terça-feira, novembro 30, 2021

Terça, 30.

Apesar de ter aberto as janelas de par em par, morreu aqui o perfume de mulher ou antes foi por todo o rés-do-chão sepultado. Se me sento nos sofás, se abro o Expresso que o João deixou para trás, se vou da sala de jantar ao salão, sorvo em todos os lugares um aroma feminino que me inebria. Não vou dizer que me é desagradável, digo que me é estranho, pouco natural, não corresponde aos odores que entram do campo e invadem o interior do cheiro das laranjeiras, das árvores e da vinha que abraçam num abraço envolvente e apertado a casa e estão afeitos ao seu morador. 

         - Domingo abeirou-se a Piedade, tristonha. Fi-la sentar-se no salão porque percebi que tinha de a ajudar. Despejou o que havia travado durante a minha ausência e lhe era insuportável reter. O neto, neste último mês, instalou lá em casa uma africana roliça que se diz namorada do rapaz. Com ele dorme e partilha a habitação, num manifesto desprezo pela sua idosa proprietária. A pobre avó que já teve a sua dose com a primeira rapariga que se apressou a ter uma criança e fez a vida insuportável à Piedade e ao pai, vê-se de novo metida num beco sem saída que decerto virá a ser a reiteração da outra que abalou com o filho para a Holanda e a deixou num vale de lágrimas e tormentos. Aconselhei-a a correr com ambos para o andar vazio que possui na Quinta da Torre se quiser viver mais alguns anos. É tão agradável ter uma família nos dias de hoje, que eu choro baba e ranho todas as noites por não ter a casa cheia de amorosas criancinhas... 

         - Ia-me a esquecer ou não estou aclimatizado ainda à minha terra. País giríssimo, albergue de toda a sorte de gente, sobretudo gatunos, corruptos e vendedores de banha da cobra, com rostos onde se perde ou se reinventa a honorabilidade quando enfrentam as televisões, convictos de afirmações concordantes com o seu estatuto de defensores da moral e bons costumes, da ética e da democracia. Penso em Agostinho Branquinho e Marco António. E porque carga me levou a mim ao encontro de duas respeitáveis criaturas que o MP, pensado diferente, acusa de branqueamento de dinheiros indevidos. Ambos foram secretários de Estado da Segurança Social do Governo PSD-CDS, portanto, estimáveis servidores da nação, naturalmente, sem contas em off-shores e conhecimento onde fica o Panamá. Que embirração esta do Ministério Público! 

         - O Chega adoptou a máxima salazarista: Deus, Pátria, Família e... Trabalho. Bom. Eu como os meus leitores decerto já se deram conta, não dou qualquer espécie de crédito ao partido como não concedo às damas do BE. O homem que dirige o Chega, é boçal, incongruente, não apresenta bases sólidas, políticas e sociais; falta-lhe o mínimo de ética e conhecimento para um dia gerir o país.  É arruaceiro, português de berço coxo, não merece uma linha que os jornais lhe dedicam porque têm de vender papel e o quanto pior melhor na linha do jornalismo dos nossos dias.  

         - A 8 de Agosto de 1943, Julien Green anota no seu diário a mais surpreendente e trágica definição da II Grande Guerra: “Un enfant allemand, réfugié de Hambourg, arrive à la frontière danoise après l´effroyable bombardement de cette ville par la RAF. L´enfant a douze ans. Il porte deux sacs que les douaniers lui font ouvrir; le premier contient les lapins du petit garçon: le second contient le corps de son frère âgé de deux ans.” (pag. 479 Toute Ma Vie, Bouquins) Fechei o livro incapaz de conter as lágrimas e a revolta que me tomou; adormeci muito tarde e no dia seguinte ainda carregava o peso desta imagem. A todos os que pensam fazer a guerra, deviam ser enviadas estas linhas. 


segunda-feira, novembro 29, 2021

Segunda, 29.

António Costa tem razão ao enfrentar as companhias aéreas com mão de ferro e multas de 20 mil euros por passageiro não testado por Covid. Eu sou testemunha desse crime em tempo pandémico. Ao deixar Paris, ninguém me pediu no aeroporto o certificado de vacinação. 

         - Bom. Como se previa está já aí um irmãozinho da besta inicial que tomou o nome de Ómicron – e com ele a baralhação instalou-se. Novas medidas de confinamento e impacto contra a quinta vaga estão em curso a partir do próximo dia 1 de Dezembro. Pode-se dizer que o Certificado Covid-19 passou para segundo plano ou não é suficiente por si só para desafiar as actividades económicas que sempre foram mais importantes que a vida humana; e vai daí a ele junta-se o teste assim e assado. A humanidade assiste à mordedura com espanto e estupefacção. E a coisa não é para menos. Vários países fecharam-se, literalmente, ao mundo; outros obrigaram os seus cidadãos a confinar sem restrições, todos temem o parente recém-chegado que ameaça ser mais potente que o seu primogénito chinês. Em Portugal a coisa bate forte. Ontem mais 2.897 novos casos e 12 mortes. Globalmente, desde o início da peste, foram infectados 1.139.810 e faleceram 18.405 pessoas.  

         - Registo com prazer que o bluff não ganhou as eleições no seu partido; e anoto com repugnância a atitude dos chamados “barões”, pensando que tinham nele o seu guia económico-financeiro, logo se lhe colaram de olhos revirados a somar empreendimentos de toda a ordem.

         - Sábado os amigos só daqui saíram pelas 10 da noite, expugnados na torrente de conversas a bâtons rompus. À roda da mesa e depois no salão, a temperatura aconchegante da casa ajudando, o calor dos temas arpoando, foi mais uma vez Corregedor que liderou com a canga dos factos políticos de que não tenho nenhuma paciência nem interesse em entrar. Por sobre todas as divergências, imperou a estima e amizade – muitíssimo mais importantes que todas as ideologias políticas. Carmo Pólvora ofereceu-me um magnífico livro ilustrado com a sua pintura ímpar que não me canso de folhear. 


sábado, novembro 27, 2021

Sábado, 27.

