quinta-feira, novembro 18, 2021

Quinta, 18.

Pelas quatro e meia da manhã, senti qualquer coisa de estranho em baixo. Voltei-me na cama e tentei reconciliar o sono de novo, pensando que era a Annie que decidira levantar-se cedo como era costume noutros tempos. É quando estamos a tomar o pequeno-almoço que recebemos a notícia por Hugues: a casa da Michel – nossa vizinha da frente – tinha sido assaltada e outras duas no início da rua também. Estranho assalto de noite! Entraram pela garagem sem fazer estragos. Michel acordou, chamou a polícia e o ladrão, um pobre rapaz imigrante, foi levado pela polícia sem tempo para se abotoar com o quer que fosse. O curioso da história é que na véspera, antes de nos deitarmos, eu alertei o Robert para que trancasse bem a porta porque se alguém entrasse era eu o primeiro a ser maltratado (o meu quarto fica no cimo das escadas, o deles na outra parte da casa e, portanto, deste lado só eu habito de noite). Michel apareceu, nervosa, a pedir ao Robert que fosse com ela à esquadra dar testemunho do facto; este esquivou-se dizendo que isso não servia de nada e só contava para as estatísticas. Eu revoltei-me e argumentei que ele devia corresponder por uma questão de solidariedade entre vizinhos. Annie deu-me razão. Tudo o que desarranja o seu quotidiano trivial, é sem interesse nenhum. 

         - A Annie é uma fonte de preocupações. Há dias que traz uma tosse cavada com expectoração. Faz medo, sobretudo porque não leva o braço nem o lenço à boca e os vírus ficam à mercê dos que estão por perto como foi o caso na viagem de ida e volta a Quiberon e ainda por cima de janelas fechadas. Aqui chegados e depois do esforço que fiz para que tomasse um xarope, Robert levou-a ao médico esta manhã. O meu temor é que fosse covid - e ao que parece o médico pensou o mesmo e ordenou que fizesse o teste. O resultado do PCR chegou pelo telefone: negativo. Ufa! Respirámos todos de alívio. Eu afoito-me à vida, mas levo o coração atado ao desespero. Faço o meu melhor por me proteger, mas nem sempre esta atitude pode ser consentânea com as circunstâncias. 

         - O Diário de Green interessa-me sobremaneira, não só pela sua luta entre a matéria e o espírito, a alma e o corpo como princípios de inter-penetração, ainda como pesquisa de evolução pessoal no tocante à utilização do tempo materializado na vivência que perdura e dá consistência à razão. Aos quarenta anos ele considera-se velho e gasto e, todavia, vai acompanhar todo o século XX e falecer aos 98 anos. Saber como o tempo o arrastou ou como ele se deixou conduzir, é estudo para os próximos volumes de Toute Ma Vie. Je ne vous quitte pas, monsieur Green. 

         - Da massa sensível de que sou feito, esbatem em demora as árvores que nos acompanharam ao longo da viagem até casa. Todas as cores do Outono estavam nos seus dorsos majestosos que ao passarmos pareciam inclinar-se numa vénia a um tempo divertida e imponente. O sol que surgia de quando em vez, reflectia nelas uma animação suplementar, na embriaguez de flaches cintilantes que combinam paletas cromáticas de grande efeito. Seguíamos por um longo corredor vegetal que humaniza a paisagem e aproxima o horizonte toldado de chuva, enquanto no habitáculo a música de Bach alcantilava o espírito para regiões intangíveis de beleza. Depois... depois veio a noite e com ela cada vez mais próxima a grande cidade. As árvores fizeram-se sombras que se agitavam ao vento, um braseiro de luz e ruído na linha do horizonte, vermelha e branca, engolia o silêncio e calara a voz de Johann Sebastian Bach. De repente o vazio. O desamparo. A vastidão da noite.  

         - Dia limpo. Temperatura aceitável. As árvores do parque de la Courneuve que vejo da janela do meu quarto, são estátuas respeitáveis que me olham do fundo dos tempos e espreitam estas páginas como quem pressagia tudo o que escondo de mim.