sábado, novembro 11, 2017

Sábado, 11.
Ontem dia agitado. Tendo deixado os meus amigos pela manhã, perdi-me por vários pontos de Paris em passeios de descoberta e nostalgia. À meia-tarde, subi ao restaurante panorâmico do BHV para saudar as minhas amigas que por lá continuam em murmúrios e tremores de despedida, trancadas num adeus à cidade cujas telhados pardacentos olham do fundo da memória cansada, assim como a cidade sob o céu de chumbo da sua infância quando as primeiras luzes brotam dos candeeiros para as impedir de caírem no asfalto molhado da chuva miudinha que tem caído sem descanso. Depois, travessei o Marais e entrei num café na Place des Voges, não só para consumir um pouco do tempo vazio, mas também para me aquecer com uma infusão de ervas que me retemperaram do cansaço pedestre. Às oito rumei à Place de la Republique para me encontrar com Annie e Robert e juntos irmos ao teatro Dejazet ver a peça de Molière Le Malade Imaginaire.

         - Foi graças à diva da canção e do espectáculo, Hélène Delavault, que conseguimos os bilhetes. O seu companheiro, Jean-Claude Durrand, faz o papel de irmão do burlesco “doente”, numa encenação curiosa de Michel Didym. Sala a abarrotar, constatando eu, uma vez mais, do imenso interesse dos franceses de todas as idades pelo teatro. O interior, todo num vermelho vivo, lembra um teatro italiano do século XIX, com o seu balcão em anel e o tecto pintado com figuras empinocadas. Em cena pouco ou nenhum adereço: a cadeira de Molière e dois ou três bancos. André Marcon é convincente no papel do doente nostálgico, entre o burlesco e o sonhador que se permite toda a sorte de fúrias, tempestivas raivas e tiranias consequentes. A equipa de actores é convincente, embora me tivesse parecido desigual e aqui e ali sem energia. A encenação, em muitos momentos, vertiginosa com excelentes resultados cénicos para os momentos cantados. Dito isto, é o divino Molière que está presente num texto admirável que nenhuma encenação consegue destruir. Dir-se-ia que ele está acima de todas as desgraçadas postas em cima dos palcos. Quem brilha é ele do fundo dos séculos, impondo-se através do tempo às gerações futuras. Numa parte do texto, ele diz que não se morre da doença, morre-se dos remédios. Como eu costumo afirmar. Esta obra é um ajuste de contas com a medicina e, curiosamente, o seu autor morre depois de deixar o teatro onde a representou, em 17 de Fevereiro de 1673. Por analogia, apetece dizer que os franceses dos nossos dias, grandes consumidores de medicamentos, estão intactos nesta peça trágico-cómica de Jean-Baptista Poquelin.

         - No final da representação, ficámos à conversa com a nossa querida amiga e com o seu companheiro e mais alguns dos actores. Quando a Annie e o Robert se retiraram, eu continuei com eles numa animação que não diferiu em nada daquela que costumo ter com o meu grupo de pintores, escultores, actores e jornalistas no Príncipe. A célebre Place de la Republique, à uma hora da madrugada, estava sob o sol tímido do meio-dia. As esplanadas cheias, as discussões ao rubro, a imensidade de luz em torno do grande recinto no meio do qual se ergue a estátua Marianne.


         - Chove. Esta noite vou jantar a casa da Françoise, no sexto bairro de Paris.