Assim que cheguei precipitei-me para a Faculdade de Ciências a fim de me ser administrada a terceira dose da vacina contra a Covid-19. Mais uma vez serviço impecável, pessoal dedicado, ordem exemplar. Fui depois ao lado à CGD depositar o cheque que a casa a quem vendi a peça de ouro, em Paris, me passou. Esqueci-me que estava em Portugal onde a ganância não tem limites e surpreendi-me por ser informado que para ter a importância na conta (daqui a 20 dias!), teria de pagar 17 euros!! “É normal” diz a funcionária. “Hoje – respondo eu – porque antes não era.” De seguida fiz o trajecto até ao Rossio a pé, como se os quilómetros percorridos em Paris não me pesassem nas pernas, passando pelas ruas do meu passado quotidiano, hoje uma tristeza novo-rico de asco e enfado. Muitos dos restaurantes e casas comerciais fecharam e revividos exibem na lapela da porta nomes estrangeirados que são autênticos atentados à nossa língua, empobrecida pelo alfabetismo primário, que conta apenas para os números porque a bandeira nacional é a TAP. A Pavilhão Chinês não o vi, em frente o Faz Figura está ainda a funcionar, mais adiante o Solar dos Vinhos desapareceu, os antiquários tradicionais naquela artéria também. O que se instalou concorre para a nossa desgraçada, somos comerciantes necessitados de pouco saber e muita gula pelo dinheiro fácil na mão. Descendo o Chiado, hoje uma recordação do passado, onde o turismo de massa se pavoneia como se fosse senhor de tudo, olho-o empobrecido, oferecendo a imagem de país subdesenvolvido e pacóvio, como acontecia no séc. XIX, de braços abertos a tudo o que é estrangeiro e cuida ser esse o rumo para o desenvolvimento económico e cultural. 

         - Aquela da mãozinha marota do Francis outro dia na Comédie Française, foi puro engano. Só esta manhã ao telefone soube, quando ele me explica que é assim que as coisas começam no camarote com o petit oiseau...

         - Estou à espera da Marília e do João acompanhados da Carmo Pólvora convidados para uma raclette. Deviam ter chegado às 13,20, mas mais uma vez a taralhouca da Carmo trocou-lhes as voltas. Devem chegar - se chegarem - pelas 14,20. Eu, entretanto, perdido de fome, ataquei no combustível. 

         - Tenho a casa bem aquecida não vão os convidados já com alguns anos em cima derrapar numa gripe. Lá fora corre um vento frio, desalmado. Todo o conforto do inverno se fechou aqui dentro com as memórias de outros invernos mais a ternura do presente em diálogo. 


sexta-feira, novembro 26, 2021

Sexta, 26. 

Logo que regressei uma catrefa de problemas caseiros me esperavam. Nem tempo tive para percorrer a casa, respirar a serenidade que me pareceu mais densa, cumprimentar os meus amigos que nas estantes me aguardam com carinho, olhar os espaços limpos e perfumados pela Piedade com a ajuda da cunhada, sorver o cheiro da cera nos soalhos e tijoleiras, abrir as janelas e espreitar o campo adormecido ao sol de inverno, pôr os relógios em andamento, acender as lareiras, desfazer a mala e arrumar os novos livros, todos estes gestos habitualmente entusiasmantes, foram adiados para acudir ao essencial: pôr o carro a funcionar (ficou sem bateria), arranjar quem venha repor a água (houve uma ruptura à saída do balão), como me alimentar (não tinha nada no frigorifico).   

         - E o meu país como o encontrei eu? Igual a si mesmo, quero dizer, a brincar à justiça, à governação, à estabilidade, ao progresso, à economia e passo. 

         - Vejamos: o futebol continua a dirigir não só o país, mas sobretudo os portugueses. Os corruptos que o tomaram de assalto, têm uma qualidade que é também um defeito: fazer trabalhar os tribunais e seus agentes, mas estes encobrem na dobra das leis os criminosos. Assim que liguei a televisão, lá estavam os mesmos a jogar ao esconde-escondes : os Pinto da Costa, os Filipe Vieira, os Deco e por aí adiante. 

         - Alimentados pelos energúmenos e patetas que os endeusam. Uns e outros, tendo desembarcado em Lisboa para seguir fanaticamente os seus ídolos, semearam a desordem e o pânico no Bairro Alto. A polícia foi agredida pelas bestas inglesas, cadeiras, garrafas, e outras peças de restauração voaram, vários lisboetas feridos, a  noite foi coberta do clamor selvagem desta gente lôbrega.  

         - Morreram pelo menos 27 migrantes nas águas do Canal da Mancha. Calais está a transformar-se num memorial que condena em primeiro lugar os políticos, descreve a sua indiferença ante a tragédia ou antes as tragédias que ali acontecem, o número de mortos parece não ter fim. Todos lamentam hipocritamente estas mortes, mas no fundo é a indiferença que actua na retaguarda. Pergunto-me muitas vezes como seria uma guerra nesta altura, com os políticos actuais. Os nossos já esqueceram os seus concidadãos que passaram toda a sorte de perigos e privações durante a Segunda Grande Guerra e depois para fugir à fome, as noites de frio e medo, fome e mágoas pelas montanhas agrestes calcorreadas a pés descalços. 

         - Deixei Paris com 548 páginas lidas: 114 de Todo Es Nada e as restantes do Journal Intégral (vol. 2) de Julien Green. Nada mau, atendendo ao muito movimento durante o mês e meio de estadia em  França. 


quarta-feira, novembro 24, 2021

Quarta,24. 

Lá fomos já a noite havia descido sobre a cidade, Francis parando pelo caminho para cumprimentar amigos, entrando em cafés, apresentando-me esta e aquele (uma inutilidade social sem interesse nenhum). Chegados à Comédie Française, entrados no vasto hall com a escadaria monumental de uma beleza e brancura imaculada, logo o meu amigo se desdobrou em cumprimentos, uma palavra à direita, outra à esquerda, como dominasse as espectros da corte de Louis XIII. Chegámos com tempo para que Francis me levasse a visitar o edifício. Terminada a visita, sentámo-nos no bar cheio de madames elegantes e homens perfumados. Ofereci-lhe um copo e ele vendo que eu deixei metade não sendo apreciador de tinto fora das refeições, emborcou-o. Seguimos depois para a sua loge, (um compartiment cloisonné) próxima do proscénio, do lado direito onde ele, apagadas as luzes, pensando que estava com o seu petit oiseau, aproveitou para pôr a mão discretamente sobre a minha perna... Como não lhe dei resposta, a coisa ficou por ali e, entretanto, a teia do palco subiu...

O corredor dos notáveis 

O bar da Comédie Française 

A cadeira de Molière 

         - ... para a representação de La Cerisaaie de Tchekhov. Não conhecia a peça e, por isso, limitei-me a prestar atenção ao texto que percebi desde logo ser intimista dando espaço aos actores para se exprimirem dessa forma. O primeiro acto, francamente, achei-o monótono, básico de representação, o palco com imensas personagens que pareciam interrogar-se de um modo pouco convincente. Posso estar a ser injusto, mas esperava mais de uma companhia com o prestígio da Comédie Française. Só os actores mais velhos em cena pareciam agigantar-se, dando ao trabalho do todo a competência e o esplendor que se espera: Florence Viala, Michel Favory, Nicolas Lormeau. A personagem principal, interpretada por Viala, por vezes, caía no exagero. Nota maior para a música original da autoria de Pascal Sangia e também para certas soluções técnicas de cena que resultam muito bem, como por exemplo, o racord entre actos. Quanto ao texto do autor russo, ele é por demais evidente: duas gerações confrontam-se; dois mundos: o passado aristocrático e o anúncio do bolchevismo. A juventude em palco é disso exemplo. Igual a tantos outros jovens que preferem o imediato e não dão valor à memória enquanto processo de criação de identidades e amarração ao passado ali simbolizado pela cerejeira, que deverá ficar no sítio onde nasceu e cresceu e viu crescer a fazer-se alguém uma família inteira – os Lioubov. 

