ponto de vista social e político, mas nem por isso deixa de alimentar as amizades. Está sempre disponível para elas, interessa-se pelos seus problemas, ajuda no que pode, sabe, enfim, que a reciprocidade nas relações como em tudo o resto é essencial para não se cair no egoísmo e no gosto exagerado de si próprio, na solidão ainda que a dois. Sair do conforto familiar e pessoal, é essencial para que os amigos não sintam que a carroça dos momentos felizes é puzada apenas por um dos lados. Eu acredito cada vez menos naquelas e naqueles que invocam a falta de tempo, a mentira “não te queria incomodar”, “o último que telefonou fui eu” e outras figuras do egocentrismo e da falsidade que orientam as relações humanas de hoje. Quando trabalhavam atribuiam à ocupação as culpas da sua ausência; na reforma aos filhos e netos, ao papagaio e à doninha. Sem dar por isso estão sós, doentes e intoleráveis de trato. Esperam, irritados, a morte.


         - Choveu bem pela manhã, chove menos à tarde. O céu está acastelado de nuvens escuras. A maioria das belas casas de telhados em pirâmide de lousa está fechada. A cidade estival não aceita de bom grado o Inverno. Pouca gente, quase nenhum movimento, ruas vazias. Apesar disso, as ligações de barco para Belle-île-en-Mer funcionam. Ouço das janelas do meu quarto o grito da sirene a avisar os passageiros da partida.