segunda-feira, novembro 15, 2021

Segunda, 15.

A hora e meia de viagem, fica Concarneau. Uma cidade ampla que se perde no labirinto da malha urbana, tão extensa como Vannes uns quilómetros mais adiante. É uma urbe turística devido à fortaleza do séc. XV que, à imagem de Óbidos, enclausura dentro das suas muralhas não só uma maravilhosa e singela capela do séc. XVI como o acumulado de lojas, restaurantes, hotéis. Por lá nos detivemos, almoçámos e avistámos o porto com capacidade para receber navios de grande porte. De Kiberen até lá, tomámos estradas que atravessam vilas sonolentas, moradias vindas de passados remotos, igrejas escuras à saída de curvas apertadas, tudo ladeado por árvores centenárias nesta altura tomam as cores do Outono soalheiro e por fim a auto-estrada a impor à paisagem a modernidade das novas deslocações rodoviárias.  Não muito longe de todo este circuito, o mar como espelho e linha de horizonte, apelo do homem à liberdade e parémia do desconhecido que teima em desafiar os que não se deixam domar e recusam ficar circunscritos ao seu minúsculo espaço de visão.  

O forte de Concarneau

Uma das suas ruas

 

         - No caminho de regresso, desviámos para Saint-Pierre Quiberon. Toda a Bretanha possui um autêntico cemitério disseminado por quilómetros de terra, como varandas debruçadas sobre o Atlântico, onde os vivos convivem com os mortos de há milhares de anos. Por entre as casas, num relacionamento respeitoso, encontramos menires e cromeleques, lado a lado com espaços ajardinados e hortos privados. Perguntei a duas madames se à noite escutavam a voz dos mortos, se saíam ao seu encontro. Responderam-me que sim e acrescentaram que não muito longe tinham o cemitério onde estavam sepultados os seus familiares. Uns e outros, fazem uma espécie de união, um cerco de paz, um sussurro de silêncio varrido pelo vento frio das noites brancas de neve, trocam entre si mensagens que sobem à tona da terra e ficam em vibrações, atravessando os cromeleques que passam de jardim em jardim, estátuas fabulosas de contornos e formas que nenhum artista moderno consegue igualar. Nenhuma daquelas esculturas mortuárias se assemelha, como se cada uma reflectisse a memória ancestral daquele que ali caiu, e todos ficassem unidos no anel infinito do tempo que a morte precisa para se eternizar...  

Menires de Saint-Pierre 

         - Apesar da vida trepidante que tem sido a minha, com organização e sentido do dever, tenho conseguido avançar na bíblia greeniana. Vou na página 280 e admiro a capacidade do autor em dizer quotidianamente o mesmo, mas sob forma e linguagem absolutamente ricas de vocabulário e imaginativas. O francês de Julien Green é uma lição, um modo de se exprimir claro e limpo, mesmo quando aborda problemas metafísicos de profundidade inatingíveis. Vou ter saudades das horas silenciosas que passo antes de adormecer, perto da uma da madrugada, na sua companhia. O meu quarto fica no primeiro andar, com vista para o mar e o porto ao longe, de onde às primeiras horas do dia ouço a sirene chamar os passageiros que rumam a Belle-île.  

A paria de Quiberon com o porto ao fundo

         - Tornamos amanhã a Paris. Por agora escrevo no Café Hoche na praça do mesmo nome. Há muitos anos que o adoptei como ponto de encontro com a escrita. Dista um olhar da marginal e da praia e, apesar do rumor que me cerca, consigo isolar-me e não me apercebo do que à minha volta acontece. Quando está disponível, devido ao coronavírus, sento-me na mesa em face da porta com esplanada de um lado ao outro do edifício. Hoje tivemos um dia de sol varrido por um ligeiro e insistente vento frio. Uma parte dos veraneantes, deixaram Quiberon; os que estão devem ser residentes neste lugar risonho e sereno nesta altura do ano. (interrompido, Robert acaba de chegar) 

         - A pobre Annie que por momentos se torna de uma extrema violência, vendo-me sair pergunta ao marido: “Helder va à Paris?” E ao almoço, voltando-se para mim: “ Dommage que tu part demain pour chez toi.”