O final de La Cerisaie de Anton Tchekhov

         - Faz frio, Paris vive preocupada com a quinta leva de Covid-19, é por isso tempo de levantar amarras e partir. Não estarei melhor lá do que estive aqui – em verdade, hoje, os problemas de uns são os mesmos de outros. A Europa só oferece de diferente as catedrais, as povoações remotas onde o viver se cinge estreitamente ao humano, talvez igualmente uma certa memória que perdurou através dos tempos apesar do esforço de alguns em a erradicar. Somos hoje uma imensa comunidade de robôs, conduzidos por esquemas sociais e políticos que nos anulam enquanto seres únicos, substituímos Deus pelo dinheiro nojento, somos a imagem de uma decadência que se acentua e não sabe o valor da liberdade enquanto factor de sobrevivência e fraternidade. Temos tudo, mas falta-nos sempre qualquer coisa. Vivemos no lodo do vazio e acreditamos que seremos salvos um dia por um qualquer vendedor de projectos imobiliários ou advogado de causas perdidas. 


segunda-feira, novembro 22, 2021

Segunda, 22. 

Almoçámos em casa da Françoise como é hábito quando estou por cá. Achei-a um pouco desmoralizada consequência da doença que lhe foi diagnosticada há ano e meio. A velhice é sempre triste com ou sem dinheiro. De súbito tudo se altera sem que se faça por isso, como se os anos finais se vingassem e reivindicassem todos os direitos que o tempo da juventude lhes arrebatou.   

         - A Françoise ficou perturbada quando lhe disse que tenho um convite para ir com o Francis à Comédie Française ver a peça La Cerisaie de Tchekhov. Pior ficou quando a informei que o meu amigo possui um pequeno camarote cativo ao ano, gratuito, devido aos bons serviços que prestou à Cultura. A ideia que vou formando é esta: a instituição criada pelo cardeal Richelieu não é acessível ao comum dos mortais. É uma empresa como outra qualquer, inacessível e cara, utilizada pelas grandes empresas que compram centenas de bilhetes para oferecer aos seus clientes e, portanto, o teatro depende delas. O público espera (quando consegue) meses por um lugar. 

         - A noite descia quando atravessámos a cidade. Paris era banhada pelo manto cinza do céu e a chuva caía docemente numa murmuração, os derradeiros reflexos de luz espreitavam ao longe por entre os prédios, o Sena corria num silêncio majestático e profundo, a suas catedrais brilhavam no esplendor do fim de tarde, naquele fio translúcido do tempo aonde chegam os dias exaustos. Fixar este instante de beleza e mistério, retê-lo como quem abraça um tesouro e o guarda no tabernáculo da memória. 


sábado, novembro 20, 2021

Sábado, 20.

O que me surpreende ou nem por isso, é a quantidade de pobres que estão por todo o lado a mendigar porque têm fome: nos transportes públicos, na rua, nas plataformas do metro, à entrada dos supermercados. Muitos são franceses embora o Robert diga o contrário por ignorância ou patriotismo tolo. É verdade que Paris tem centenas de migrantes que vivem na rua em condições cruéis; mas também é visível que muitos nacionais estão ao lado dos infelizes sem pátria nem família. Sempre que algum se me dirige, contribuo com algumas moedas; no meu interior, porém, acumula-se a revolta e a impaciência contra uma sociedade que os devora de indiferença. São heroicos estes nossos irmãos e nem sempre o seu heroísmo tem a ver com miséria e pobreza. Muitos, nos seus países, eram professores, técnicos qualificados, mulheres e homens honrados que deixaram a sua pátria porque o poder instalado deixou medrar a erva ruim da sua conduta governativa sectária, dos seus interesses putrefactos.  

         - Ontem tivemos ao jantar connosco a Michel recomposta do susto do assalto. À roda de uma excelente raclette e de bons vinhos, a noite arrastou-se em conversa solta e temas passageiros, daqueles que não nos dão a volta à cabeça. Hugo bebeu e comeu como se não o fizesse há uma data de meses. Esta manhã, ao pequeno-almoço, Robert comentou comigo o espectáculo da gula do filho da Annie em termos e palavras de grande repulsa, acrescentando que ele aproveita a minha presença para se impor. Hugo antes socialista, mas desde que experimentou o regime capitalista que varre os países asiáticos (ele vive em Taiwan), passou a vender teorias de direita radical com manifesto desprezo pelos pobres e derrotados da vida. De contrário, por imposição do homem da casa, quotidianamente, ele desce do seu quarto no primeiro andar, recolhe o tabuleiro que a mãe lhe prepara, e volta a subir como um monge ou presidiário para comer só na célula. À nossa mesa é que ele não tem permissão de abancar. Quelle vie! Quelle vie! 

         - A Áustria acaba de confinar toda a população. Certamente em breve outros países da cortina da UE farão o mesmo. Falam da quinta onda, mas ninguém nos explica de onde vem esta onda se do Atlântico, se do Pacífico. 

         - Outro dia, a convite do Francis, jantei num restaurante muito frequentado pela elite política e artística próximo da Ópera. Jantar animado de conversas homo que são o seu forte. À mesa estiveram muitos dos conhecidos governantes com quem ele privou de perto,  da política a altos quadros da finança e da economia. Do que ouvi acerca das suas vidas íntimas, daria um longo romance. E quem Sabe?  Francis: “Gosto de conversar contigo porque se pode falar de tudo sem preconceitos.” E eu: “Essa malta com quem te dás – reis e rainhas, Presidentes da República e primeiros-ministros - sabes a razão que os leva a serem teus amigos volvidos tantos anos de teres deixado a diplomacia? - Não. - Têm medo que contes as suas vidinhas de retaguarda.” Riu-se, agradado.  

         - Como se pode travar a expansão do coronavírus, quando as pessoas pela noite fora convivem sem máscara nem distanciamento! Na zona por onde andámos até perto da meia-noite, quase ninguém a usava. Pior ainda. O metro da linha 14, chique e sem ruído, circulava provido de noctívagos. Já a linha 13 que nos trouxe a Saint-Denis, todos os vagões vinham a abarrotar, bafo contra bafo, impressionantemente cheios àquela hora.    


quinta-feira, novembro 18, 2021

Quinta, 18.

