terça-feira, novembro 09, 2021

Terça, 9.

Annie fez uma depressão de todo o tamanho quando viu dois homens contratados pelo marido para abaterem uma árvore velha e perigosa no jardim. A coisa foi de tal ordem, que gritou como louca, fechou-se na biblioteca de onde não saiu nem para almoçar. Custa-me vê-la degradar-se de dia para dia, sempre com a mesma coragem que lhe conheci e no presente chega a ser patético.  

         - Por falar em biblioteca que tanto atraía Green no seu exílio norte-americano. “Une bibliothéque, c´est le carrefour de tous les rêves de l´humanité.”  

         - Esta tarde dei um passeio demorado pelo centro de Saint-Denis. Nas recuadas avenidas e ruas largas, existe um urbanismo na linha de Haussemann, que não é de todo em todo desagradável. Certos bairros são mesmo tão clássicos como os seus semelhantes da Rive Gauche. Ante o que a vista alcança, não me seria displicente acampar por ali, pois o ambiente nada tem a ver com o centro histórico onde só a Basílica me cativa. Outrora, num tempo que cheguei a conhecer, a catedral dos reis franceses, constituía um núcleo de casas que irradiavam do monumento gótico formando uma pequena comunidade pobre acolhida em torno dos seus muros. Eram casas baixas, escuras, serpenteando por becos e vielas como era uso na Idade Média. Depois o que chamam progresso irrompeu e hoje a beleza do edifício só da entrada se pode contemplar. Nada que a circunda e envolve tem a ver com a vetusta e nobre construção.  

         Não conheço nenhum lugar em França com a diversidade de povos e culturas como este de Saint-Denis. Para mim, é uma pequena África onde nas ruas se cruzam árabes, africanos, indianos, nepaleses, ciganos, argelinos e toda a romaria de gente que constituiu a França de outros séculos. A balbúrdia no centro é infernal, pessoas com hábitos que não perderam sentadas no chão, lixo por todo o lado, famílias inteiras esquecidas das horas ruminando desgraças, de olhos mortiços e pele gretada, entopem as entradas dos cafés, edifícios públicos, supermercados. Muita gandulagem à mistura como negociantes de drogas, pedintes, juventude vagada. Na rue de la République, a principal, o comércio dantes correcto com as grandes marcas presentes, é hoje uma sucessão de barracas com todo o lixo que se possa imaginar vindo de paragens longínquas para tornar a vida da população um pouco mais próxima da que deixaram para trás. Entrei por instantes na Basílica, no momento em que o sol descia e purificava a vasta correnteza dos maravilhosos vitrais. São obra de arte comovente, cuja luz entra na nave central e vem por aí abaixo, beijando as colunas góticas, os túmulos de pedra esculpida, até nos paralisar de espanto. O silêncio era total àquela hora, o fim de tarde introduzia no interior uma sombra de mistério. Quedei-me numa breve oração, só, imperfeito, abatido no centro de história de França que ali se recolheu imortalizada, perdido no tempo e no espaço adensado de espectros que pareciam dialogar comigo, minúsculo ser enlaçando o passado e o presente, um e outro, cobertos de sangue, suor e lágrimas.