Sábado, 11.
Ontem
dia agitado. Tendo deixado os meus amigos pela manhã, perdi-me por vários
pontos de Paris em passeios de descoberta e nostalgia. À meia-tarde, subi ao
restaurante panorâmico do BHV para saudar as minhas amigas que por lá continuam
em murmúrios e tremores de despedida, trancadas num adeus à cidade cujas
telhados pardacentos olham do fundo da memória cansada, assim como a cidade sob
o céu de chumbo da sua infância quando as primeiras luzes brotam dos candeeiros
para as impedir de caírem no asfalto molhado da chuva miudinha que tem caído
sem descanso. Depois, travessei o Marais e entrei num café na Place des Voges, não
só para consumir um pouco do tempo vazio, mas também para me aquecer com uma
infusão de ervas que me retemperaram do cansaço pedestre. Às oito rumei à Place
de la Republique para me encontrar com Annie e Robert e juntos irmos ao teatro
Dejazet ver a peça de Molière Le Malade
Imaginaire.
- Foi graças à diva da canção e do
espectáculo, Hélène Delavault, que conseguimos os bilhetes. O seu companheiro,
Jean-Claude Durrand, faz o papel de irmão do burlesco “doente”, numa encenação
curiosa de Michel Didym. Sala a abarrotar, constatando eu, uma vez mais, do
imenso interesse dos franceses de todas as idades pelo teatro. O interior, todo
num vermelho vivo, lembra um teatro italiano do século XIX, com o seu balcão em
anel e o tecto pintado com figuras empinocadas. Em cena pouco ou nenhum
adereço: a cadeira de Molière e dois ou três bancos. André Marcon é convincente
no papel do doente nostálgico, entre o burlesco e o sonhador que se permite
toda a sorte de fúrias, tempestivas raivas e tiranias consequentes. A equipa de
actores é convincente, embora me tivesse parecido desigual e aqui e ali sem
energia. A encenação, em muitos momentos, vertiginosa com excelentes resultados
cénicos para os momentos cantados. Dito isto, é o divino Molière que está
presente num texto admirável que nenhuma encenação consegue destruir. Dir-se-ia
que ele está acima de todas as desgraçadas postas em cima dos palcos. Quem
brilha é ele do fundo dos séculos, impondo-se através do tempo às gerações futuras.
Numa parte do texto, ele diz que não se morre da doença, morre-se dos remédios.
Como eu costumo afirmar. Esta obra é um ajuste de contas com a medicina e,
curiosamente, o seu autor morre depois de deixar o teatro onde a representou,
em 17 de Fevereiro de 1673. Por analogia, apetece dizer que os franceses dos
nossos dias, grandes consumidores de medicamentos, estão intactos nesta peça
trágico-cómica de Jean-Baptista Poquelin.
- No final da representação, ficámos à
conversa com a nossa querida amiga e com o seu companheiro e mais alguns dos
actores. Quando a Annie e o Robert se retiraram, eu continuei com eles numa
animação que não diferiu em nada daquela que costumo ter com o meu grupo de
pintores, escultores, actores e jornalistas no Príncipe. A célebre Place de la
Republique, à uma hora da madrugada, estava sob o sol tímido do meio-dia. As
esplanadas cheias, as discussões ao rubro, a imensidade de luz em torno do grande
recinto no meio do qual se ergue a estátua Marianne.
- Chove. Esta noite vou jantar a casa
da Françoise, no sexto bairro de Paris.