Pelas quatro e meia da manhã, senti qualquer coisa de estranho em baixo. Voltei-me na cama e tentei reconciliar o sono de novo, pensando que era a Annie que decidira levantar-se cedo como era costume noutros tempos. É quando estamos a tomar o pequeno-almoço que recebemos a notícia por Hugues: a casa da Michel – nossa vizinha da frente – tinha sido assaltada e outras duas no início da rua também. Estranho assalto de noite! Entraram pela garagem sem fazer estragos. Michel acordou, chamou a polícia e o ladrão, um pobre rapaz imigrante, foi levado pela polícia sem tempo para se abotoar com o quer que fosse. O curioso da história é que na véspera, antes de nos deitarmos, eu alertei o Robert para que trancasse bem a porta porque se alguém entrasse era eu o primeiro a ser maltratado (o meu quarto fica no cimo das escadas, o deles na outra parte da casa e, portanto, deste lado só eu habito de noite). Michel apareceu, nervosa, a pedir ao Robert que fosse com ela à esquadra dar testemunho do facto; este esquivou-se dizendo que isso não servia de nada e só contava para as estatísticas. Eu revoltei-me e argumentei que ele devia corresponder por uma questão de solidariedade entre vizinhos. Annie deu-me razão. Tudo o que desarranja o seu quotidiano trivial, é sem interesse nenhum. 

         - A Annie é uma fonte de preocupações. Há dias que traz uma tosse cavada com expectoração. Faz medo, sobretudo porque não leva o braço nem o lenço à boca e os vírus ficam à mercê dos que estão por perto como foi o caso na viagem de ida e volta a Quiberon e ainda por cima de janelas fechadas. Aqui chegados e depois do esforço que fiz para que tomasse um xarope, Robert levou-a ao médico esta manhã. O meu temor é que fosse covid - e ao que parece o médico pensou o mesmo e ordenou que fizesse o teste. O resultado do PCR chegou pelo telefone: negativo. Ufa! Respirámos todos de alívio. Eu afoito-me à vida, mas levo o coração atado ao desespero. Faço o meu melhor por me proteger, mas nem sempre esta atitude pode ser consentânea com as circunstâncias. 

         - O Diário de Green interessa-me sobremaneira, não só pela sua luta entre a matéria e o espírito, a alma e o corpo como princípios de inter-penetração, ainda como pesquisa de evolução pessoal no tocante à utilização do tempo materializado na vivência que perdura e dá consistência à razão. Aos quarenta anos ele considera-se velho e gasto e, todavia, vai acompanhar todo o século XX e falecer aos 98 anos. Saber como o tempo o arrastou ou como ele se deixou conduzir, é estudo para os próximos volumes de Toute Ma Vie. Je ne vous quitte pas, monsieur Green. 

         - Da massa sensível de que sou feito, esbatem em demora as árvores que nos acompanharam ao longo da viagem até casa. Todas as cores do Outono estavam nos seus dorsos majestosos que ao passarmos pareciam inclinar-se numa vénia a um tempo divertida e imponente. O sol que surgia de quando em vez, reflectia nelas uma animação suplementar, na embriaguez de flaches cintilantes que combinam paletas cromáticas de grande efeito. Seguíamos por um longo corredor vegetal que humaniza a paisagem e aproxima o horizonte toldado de chuva, enquanto no habitáculo a música de Bach alcantilava o espírito para regiões intangíveis de beleza. Depois... depois veio a noite e com ela cada vez mais próxima a grande cidade. As árvores fizeram-se sombras que se agitavam ao vento, um braseiro de luz e ruído na linha do horizonte, vermelha e branca, engolia o silêncio e calara a voz de Johann Sebastian Bach. De repente o vazio. O desamparo. A vastidão da noite.  

         - Dia limpo. Temperatura aceitável. As árvores do parque de la Courneuve que vejo da janela do meu quarto, são estátuas respeitáveis que me olham do fundo dos tempos e espreitam estas páginas como quem pressagia tudo o que escondo de mim. 


quarta-feira, novembro 17, 2021

Quarta, 17.

Há uma tragédia humana que me revolta: a utilização de seres humanos como canhões. É isso que faz o imbecil ditador da Bielorrússia ao dispor cidadãos na fronteira com a Polónia. A migração tem sido e continua a ser a maior vergonha da UE. A única pessoa que se distinguiu pela positiva, foi a senhora Merkel mas largou a governação.   

         - Antes de deixarmos Quiberon, fomos, Robert e eu, dar uma volta de carro pela costa selvagem até Trinité sur Mer. Impressiona a mácula de rochedo agreste, a pique para o mar, onde ninguém se afoita. Todo este mundo escuro, perigoso e belo, é o retrato de uma parte da França sem igual. Quando o mar bate nas rochas, agiganta figuras dantescas que parecem emergir do fundo dos oceanos em ameaça e fúrias demoníacas. Respeitinho é a palavra que o som das ondas emitem obrigando os seres humanos a manter a devida e cautelosa distância. Não há qualquer forma de diálogo, nem a presença das centenas de franceses passeando à sua beira, parece facilitar a aproximação. Em Trinité sentámo-nos a tomar café diante da marina engalanada. É um espectáculo digno de se ver. Tudo ali cheira a dinheiro, a bom gosto, a prosperidade. O próprio sistema que permite aos barcos subirem com a maré, é um achado de engenharia. Só a personagem da foto está a mais. 


         - Regressámos a casa a tempo de almoçarmos e prepararmos a partida com tempo. Pelas 13 e trinta minutos, tudo arrumado, o carro carregado, Annie decidiu que precisava de dormir a sesta. Robert bufou, desesperado, porque não queria chegar a Paris a desoras. Mas conformou-se, os homens conformam-se sempre, espécie de lacaios de libré ao serviço das madames coquettes, irritáveis e caprichosas. Esperámos – Laure, Robert e eu – que Annie se erguesse do seu leito real. Quando julgávamos que íamos sair, ela decide começar a capinar no jardim. Robert tem, enfim, uma reacção e vem juntar-se a nós os dois que, instalados na viatura, aproveitávamos o tempo para ler. “Ela sempre gostou de fazer esperar os outros”, diz o marido fora de si. Pelas três horas, ei-la que se aproxima, senta-se ao lado do companheiro, e ordena-lhe que siga para a marginal porque quer ver o mar antes de deixar Quiberon. Esta afronta é tão banal nos casais que nem se dão conta da falta de dignidade que devem um ao outro. Com o atraso imposto à partida, chegámos a casa passava das nove e meia da noite. Casa-te faz como os outros, Helder. 

         - Por aqui como pelo meu país, o SARS-COV-2 reaparece em força. Fui ao quartier Opéra esta manhã de coração nas mãos. O metro à pinha e as pessoas (muitas) coladas umas às outras, de máscara é verdade, mas de nariz a descoberto. No autocarro que me conduz a casa, a maioria dos passageiros, africanos e árabes, usa a máscara para iludir aquilo que ninguém vê: fiscais. Desde meados do mês passado que vou passando por entre os pingos da chuva sem me molhar. Espero assim continuar e escapar à saudação bárbara da pandemia. 

