Segunda, 26.
Prosseguem
os telejornais-espectáculo, longos como caminhos consumidos pelo fogo, pesados
como a morte que rondou as casas e levou muitos moradores. Este tipo de
jornalismo vigarista, vistoso, puxado à lágrima, cínico, falsamente cristão, miserabilista,
que mais não faz que oferecer ao espectador a festa da dor e da miséria de um
povo simples, enganado e abandonado, crente e só, confrontado com perguntas
idiotas a que responde com prantos compungidos e incredulidade reservada. Esta
classe que sai das faculdades às pazadas, devia ser toda demitida e muitos
presos.
- Em casa de amigos ouvi o artista que
ganhou o Festival da Canção, num disco com cadências de jazz, que me deixou
deslumbrado. Comparado com a lamecha canção que a Eurovisão premiou, aquilo é
um diamante. No género, mil vezes melhor a canção que Maria Guinot levou à
Eurovisão, em 1984. Dito isto, o que se ressalva é a personagem Salvador
Sobral.
- Esta madrugada, pelas 5,30, grande
susto. Acordo num estado de excitação horrível, a transpirar, uma dor
localizada na omoplata esquerda que tornava o braço fraco. Penso ser do calor
e abro de um lado e outro as janelas. Mas na cama não posso estar, não tenho
posição, estou enervado. Pensei que estava a fazer um AVC e desço para medir a
tensão: 21x11. Um horror! Do nunca visto! Decido meter-me no carro e ir ao
hospital a Setúbal. O susto porém, leva-me aos bombeiros que estão mais perto.
Entro no quartel por um corredor ao fundo do qual dou com quatro matulões a dormir
vestidos sobre camas improvisadas. Chamo por eles, nenhum respondeu, prego a
fundo no sono de morte. Abano o que me está mais próximo. Este levanta-se meio
tonto, acorda um companheiro. Os dois levam-me para dentro de um carro que
possui o mínimo para saber o que tenho. Medida a tensão, esta apresenta mais um
ponto: 22x11. São eles que chamam o INEM que leva algum tempo em paleio
suspenso. Fica decidido que me vão levar a meio do caminho, entre Palmela e a
cidade sadina. Estou gelado, o próprio amável soldado da paz inquieta-se porque
estou lívido. Chega o socorro. No nosso carro entra de rompante uma médica
stressada, grandes olheiras, acolitada por um enfermeiro que devia ter chegado
naquele momento das filmagens de um filme X - tal a beleza e imponência física.
Um electrocardiograma é feito: “O senhor tem um coração de adolescente. Está óptimo!
Só a tensão é que está a mais”, diz-me ela recomendando ao actor que me ponha um
comprimido debaixo da língua para fazer baixar o monstro. Recomenda depois aos
bombeiros que me levem ao hospital. Chego de maca, transferido de seguida para
cadeira de rodas. Aguardo uma boa meia-hora para ser observado por um médico de
origem estrangeira que fala bem o português. Novo electrocardiograma, seguido de
auscultação, esforço do braço esquerdo. Aparentemente não há nada, a tensão
tinha descido para 15x8,2. “Mas vamos fazer uns exames para ficarmos
descansados,” diz-me ele, cordato, quase familiar. Volto à sala onde o inferno
se instalou. Há velhos aos ais nos corredores, gente que entra e sai,
enfermeiras e enfermeiros que não param um instante, o habitual. Percebi que
sou eu que tenho de me mexer de forma a sair daquela algazarra mais depressa. Indago
como devo fazer para os exames. “Ao fundo do corredor, à esquerda”, responde-me
um enfermeiro jihadista. Aí chegado, verifico que é à direita. Bom. (Lembrei-me
logo da cena do 758.) Espero, espero. Até que uma técnica de grandes e grossos
seios dourados, me faz entrar numa sala minúscula, aperta com uma borracha o
braço esquerdo, engata a agulha e da mangueira jorra o suficiente para encher quatro
tubos de plástico. Depois diz-me que aguarde uma hora pelos resultados. Nesse
entretanto, estando em jejum, procuro um café. Vou encontrá-lo atravessando a
rua. A sala está repleta de enfermeiras e enfermeiros de olhares melados, um
deles até descaído numa espécie de flor de lis onde se insinuam todos os dramas
amorosos. Não tenho dinheiro suficiente e vou ter que o levantar do Multibanco
existente na entrada principal do São Bernardo. Vou a pé por ali abaixo,
cais-que-não-cais. Regresso às Urgências abastecido e um pouco mais animado.
Vou aguardar ainda mais meia-hora. O simpático clínico, assim que assomo à
porta, dispara: “Ainda vai viver mais 30 anos! Não há problema nenhum. – Então
o que aconteceu? – Talvez seja uma questão nervosa e para a dor nas costas, vou
passar-lhe um gel e ponha um saco de água quente.” Volto ao quartel de táxi
onde tinha estacionado o carro. Procuro os meus benfeitores, mas não está
nenhum deles. Estão outros a quem pergunto quanto devo da ajuda. “Nada. Não
paga nada.” Já em casa, volto a medir a pressão sanguínea: a sistólica 12,6, a
diastólica 7,3. O costume. Pelo sim, pelo não, marquei uma consulta com o meu médico para
quarta-feira. Ficas proibido de dizer que estás bem, ouvistes Helder?