Segunda,
31.
Há
coisas inexplicáveis. Andei sábado e domingo à procura de uma chávena de café
por todo o lado. Pensei em telefonar à Piedade a saber se ela a arrumou em
algum sítio inabitual; cismei se ela não a teria partido e, como é usual, não
declarado o acidente. Hoje de manhã, quando chego à cozinha e me abeiro da
bacia onde a loiça fica a escorrer, encontrei-a solitária e bela, com seu friso
dourado sobre a transparência da porcelana. Juro que ainda ontem à noite não
havia nada no escoador. Mas a maior satisfação que senti, foi não ter que
confrontar a pobre da Piedade com esta história sem importância absolutamente
nenhuma.
- Ontem não sei o que me deu para pôr
um disco de José Afonso (traz outro amigo
também) que escutei debaixo do alpendre contiguo ao salão. Esta é a
autêntica música popular. Que voz! Que construção musical sem arranjos especiais,
limpa como a voz que a canta, os poemas claros que falam de tudo e de todos! Nada
naquelas canções perdeu força, poesia, encantamento. É todo um tempo de
opressão, uma geração de artistas subordinados ao rigor da arte enquanto
manifestação especifica de cada um na divergência política contributiva da
democracia que se estatela. Eu conheci o Zeca aqui em Setúbal, na sua casa com a
Zélia serena companheira atenta a tudo, a Graciete que nos apresentou, o Ângelo
Sajara. Disso dei testemunho em páginas idas e foi ainda essa noite que
naufragou no meu coração ao escutar o disco. Ambos frequentávamos o mesmo
dentista, à Lapa, o Dr. Eurico de Freitas e conversámos algumas vezes na sala
de espera com a sua grande vidraça que dava para o pequeno jardim cheio de
plantas. As memórias qual nobre rosácea medieval na quietude da manhã, com
vista para um ângulo de luz, na quietude inundada das interrogações sem
resposta, cachoavam na minha mente como flaches de um brilho incandescente.
Verdes são os campos
Da cor do limão
Assim são os olhos
Do meu coração
(Luís de Camões,
musicado por José Afonso, Ed- Orfeu).
- Fui num pé e voltei noutro a Lisboa.
Estive à conversa na Brasileira com os habitués (tema maior: a Festa do Avante,
quase todos em desacordo, comunistas e ex), trinquei depois qualquer coisa no
Corte Inglês, comprei o jantar e regressei a casa para não me cruzar com a foule das horas de ponta. Natação sob o
céu limpo, calor q.b., um sopro de vento vibrando nas árvores, murmurando um
salmo congraçado. Ando desvairado relendo o niilista Schopenhauer. Que
modernidade construída em mil e oitocentos! São 17 horas e 37 minutos.