          - Pelo caminho, como é de uso, faz-se uma refeição ligeira. Esta saiu do habitual, mais rica e original, porque o Robert comprou em Concarneau um opíparo chamado Kouignette. Fazem-no doce e salgado e este que experimentámos é de comer e chorar por mais: foie gras embrulhado numa massa tenra com ervas, como se fosse um petit four ou uma tapa. A loja onde foi comprado, logo à esquerda de quem entra no forte, é por si só uma tentação; um espaço sobre o comprido onde se expõe em mesas corridas toda a sorte de doces e salgados. A variedade é tal, que nem a proprietária me conseguiu dizer quantos exemplares culinários expõe.       

         - Há instantes, no largo em frente à igreja de Notre-Dame de Lorette, uma mulher embrulhada num cobertor com dois filhos de uns dez anos, esmolavam de quem saía ou entrava no templo. A alegria traquina dos dois rapazes era tal, que contagiava todos os  que por ali passavam e outro remédio não tinham que contribuir para que aquela excitação perdurar-se. Os filhos dos ricos morrem de tédio chafurdando na riqueza dos pais; os dos pobres desfraldam os dias em liberdade e beleza provando que não é mais feliz quem possui, mas quem vive do essencial. Há em cada pobre um Poverello de Assis. 

         - A Rússia disparou um míssil de forma a destruir um satélite seu. A América insurgiu-se. Hipocrisia pura. Os EUA já fizeram o mesmo. 


segunda-feira, novembro 15, 2021

Segunda, 15.

A hora e meia de viagem, fica Concarneau. Uma cidade ampla que se perde no labirinto da malha urbana, tão extensa como Vannes uns quilómetros mais adiante. É uma urbe turística devido à fortaleza do séc. XV que, à imagem de Óbidos, enclausura dentro das suas muralhas não só uma maravilhosa e singela capela do séc. XVI como o acumulado de lojas, restaurantes, hotéis. Por lá nos detivemos, almoçámos e avistámos o porto com capacidade para receber navios de grande porte. De Kiberen até lá, tomámos estradas que atravessam vilas sonolentas, moradias vindas de passados remotos, igrejas escuras à saída de curvas apertadas, tudo ladeado por árvores centenárias nesta altura tomam as cores do Outono soalheiro e por fim a auto-estrada a impor à paisagem a modernidade das novas deslocações rodoviárias.  Não muito longe de todo este circuito, o mar como espelho e linha de horizonte, apelo do homem à liberdade e parémia do desconhecido que teima em desafiar os que não se deixam domar e recusam ficar circunscritos ao seu minúsculo espaço de visão.  

O forte de Concarneau

Uma das suas ruas

 

         - No caminho de regresso, desviámos para Saint-Pierre Quiberon. Toda a Bretanha possui um autêntico cemitério disseminado por quilómetros de terra, como varandas debruçadas sobre o Atlântico, onde os vivos convivem com os mortos de há milhares de anos. Por entre as casas, num relacionamento respeitoso, encontramos menires e cromeleques, lado a lado com espaços ajardinados e hortos privados. Perguntei a duas madames se à noite escutavam a voz dos mortos, se saíam ao seu encontro. Responderam-me que sim e acrescentaram que não muito longe tinham o cemitério onde estavam sepultados os seus familiares. Uns e outros, fazem uma espécie de união, um cerco de paz, um sussurro de silêncio varrido pelo vento frio das noites brancas de neve, trocam entre si mensagens que sobem à tona da terra e ficam em vibrações, atravessando os cromeleques que passam de jardim em jardim, estátuas fabulosas de contornos e formas que nenhum artista moderno consegue igualar. Nenhuma daquelas esculturas mortuárias se assemelha, como se cada uma reflectisse a memória ancestral daquele que ali caiu, e todos ficassem unidos no anel infinito do tempo que a morte precisa para se eternizar...  

Menires de Saint-Pierre 

         - Apesar da vida trepidante que tem sido a minha, com organização e sentido do dever, tenho conseguido avançar na bíblia greeniana. Vou na página 280 e admiro a capacidade do autor em dizer quotidianamente o mesmo, mas sob forma e linguagem absolutamente ricas de vocabulário e imaginativas. O francês de Julien Green é uma lição, um modo de se exprimir claro e limpo, mesmo quando aborda problemas metafísicos de profundidade inatingíveis. Vou ter saudades das horas silenciosas que passo antes de adormecer, perto da uma da madrugada, na sua companhia. O meu quarto fica no primeiro andar, com vista para o mar e o porto ao longe, de onde às primeiras horas do dia ouço a sirene chamar os passageiros que rumam a Belle-île.  

A paria de Quiberon com o porto ao fundo

         - Tornamos amanhã a Paris. Por agora escrevo no Café Hoche na praça do mesmo nome. Há muitos anos que o adoptei como ponto de encontro com a escrita. Dista um olhar da marginal e da praia e, apesar do rumor que me cerca, consigo isolar-me e não me apercebo do que à minha volta acontece. Quando está disponível, devido ao coronavírus, sento-me na mesa em face da porta com esplanada de um lado ao outro do edifício. Hoje tivemos um dia de sol varrido por um ligeiro e insistente vento frio. Uma parte dos veraneantes, deixaram Quiberon; os que estão devem ser residentes neste lugar risonho e sereno nesta altura do ano. (interrompido, Robert acaba de chegar) 

         - A pobre Annie que por momentos se torna de uma extrema violência, vendo-me sair pergunta ao marido: “Helder va à Paris?” E ao almoço, voltando-se para mim: “ Dommage que tu part demain pour chez toi.”


sábado, novembro 13, 2021

Sábado, 13. 

Fomos de abalada de carro ao longo da costa Penthièvres, Carnac, La Trinité sur mer. Chuviscava e o mar tinha-se recolhido para lá do areal numa atitude pouco vulgar nele, orgulhoso e violento como quase sempre se apresenta. Entre a primeira e a segunda povoação, perdido na lonjura da animação destes lugares de veraneio, encontra-se o enorme convento beneditino construído no séc. XIX, Saint-Michel de Kergonan. Uma belíssima construção em pedra daqui, de formas harmoniosas, elegantes, sobre o comprido, com belas flechas de cada lado. Ali vivem uma vintena monjas espero que em clausura suave porque o lugar a isso convida, com o seu jardim e o silêncio que reina sobre uma vasta área muito bem arborizada. Do outro lado, existe outra abadia que abriga dezanove monges, dita de Sainte-Anne de Kergonan. Ali existe uma igreja onde o recolhimento me impressionou à hora da missa das 18 horas. O público apenas tem acesso aos actos litúrgicos e à majestosa livraria com obras religiosas e não só e onde me tentei a comprar um ícone feito pelos residentes. À hora a que chegámos, os dois cenóbios preparavam-se para cerrar portas ao público e o frade que geria esta unidade, convidou-nos a sermos breves. Pena. Ficar por largo tempo a respirar aquela atmosfera etérea, cheia de memórias, edificada na devoção a Deus, respirar o ar puro, longe da banalidade dos nossos dias, recheados da impureza que desorienta e nos conduz  à monotonia dos dias frouxos e cruéis, levantados das cinzas deixadas por políticos ocos, seria para mim a impregnação de ideais que estão na origem de um mundo que os governantes tudo fazem para denegrir e substituir por outro onde reina a desorientação, a insanidade, a banalização do ser humano enquanto criação divina. Um pouco adiante, pela terceira vez, fui ver o alinhamento dos 3000 megálitos, lugar de mortos, lembrança de um tempo que respeitava os que partiam na singeleza e robustez das pedras que se mantêm de pé e são na sua forma o respeito que devemos aos nossos antepassados. 

