quarta-feira, novembro 03, 2021

Quarta, 3 de Novembro. 

Fomos de abalada a L´ Isle-Adam no centro do Val-d´ Oise a trinta minutos de viagem. O sítio oferece ao visitante a imagem de uma vila de vilegiatura, frequentada pela burguesia endinheirada do século dezoito, onde até uma praia foi construída nas margens do afluente do Sena e Bonnard por lá veraneou. Os ricos disputavam entre si a sumptuosidade das suas vivendas apalaçadas, dos seus jardins, dos largos espaços de convívio social. A atracção principal que não me atraiu, é um edifício chinês em forma de coreto, erguido no centro de um jardim que se estende com altas árvores em volta. O mais interessante da pequena vila, é o centro histórico, intacto, por onde os carros serpenteiam e os restaurantes são tantos que nos perguntamos se há clientela para uma tal overdose. Respira-se abastança, civilidade, bom gosto. Só o dia se mostrou contrário quando nos apanhou em passeio pedestre (Annie não saiu do carro) e uma carga de chuva seguida de pedra grossa nos tombou sobre as cabeças. A natureza é prodigiosa. Nesse momento de encantamento, as árvores com suas nuances de cor, iluminaram-se dando à paisagem um ar de Natal antecipado, fechando o casario num cenário íntimo onde nem o perfume e o murmúrio das lareiras faltou. 

         - Não me perguntem como consegue o museu Louis Vuitton, volta que não volta, oferecer à cidade exposições que mais nenhum museu alcança. Foi lá que passei uma parte da tarde, entrando e saindo dos vários andares onde a colecção dos irmãos Morozov se dá a conhecer (julgo) pela primeira vez. Aliás, já em 2016, eu tinha admirado com extraordinário interesse a exposição de outro milionário russo, Serguei Chtchoukine.  Deve ter sido um duro trabalho que a Fundação levou a cabo para convencer Putin a deixar sair os quadros, na maioria peças que nunca o Ocidente contemplou. Grande parte destas joias pertencem ao museu de Moscovo e li em qualquer lado que tinham sido arrestadas pelo poder instalado antes da Segunda Grande Guerra. Segundo os homens do politburo, o povo não se identificava com tais fantasias das sociedades capitalistas. Algumas telas escolhidas na diversidade de gosto dos dois irmãos: Mikhail e Ivan. 

Valentin Sérov - Portrait de Maria F. Morozova 

Konstantine Korovine - Un café à Paris 

Claude Monet - L´Étang à Montgeron

Paul Cézanne - Autoportrait à la casquette 

Paul Cézanne  

         - Ontem fui ao BHV de propósito para ver as minhas queridas mulheres que rendem as horas à vagabundagem das recordações. Como se me esperassem há um horror de anos, ei-las que pousam o olhar em mim interrogando-se se sou eu quem elas aguardam do fundo do tempo. Almocei perto de duas, separadas pela lonjura das memórias que teimam em não as largar, olhos fixos nos telhados da Câmara de Paris, as babatas cozidas num resto de óleo em suspenso, o apetite por momentos descoroçoado, coisas adejando os seus cérebros parados numa antecipação da morte que tarda, que tarda tanto, para lá de todas as vidas que viveram e ali, àquela hora do almoço, deixado o apartamento onde vivem sós, o gato por companhia, o rumor da cidade longe, as estrelas murmurando, os dias e as noites de pesadelos misturando-se sem remédio nem clemência. Encontro-as com a mesma dignidade de sempre, nem mais velhas nem mais sobressaltadas, corajosamente enfrentando o tempo, essa massa de coisa nenhuma que assusta, enche as horas e despeja nas vidas as sombras que mordem a eternidade. Tenho imensa ternura por todas e por cada uma, fico um tempo louco a olhá-las, a seguir-lhes os movimentos lentos do olhar, dos gestos, do sussurro que perpassa nas suas cabeças, no ligeiro tremor que acode à comissura dos lábios, a silhueta hirta que não larga o firmamento cinzento e frio, igual ao dos telhados que avistam sem, contudo, verem senão apenas o espaço que pouco a pouco se vai despovoando. Enchem-no então com as suas presença-ausente, distribuídas ao longo das mesas vazias, onde só elas ficam entretidas com as recordações que são tudo o que lhes resta para saírem discretamente pela porta dos fundos rumo a outro mundo que estou certo as receberá em festa. Vou em bicos de pés para não as assustar, depositar em cada uma um beijo; dizer-lhes que as espero ver na próxima oportunidade, iguais ao que eram, ao que são, ao que serão porque o tempo suspendeu-se para todas, uma espécie de juventude transformou-as, retardando-lhes a morte e injectando-lhes o elixir da beleza imortal...