Quarta,
21.
Paguei
a factura da electricidade e dirigi, instantaneamente, uma prece ao secretário
de Estado da Energia, senhor Jorge Sanches, pedindo-lhe que não renuncie a pôr
os PDGs do monstro chinês na ordem. Ele disse outro dia à TSF, que não tinha
medo da EDP. Por outro lado, toda a sua acção tem sido pautada pela defesa dos
consumidores e da justiça. Eu que raramente elogio um político, espero agora não
vir a tapar a cara de vergonha como já me aconteceu quando enalteci um ou outro
político de pronto estatelado nos frontispícios dos jornais por corrupto e
ladrão.
- A tragédia de Pedrógão ainda exalta
e revolta. Enquanto o fogo não foi de todo extinto, mexem-se os seres que dele
escaparam, para dizer de sua justiça. Parece que há muito para apurar. A
começar pela mentira posta a circular de que o fogo foi obra da natureza quando
sobre uma árvore a rasgou de alto a baixo e espalhou assim o terror. Ao que
tudo indica, já duas horas antes andavam terras a arder com a assinatura de um
ou mais criminosos. Assim também o trabalho da GNR que atirou para a morte
cinquenta e tal automobilistas que fizeram confiança nas indicações da polícia
e seguiram por uma estrada que ficou batizada por “estrada da morte”. Ou ainda
a forma rude e violenta como alguns agentes deram ordem de evacuação das suas
casas a compatriotas tomados do terror. Por sobre tudo isto, o que se percebe é
que existiu muito amadorismo. Espero que o Presidente da República e o
Primeiro-Ministro, assim como a ministra da pasta apurem com independência o
que se passou. Porque de blá-blá está o inferno cheio. E já agora de minutos de
silêncio pelas vítimas que não passam de folclore.
- A realidade porém, só é perceptível
quando temos de a enfrentar no dia-a-dia. Vou dar-lhes um exemplo. Ontem, quando
cheguei a Sete Rios, pelas 10,30, quis tomar o metro. Uma barreira impedia a
multidão de acesso à gare. “O metro não anda porque de manhã alguém se atirou à
linha”, era o que ouvia dizer. Voltei à superfície em busca de um autocarro que
me deixasse no Chiado. Diz-me um condutor: “Atravesse para o outro lado e vá no
58.” Assim fiz. Qual barata tonta, de nariz no ar, procuro o 58. Dirijo-me a
uma senhora que me informa ter de caminhar mais um pouco “até à paragem do 58 para lá da estação do metro”. Sigo a sua indicação. Calor insuportável, gente
agitada e revoltada. Numa curva perigosa, vejo, enfim, uma paragem. Alguns
passageiros aguardam, na sua maioria africanos extasiados de olhos esbugalhados
nos telemóveis que não largam por um minuto. Indago de um deles se é ali a
paragem do 58. Ele responde que sim, sem me dirigir o olhar. Mas eu observo,
soletro todas as carreiras e só vejo 756. Insisto: “Mas aqui não há nenhuma
indicação desse autocarro! O que vejo é 758 e 703...” É uma branca cavernosa
que eu tinha do meu lado esquerdo e por duas vezes me afastei porque a mulher
não parava de espirrar e tossir sem protecção, que me diz: “Ó senhor, o 58 é o
758” Encolho-me. Registo que este não é o meu mundo e disfarço observando o
garrafal prédio que tenho na frente. Daí a meia hora, volto à carga mais
afastado do rosto de fome da criatura: “Sabe a que horas passa o autocarro.
Estou aqui há meia-hora já... Interrompe-me ela muito despachada: “Olhe e eu há
uma hora! Então não sabe como é a Carris!” De facto, não sabia. Esperei, sob um
sol tenebroso, sem uma aragem, sempre de olho nos poucos táxis que passavam...
cheios. Daí a vinte minutos, pára, enfim, o 758, perdão, 58. Vem atulhado como
sardinha, uma algazarra lá dentro, todos a empurrarem-se e a barafustarem. Não
havia espaço para mais ninguém, porque nenhum passageiro saiu. Os que queriam
entrar, meteram bucha e vai daí, por pressão, conseguiram alinhar o cadáver no
fio estreito do corredor, ante a indiferença do condutor a quem ninguém (nem
eu) comprou bilhete. Felizmente que a carroça do peixe tinha um óptimo ar
condicionado. No percurso por uma cidade que eu não conheço, foi entrando mais
passageiros, de mochilas nas costas a abrir caminho e a sacolejar as velhas
frágeis que gritavam ais convencionais e vitupérios apimentados. Chegados, sem
eu saber como, às Amoreiras senti-me seguro e dali até ao Chiado foi como se
voltasse a viver nos espaços onde cresci e conheço como a mim mesmo. Moral da história: esta é a Carris que o Presidente da Câmara de Lisboa chamou a si... comprando-a.
- Esta ladainha, traz uma outra: a
debilidade do português que hoje é falado. De súbito, o português que se ouve
nas ruas e na televisão, é uma manta de retalhos, esburacada, no limite do
vocábulo, construído por analfabetos e gente da sargeta. A história do 758 amputado do primeiro número, é a mesma daquela expressão que se escuta e nos
estupidifica até dizer chega. Dois tipos encontram-se: “Tá tudo? Tudo –
responde o outro.” Parece conversa de atrasados mentais, de miúdos rigolôs, de
bêbedos, de alguém que optou por falar com um número mínimo de palavras e se
possível apenas por gestos.
- O calor deu hoje tréguas. Aproveitei
para fazer alguns trabalhos no campo e, sobretudo, varrer da casa o bafo
doentio que se tinha instalado. Não sei como as hortências têm suportado!
Rego-as de manhã apenas e ao fim do dia estão como alcoolizadas de cara à banda
e corpo encolhido. Mas quando desço do sono felizmente directo de sete horas,
estão de novo sorridentes, frescas, rosadas, lindas de morrer e pedindo
mansamente a ração líquida do dia. Vou mergulhar na sopinha tépida.