         - A Laure quis oferecer-nos o jantar. Escolhemos um restaurante, não distante da creperie onde eu os havia convidado na véspera. Com a descida da noite, veio o frio e no interior cheio de comensais, estava-se bem entretidos a devorar um tacho de mexilhões que daria para uma dezena de pessoas. Menos alegre do que o da noite anterior, os que ali jantavam parecia que murmuravam coisas indecentes entre si. A sala era varrida por um ligeiro sussurro de segredos que só a noite conhece.  


sexta-feira, novembro 12, 2021

Sexta, 12. 

Ouvi outro dia na TV Chou Chou utilizou o cargo presidencial para campanha eleitoral antecipada. O homem não passa de uma máquina de triturar palavras. 

          - Quarta-feira andei pelo 8º bairro. Só as galeries Lafayette ocupam vários quarteirões. A zona é delas. O que sobra de espaço, ainda lhes pertence dado que tudo em volta vive à sua conta. Almocei muito bem e a um preço razoável no boulevard Haussmann. De seguida entrei e saí em algumas livrarias de onde acabei por adquirir a correspondência entre George Sand e Gustave Flaubert. Entrar nas galerias? À quoi bon!  

         - Estamos em Kiberen desde ontem. Para aqui chegar gramei sete horas de viagem. Em Paris a temperatura de manhã era de -1º, os tectos das casas estavam cobertos de branco. Reencontrei a cidade um pouco mudada devido à duração da Covid-19. Algumas lojas tradicionais fecharam e o que resta parece viver ainda enfermo da mesma doença. Depositados os nossos pertences, pondo em marcha a chauffage, saímos para jantar. Sendo dia de Armistício, os franceses partiram em debandada inundando estradas, praias, restaurantes juntando um grande fim-se-semana. Daí a peregrinação pelos muitos restaurantes todos a abarrotar. Eu queria oferecer o jantar aos meus amigos e insistia para que fosse numa creperie. O que veio a acontecer ao fim de muito procurar e no limite da lotação. Admiráveis instantes, atmosfera jovial com muitos jovens e jeunes hommes à mistura, crespes excelentes, cidra (garrafa e meia) e já um pouco tontos, ficámos até tarde gozando a noite, avistando das janelas da sala de jantar, um ou outro barco vindo de Belle Île que entrava sonolento no cais, o céu limpo e estrelado, gratos pela amizade que nos une há pelos menos quarenta anos.      

         - É quase certo que não voltarei a aceitar o convite de tantos anos para me alojar aqui. Dois anos depois (a Covid pelo meio) encontrei a minha amiga num estado de degradação física e mental considerável. Pobre Annie! Tudo o que ela foi de bom e de mau está ampliado e o resultado nem dá para descrever. Confrange-me vê-la assim e, sobretudo, não quero sofrer eu próprio com o seu triste efeito. Não tenho necessidade de vir a Paris todos os anos ou, se vier, será por uma semana e nesse caso qualquer pequeno hotel me satisfaz.

         - Aqui, depois de uma viagem sublime de sol e temperatura quase como a nossa, choveu a noite passada mas hoje o sol voltou a sorrir. Largos grupos de veraneantes passeando na marginal que acompanha o friso de casas em frente ao areal onde uns quantos se expõem ao sol tímido. Na praça Hoche onde me encontro a trabalhar, reina um ar de confiança e toda a gente sem máscara se cumprimenta como antigamente. Quiberon teve uma das taxas mais altas de covid, mas o mal parece não assustar estas almas adoradoras da vida pujante.  


terça-feira, novembro 09, 2021

Terça, 9.

Annie fez uma depressão de todo o tamanho quando viu dois homens contratados pelo marido para abaterem uma árvore velha e perigosa no jardim. A coisa foi de tal ordem, que gritou como louca, fechou-se na biblioteca de onde não saiu nem para almoçar. Custa-me vê-la degradar-se de dia para dia, sempre com a mesma coragem que lhe conheci e no presente chega a ser patético.  

         - Por falar em biblioteca que tanto atraía Green no seu exílio norte-americano. “Une bibliothéque, c´est le carrefour de tous les rêves de l´humanité.”  

         - Esta tarde dei um passeio demorado pelo centro de Saint-Denis. Nas recuadas avenidas e ruas largas, existe um urbanismo na linha de Haussemann, que não é de todo em todo desagradável. Certos bairros são mesmo tão clássicos como os seus semelhantes da Rive Gauche. Ante o que a vista alcança, não me seria displicente acampar por ali, pois o ambiente nada tem a ver com o centro histórico onde só a Basílica me cativa. Outrora, num tempo que cheguei a conhecer, a catedral dos reis franceses, constituía um núcleo de casas que irradiavam do monumento gótico formando uma pequena comunidade pobre acolhida em torno dos seus muros. Eram casas baixas, escuras, serpenteando por becos e vielas como era uso na Idade Média. Depois o que chamam progresso irrompeu e hoje a beleza do edifício só da entrada se pode contemplar. Nada que a circunda e envolve tem a ver com a vetusta e nobre construção.  

         Não conheço nenhum lugar em França com a diversidade de povos e culturas como este de Saint-Denis. Para mim, é uma pequena África onde nas ruas se cruzam árabes, africanos, indianos, nepaleses, ciganos, argelinos e toda a romaria de gente que constituiu a França de outros séculos. A balbúrdia no centro é infernal, pessoas com hábitos que não perderam sentadas no chão, lixo por todo o lado, famílias inteiras esquecidas das horas ruminando desgraças, de olhos mortiços e pele gretada, entopem as entradas dos cafés, edifícios públicos, supermercados. Muita gandulagem à mistura como negociantes de drogas, pedintes, juventude vagada. Na rue de la République, a principal, o comércio dantes correcto com as grandes marcas presentes, é hoje uma sucessão de barracas com todo o lixo que se possa imaginar vindo de paragens longínquas para tornar a vida da população um pouco mais próxima da que deixaram para trás. Entrei por instantes na Basílica, no momento em que o sol descia e purificava a vasta correnteza dos maravilhosos vitrais. São obra de arte comovente, cuja luz entra na nave central e vem por aí abaixo, beijando as colunas góticas, os túmulos de pedra esculpida, até nos paralisar de espanto. O silêncio era total àquela hora, o fim de tarde introduzia no interior uma sombra de mistério. Quedei-me numa breve oração, só, imperfeito, abatido no centro de história de França que ali se recolheu imortalizada, perdido no tempo e no espaço adensado de espectros que pareciam dialogar comigo, minúsculo ser enlaçando o passado e o presente, um e outro, cobertos de sangue, suor e lágrimas.  


segunda-feira, novembro 08, 2021

Segunda, 8.

