quarta-feira, novembro 24, 2021

Quarta,24. 

Lá fomos já a noite havia descido sobre a cidade, Francis parando pelo caminho para cumprimentar amigos, entrando em cafés, apresentando-me esta e aquele (uma inutilidade social sem interesse nenhum). Chegados à Comédie Française, entrados no vasto hall com a escadaria monumental de uma beleza e brancura imaculada, logo o meu amigo se desdobrou em cumprimentos, uma palavra à direita, outra à esquerda, como dominasse as espectros da corte de Louis XIII. Chegámos com tempo para que Francis me levasse a visitar o edifício. Terminada a visita, sentámo-nos no bar cheio de madames elegantes e homens perfumados. Ofereci-lhe um copo e ele vendo que eu deixei metade não sendo apreciador de tinto fora das refeições, emborcou-o. Seguimos depois para a sua loge, (um compartiment cloisonné) próxima do proscénio, do lado direito onde ele, apagadas as luzes, pensando que estava com o seu petit oiseau, aproveitou para pôr a mão discretamente sobre a minha perna... Como não lhe dei resposta, a coisa ficou por ali e, entretanto, a teia do palco subiu...

O corredor dos notáveis 

O bar da Comédie Française 

A cadeira de Molière 

         - ... para a representação de La Cerisaaie de Tchekhov. Não conhecia a peça e, por isso, limitei-me a prestar atenção ao texto que percebi desde logo ser intimista dando espaço aos actores para se exprimirem dessa forma. O primeiro acto, francamente, achei-o monótono, básico de representação, o palco com imensas personagens que pareciam interrogar-se de um modo pouco convincente. Posso estar a ser injusto, mas esperava mais de uma companhia com o prestígio da Comédie Française. Só os actores mais velhos em cena pareciam agigantar-se, dando ao trabalho do todo a competência e o esplendor que se espera: Florence Viala, Michel Favory, Nicolas Lormeau. A personagem principal, interpretada por Viala, por vezes, caía no exagero. Nota maior para a música original da autoria de Pascal Sangia e também para certas soluções técnicas de cena que resultam muito bem, como por exemplo, o racord entre actos. Quanto ao texto do autor russo, ele é por demais evidente: duas gerações confrontam-se; dois mundos: o passado aristocrático e o anúncio do bolchevismo. A juventude em palco é disso exemplo. Igual a tantos outros jovens que preferem o imediato e não dão valor à memória enquanto processo de criação de identidades e amarração ao passado ali simbolizado pela cerejeira, que deverá ficar no sítio onde nasceu e cresceu e viu crescer a fazer-se alguém uma família inteira – os Lioubov. 

O final de La Cerisaie de Anton Tchekhov

         - Faz frio, Paris vive preocupada com a quinta leva de Covid-19, é por isso tempo de levantar amarras e partir. Não estarei melhor lá do que estive aqui – em verdade, hoje, os problemas de uns são os mesmos de outros. A Europa só oferece de diferente as catedrais, as povoações remotas onde o viver se cinge estreitamente ao humano, talvez igualmente uma certa memória que perdurou através dos tempos apesar do esforço de alguns em a erradicar. Somos hoje uma imensa comunidade de robôs, conduzidos por esquemas sociais e políticos que nos anulam enquanto seres únicos, substituímos Deus pelo dinheiro nojento, somos a imagem de uma decadência que se acentua e não sabe o valor da liberdade enquanto factor de sobrevivência e fraternidade. Temos tudo, mas falta-nos sempre qualquer coisa. Vivemos no lodo do vazio e acreditamos que seremos salvos um dia por um qualquer vendedor de projectos imobiliários ou advogado de causas perdidas.