quinta-feira, novembro 09, 2017

Quinta, 9.
Estamos em Cambrai. Deixámos Paris de manhã cedo pela auto-estrada do Norte. Eu estava curioso de ver a transformação da vasta garagem da Annie sem uma boa parte das viaturas antigas, vendidas recentemente em leilão muito concorrido, que rendeu à sua proprietária perto de um milhão. Mesmo assim ficaram oito donas elviras de respeito, aprumadas e cheias de pó de arroz, a ocupar o espaço onde antes as irmãs se acotovelavam à mistura com as teias de aranha, toda a sorte de coisas e lousas, restos dos entusiasmos do pai da Annie, reuniões de amantes destas senhoras respeitadas e tudo o que fez os primórdios do automobilismo do século XIX aos nossos dias. Na enorme nave do primeiro andar, ficaram dois Renault de 1930, um Hotchkiss, um Unic de 1932, um 2 Chevaux, um Voisin de 1932, um Sizaire de 1928, outro que não retive a marca, mais o avião do pai da minha amiga que Robert pilota de tempos a tempos. Contudo, proporcionalmente, o que mais valor atingiu, foram as chapas das marcas antigas, os cartazes em folha, em cartão, os bidões de óleo e gasolina dos primeiros tempos, os motores velhos, as carcaças de modelos mancos. Algumas das vetustas damas, estão hoje nos Estados Unidos, em Praga, poucas ficaram em França. Os preços elevados assim ordenaram.

         - Mal chegámos a Cambrai, despachei-me ao encontro do juiz Apostolatos que me aguardava para duas horas de histórias, no Signe. Abanquei no lugar dito dos “retraité heureux”. O restaurante a esta hora (onze da manhã), está a abarrotar de clientes, na sua maioria homens rosados de ventres imponentes. Respira-se uma atmosfera familiar, cada habitué que entra vem à minha mesa cumprimentar-me de mão. Sou um entre os demais. A dona do estabelecimento tem um rosário tatuado numa perna cujo crucifixo termina no pé. Há alegria, risos, troca de chalaças. Um sol frio espreita através das janelas altas, rasgadas na parede à esquerda de quem entra. Tenho em permanência um olho no juiz e outro neste mundo rigolô. A dona do restaurante começou a preparar as mesas para o almoço. Toda a gente fala com ela e ela devolve a todos um cumprimento na forma de uma gargalhada estridente. Acabam de entrar uns homens chiques, fatos escuros, engravatados, rostos cheios de pessoas abastadas, que um a um vêm a minha mesa apertar-me a mão. Não conheço, naturalmente, ninguém. Quando cheguei, fui ao balcão “comptoire de la bière” pedir um café. O patrão reconheceu-me e disse-me discretamente que tinha uma mesa vaga em frente. Tenho paixão por este ambiente, mas não consigo convencer os meus amigos a virem aqui almoçar ou simplesmente tomar um café. E no entanto, não é por eles que venho, mas por esta família enrolada na felicidade dos dias, numa cidade histórica de província, onde Napoleão dormiu, em torno de uma cerveja ou dum golo de Ricard, onde tudo tem nome e onde hoje se cantou os parabéns a um velho senhor que chegou como se tivesse entrado na sua sala de jantar com os filhos e os netos bêbados a desejar-lhe cem anos de vida.   

         - É certo e sabido que regressarei com dois ou três quilos a mais. A escolha e modo de cozinhar dos meus amigos, não tem nada a ver comigo e, por outro lado, quando como fora, em restaurantes tipicamente franceses, sou tomado por uma espécie de sofreguidão que me empanturra do pior e do melhor. Mas não há nada a fazer. Tenho esperança de retomar os meus simpáticos 63/64 quilos e deixar para trás o enfardamento perigoso. Elegance d´abord!


         - Mandei ao “meu” editor o original de O Pesadelo dos Dias Felizes que aqui tenho trabalhado em ajustamentos e pequenos retoques. Esqueci-me de trazer o Marco Aurélio, mas as revisões foram feitas. Isto foi ontem. Logo hoje recebi a resposta acompanhada do júbilo de haver recebido mais um trabalho meu, prometendo lê-lo em dez dias! Fechado o e-mail, foi para Malraux que me voltei: “La création est la même aventure dans le succès que dans la solitude; le premier est plus agréable, c´est tout.” A Annie não compreende porque não me decido eu.