Francis, inopinadamente, apareceu e almoçou connosco. Grande repasto com a sua contribuição bom vinho Côte du Rhône, queijo Maroille e gateau au chocolat fondant. Após o café passámos ao salão e no meio da conversa, ei-lo que desliza a cabeça, alonga o corpo no sofá e desaparece no sono profundo deixando-me, literalmente, a falar sozinho. Acrescento que só à sua conta foi-se uma garrafa. Bizarre

         - Tudo o que contei ontem num longo escrito de quatro páginas, ficará para os leitores futuros (se os houver). 

         - Prazer de receber chamadas telefónicas das amigas e amigos com quem falo com assiduidade: Carmo Pólvora, Alice, João, Marília, Príncipe, entre outros. Todos trazem na voz o quotidiano que deixei para trás, o país que passou para segundo plano. Carmo quando lhe falei do museu Louis Vuitton, disse-me que tinha estado como convidada na inauguração, em 2014. 

         - Estou de novo tolhido. Ao descer as escadas para o rés-do-chão, dei um jeito à perna direita que por todo o lado é admirada por rapazes e homens feitos, e senti um estalo seguido de paralisação. Vou ter que voltar ao anti-inflamatório e ao gel à base de plantas se quiser prosseguir as minhas muitas andanças por Paris. 

         - Reservo todos os dias duas horas à leitura de Julien Green. São momentos inolvidáveis de prazer, isolado no meu quarto, o ruído de fundo vindo da cozinha onde Annie prepara ao seu ritmo vagaroso as refeições. Instantes de paz, felicidade, irmanados no mesmo amplexo, como se a minha vida se cruzasse com a do meu autor e o mundo fosse um lampejo de pura invenção e tudo fosse verdadeiro e falso e ligeiro e profundo. De quando em vez, tropeço na magia das citações de Green como esta, página 143, a propósito das bibliotecas das pequenas cidades americanas “... ces oasis où l´on peut oublier les fatigues du désert”.   

         - Em França ninguém diga que está seguro. Hoje um polícia foi esfaqueado em Cannes. Parece que o agente não brincava em serviço pois trazia o colete à prova de bala. O suspeito de nacionalidade argelina, no momento do ataque, gritou o nome do profeta Maomé. 

         - Dia radioso de sol apesar do frio que nos encrespa o rosto.    


sábado, novembro 06, 2021

Sábado, 6.

Duas palavras para dizer do imenso conforto interior, fechado no resguardo das palavras que iam invadindo a página do computador, vivido no pequeno café em frente à gare de Cambrai, enquanto aguardava a chegada do Alexis. Chovia tranquilamente no largo; estando eu sentado perto da montra, submerso de felicidade e êxtase, tive a maravilhosa certeza de que qualquer coisa de extraordinário estava a acontecer. Não serei capaz de descrever o quê, nem dizer que cor tinham esses momentos surdos, envolventes, torneados como alvéolo que abriga e protege, isola e inunda de volúpia, claridade, magia, resplandecência... Estarei eu louco perdido nas palavras, o pensamento planando sobre as estrelas que descem do céu numa manhã inundada de água? Ir-me entre céu amplo a bordo da luz imutável destas companheiras de uma vida. 

         - O frio avança. 2 graus apenas. 


sexta-feira, novembro 05, 2021

Sexta, 5.

É evidente que Marcelo Rebelo de Sousa tem a faca e o queijo nas mãos e pode decidir como lhe aprouver neste momento singular da democracia portuguesa. Por isso, contrariamente ao que queriam os partidos, vamos para eleições já no próximo mês de Janeiro. Pelo meio mete-se o Natal e o Fim de Ano e veremos como estas datas se conjugam em favor da propaganda. Espero, todavia, que a preeminência da esquerda perca uma boa parte dos malefícios que têm contribuído para o abaixamento da democracia. Não é lícito que dois minúsculos partidos possuam tanta influência sobre a maior parte dos portugueses.  

         - Outro dia o canal 3 apresentou um longo documentário sobre a vida e obra de Albert Camus. Eu sou um dos seus fiéis leitores e nunca o perco de vista. À distância, foi ele que acabou por ter razão nos confrontos com Sartre e seus compagnons de route a propósito do comunismo e dos caciquismos de Estaline e Mao tsé-Tung. O extremismos e amizades do existencialista, vieram a revelar-se uma utopia onde o homem afinal não esteve presente.  O primeiro, é responsável por mais de 20 milhões de mortos; o segundo, 40 milhões por fome, exaustão, doenças várias devido à mobilização para as campanhas de colectivização agrária. Se falarmos nos 1.439.324 habitantes actuais (último relatório da ONU), submetidos a um controlo rigoroso através das modernas tecnologias que premeia os mais obedientes e castiga os dissidentes, temos o quadro moderno da moderna ditadura na China.    

         - Robert acompanhou-me rue Vivienne onde se aglomeram as grandes empresas de materiais preciosos e compra e venda de ouro, para me despedir - como se costuma dizer -  de duas jóias de família. Valor total: 1071 euros. Voilà menos uma preocupação. 

         - Prossigo Green, pág. 100. Na página 86 deparo com esta observação que seria válida se ele ou cada um de nós, pudéssemos transformá-la numa premissa: “C´est quand un homme  est dépouillé de tous ces biens qu´on peut voir s´il lui reste quelque chose, si sa richesse était intérieur et par consequent réelle, ou si elle consistait seulement dans la possession de quelque centaines de bouquins.” 


quinta-feira, novembro 04, 2021

Quinta, 4. 

Alinho estas linhas no Cygne, o meu café preferido em Cambrai, onde acabei de chegar após hora e meia de viagem. O interior está modificado, mas a clientela é a mesma: velhos desocupados e divertidos, dizeres cómicos por todo o lado e um ambiente solto de preconceitos. Vim para ver o Alexis que perto de Amiens encontrou rapariga com uma filha do primeiro casamento, nada que preocupe o meu amigo. Bom. Do que queria falar todavia, era ainda dos irmãos Norozov e de Chtchoukine, industrial como eles uns dez anos mais velho. A consciência social desta gente leva-me a curvar-me ante pessoas que fizeram fortuna e a devolveram à comunidade através da paixão que os obcecou, mas não foi suficiente para deter a barbaridade de Lenine e depois de Estaline. Um e outro olharam a arte sob ângulos não totalmente dissemelhantes e contudo impregnados da ideologia extremista que só tem em conta o olhar fixado no líder que tudo decide e controla. Enquanto estes industriais da seda abriam as portas das suas casas à visita do povo interessado na modernidade que vinha de França e até nos artistas russos que os havia de muito boa qualidade, Estaline ordena que todas as colecções de uns e outro, sejam banidas do olhar do povo russo. Do bolchevismo ao estalinismo, a censura impregnada do ódio contra a diferença, do que nascia da liberdade individual e crescia de olhos postos no futuro, era húmus do capitalismo aburguesado. O povo devia entender, amar e conhecer apenas aquilo que dimanava dos seus cérebros brilhantes, do seu poder absoluto e da sua directriz política. Assim, em Março de 1948, Josepf Estalin, assina um despacho deplorando “as obras de arte burguesas ocidentais, nuas de idealismo, anti-populares, formalistas, sem qualquer valor educativo do interesse do povo soviético”. Pois, caro leitor, é por memória dessas obras notáveis que aqui deixo alguns exemplares, feliz por as ter admirado, numa tarde cinzenta de Paris, na companhia de uma autêntica multidão, que apesar do perigo de contágio por coronavírus, ousou irmanar-se com os artistas e seus mecenas.  

La Ronde des prisonniers de Vincent van Gogh, traduz o martírio do artista enclausurado em Saint-Rémy, num asilo psiquiátrico. É dos trabalhos do genial pintor aquele que me comove e causou arrepios quando me retive por muito tempo a estudá-lo. 

Assim esta escultura de Camille Claudel, L´Imploration, a minha artista querida, durante muito tempo na sombra, e decerto ela própria em vida se anulou em favor do amor que nutria pelo homem extraordinário que foi Rodin. Mesmo que eu identifique os traços do Mestre, há muito dela nesta escultura cheia de força e beleza. 



quarta-feira, novembro 03, 2021

Quarta, 3 de Novembro. 

Fomos de abalada a L´ Isle-Adam no centro do Val-d´ Oise a trinta minutos de viagem. O sítio oferece ao visitante a imagem de uma vila de vilegiatura, frequentada pela burguesia endinheirada do século dezoito, onde até uma praia foi construída nas margens do afluente do Sena e Bonnard por lá veraneou. Os ricos disputavam entre si a sumptuosidade das suas vivendas apalaçadas, dos seus jardins, dos largos espaços de convívio social. A atracção principal que não me atraiu, é um edifício chinês em forma de coreto, erguido no centro de um jardim que se estende com altas árvores em volta. O mais interessante da pequena vila, é o centro histórico, intacto, por onde os carros serpenteiam e os restaurantes são tantos que nos perguntamos se há clientela para uma tal overdose. Respira-se abastança, civilidade, bom gosto. Só o dia se mostrou contrário quando nos apanhou em passeio pedestre (Annie não saiu do carro) e uma carga de chuva seguida de pedra grossa nos tombou sobre as cabeças. A natureza é prodigiosa. Nesse momento de encantamento, as árvores com suas nuances de cor, iluminaram-se dando à paisagem um ar de Natal antecipado, fechando o casario num cenário íntimo onde nem o perfume e o murmúrio das lareiras faltou. 

         - Não me perguntem como consegue o museu Louis Vuitton, volta que não volta, oferecer à cidade exposições que mais nenhum museu alcança. Foi lá que passei uma parte da tarde, entrando e saindo dos vários andares onde a colecção dos irmãos Morozov se dá a conhecer (julgo) pela primeira vez. Aliás, já em 2016, eu tinha admirado com extraordinário interesse a exposição de outro milionário russo, Serguei Chtchoukine.  Deve ter sido um duro trabalho que a Fundação levou a cabo para convencer Putin a deixar sair os quadros, na maioria peças que nunca o Ocidente contemplou. Grande parte destas joias pertencem ao museu de Moscovo e li em qualquer lado que tinham sido arrestadas pelo poder instalado antes da Segunda Grande Guerra. Segundo os homens do politburo, o povo não se identificava com tais fantasias das sociedades capitalistas. Algumas telas escolhidas na diversidade de gosto dos dois irmãos: Mikhail e Ivan. 

Valentin Sérov - Portrait de Maria F. Morozova 

Konstantine Korovine - Un café à Paris 

Claude Monet - L´Étang à Montgeron

Paul Cézanne - Autoportrait à la casquette 

Paul Cézanne  

         - Ontem fui ao BHV de propósito para ver as minhas queridas mulheres que rendem as horas à vagabundagem das recordações. Como se me esperassem há um horror de anos, ei-las que pousam o olhar em mim interrogando-se se sou eu quem elas aguardam do fundo do tempo. Almocei perto de duas, separadas pela lonjura das memórias que teimam em não as largar, olhos fixos nos telhados da Câmara de Paris, as babatas cozidas num resto de óleo em suspenso, o apetite por momentos descoroçoado, coisas adejando os seus cérebros parados numa antecipação da morte que tarda, que tarda tanto, para lá de todas as vidas que viveram e ali, àquela hora do almoço, deixado o apartamento onde vivem sós, o gato por companhia, o rumor da cidade longe, as estrelas murmurando, os dias e as noites de pesadelos misturando-se sem remédio nem clemência. Encontro-as com a mesma dignidade de sempre, nem mais velhas nem mais sobressaltadas, corajosamente enfrentando o tempo, essa massa de coisa nenhuma que assusta, enche as horas e despeja nas vidas as sombras que mordem a eternidade. Tenho imensa ternura por todas e por cada uma, fico um tempo louco a olhá-las, a seguir-lhes os movimentos lentos do olhar, dos gestos, do sussurro que perpassa nas suas cabeças, no ligeiro tremor que acode à comissura dos lábios, a silhueta hirta que não larga o firmamento cinzento e frio, igual ao dos telhados que avistam sem, contudo, verem senão apenas o espaço que pouco a pouco se vai despovoando. Enchem-no então com as suas presença-ausente, distribuídas ao longo das mesas vazias, onde só elas ficam entretidas com as recordações que são tudo o que lhes resta para saírem discretamente pela porta dos fundos rumo a outro mundo que estou certo as receberá em festa. Vou em bicos de pés para não as assustar, depositar em cada uma um beijo; dizer-lhes que as espero ver na próxima oportunidade, iguais ao que eram, ao que são, ao que serão porque o tempo suspendeu-se para todas, uma espécie de juventude transformou-as, retardando-lhes a morte e injectando-lhes o elixir da beleza imortal...