sexta-feira, março 31, 2023

Sexta, 31. 

Outro dia o André, filho dos Coutos, fez, julgo, 40 anos. Telefonei-lhe e ficámos ao telefone um bom tempo à conversa. Foi quando ele me disse da influência que eu tive sobre a sua personalidade e formação. Não deixei de lhe mostrar a minha admiração pelo que ouvia e ele respondeu que só quando cresceu se deu conta do facto. Acontece que o André, sendo filho único, foi educado como um príncipe e, por isso, eu o batizei de “príncipe André”. Só que este aristocrata deu em socialista, facto que eu perdoo tendo em conta a raiz sã e honrada de onde ele proveio. Aquele trio, é cada um individualmente e depois o conjunto, gente de boa cepa que também a mim me tem amparado e estado presente nos momentos bons e maus que atravessei. 

         - Este facto, porém, leva-me para outras paragens. Tal afirmação ouvia (e ouço) dos amores que atravessaram a minha vida. A influência nos gostos, na forma de viver, de estar nela, na matéria cultural e na aventura das viagens, na descoberta de novos restaurantes e museus, vilas e aldeias, parece que ficou a pairar na memória como um anjo de asas brancas enchendo os seus dias de fantasia. Para não ir mais longe, penso nos leitores que por vezes me escrevem apontando nesse mesmo sentido o quotidiano aqui narrado, que parece merecer-lhes algum toque de loucura que sobrepuja os seus dias arrastados por estes apontamentos. Não há muito, uma leitora dizia-me que tem precisão de me ler diariamente. É por ela e por todos que me esforço por aqui vir piscar o olho a quem do outro lado se quer irmanar com um pobre coitado que abraça a solidão e faz dela dias inteiros e únicos da sua existência terrena. 

          - A Maria José bateu-me ao ferrolho a desafiar-me para um almoço. Embora esteja nas lonas, não resisti e fomos ao Pérola da Serra. Há alguns anos que lá não ia, e o que vi desiludiu-me a começar pela decoração e a acabar nos preços. Noutros tempos, levava lá os amigos e muitos foram: os Amados, Isabel da Nóbrega e Saramago, Lagoa Henriques e o namorado, os Coutos, Sebastião Fortuna, António Carlos, Borges Coelho, amigos estrangeiros, e tanta outra gente. Nesse tempo, o interior era simples, o peixe fresco, a clientela típica daqui, havia fila lá fora, a animação era mais que muita, o preço abordável. Hoje o interior é novo-rico, vulgar, com as cores escuras da moda, o espaço reduziu, e só se come por marcação. Este chique da nova clientela saloia, está em consonância com a arribação por estas paragens de gente sem qualidade, que faz a vida citadina que antes levava em Lisboa, come alarvemente, fala alto, exibe os maxilares já com cavernas, e parece achar-se num santuário construído para os privilegiados que eles são. Abrenúncio! 

         - Por todo o lado encontro o rosto do fim, é o resultado de se viver um pouco mais. Ontem no Centro de Saúde, deparei com Sérgio Godinho e um homem por metade da sua altura, amparado a um andarilho. Fomos vizinhos anos, ele a morar na Rua de S. Bento, eu na São Marçal. O homem que vim a saber ser seu irmão, não consegue dobrar os  joelhos e, quando se atirou (literalmente) para a cadeira, levantei-me de rompante porque pensei que ele ia a cair desamparado no chão. Acode o músico a agradecer-me e diz-me que é assim que ele consegue sentar-se. Bom. Sou entretanto chamado ao consultório da Dra. Vera Martins, e ao sair ouço o cantor a dizer que vai pedir ajuda à médica para o irmão. Ofereço-me e os dois, puxando os braços do infeliz, conseguimos pô-lo de pé e pela minha parte só quando o senti sólido agarrado à barra do andarilho, me despedi. Godinho, estando melhor, também já se nota problemas de locomoção. Disse-me que mudou de morada e vive agora na Alvares Cabral. Enfim, sem que isso me contente, acabamos todos a coxear. Se ao menos isso atrasasse a entrada na morte... 


quinta-feira, março 30, 2023

Quinta, 30.

A notícia do dia que impressionou meio mundo, foi a morte de duas mulheres e o ferimento de outra, atingidas por arma branca, no Centro Ismaili de Lisboa. O agressor é um homem de meia idade, afegão, que se refugiou entre nós há um ano. Parece que não houve motivos políticos nem xenófobos, tratando-se de alguém com perturbações mentais graves. De facto, segundo a Polícia, o homem fugiu do Afeganistão com a mulher e três filhos menores, passou pela Grécia onde a mulher morreu num incêndio no campo de refugiados, em Lesbos, até chegar a Portugal em 2021 na companhia dos filhos. Este quadro é suficiente para nos arrepiar, mais ainda para pensarmos a forma como recebemos quem foge da guerra, da fome, da miséria e da humilhação. “Estamos perante um momento de um surto psicótico, que terá levado a que este trágico acidente possa ter ocorrido", diz o comunicado da Polícia. Pois é. Se não somos os directos responsáveis pela situação, somos moralmente atingidos porque somos muito prontos a acolher e breves a descartar responsabilidades de assistência e condições dignas. É evidente, com o quadro descrito, o pobre homem, decerto sentindo que a vida ficou aqui retida, olhando o destino dos filhos, sem horizontes nem perspectivas, a cabeça incapaz de organizar o presente, num momento de loucura, enveredou pela raiva que não o largava. Todavia, a quem devemos assacar responsabilidades, é ao senhor Joe Biden que abalou à má fila do Afeganistão, deixando para trás um povo às garras de loucos fanáticos. De um dia para o outro, por aqui me sirvo, e deserta deixando milhões de pessoas entregues à sua sorte. É a América no seu pior, que não deve dar lições morais a ninguém quando tem a consciência manchada de incríveis golpes de desumanidade. 

         - Fui levar o tac à minha médica de família. Deixei-a observar o exame e aguardei pelo veredicto: “Sim senhor, aqui não há vestígios de nenhum acidente, tem um cérebro impecável.” Contei-lhe então o que me disse o colega que operou o registo, e ela: “Pois. Aí tem porque eu aconselho aos meus pacientes que não desistam de trabalhar com o cérebro. O senhor é um bom exemplo.” Mas eu disparei: “Sou um todo. Desde cedo que leio muito, trabalho com a cabeça noite e dia, como pouco, durmo o máximo que posso e tento guiar a saúde que é parte integrante da vida que para mim é sagrada.” Riu-se. 


quarta-feira, março 29, 2023

Quarta, 29.

Fui ver a Teresa Magalhães ao lar. Demorei-me uma meia hora a “conversar” com ela, a atentar activar o seu cérebro, fazendo conexões com este e aquele amigo, esta e aquela obra de arte e artista, mas o retorno foi a tristeza de a ver naquele estado outro onde não chego por nenhuma espécie de língua ou diálogo. É um mundo onde ela aportou quase de súbito, e aí ficou agrilhoada de pavores e decifrações incompreensíveis, fantasmas e alucinações. O sofrimento humaniza-nos, a morte liberta-nos. 

         - Os comboios andam a abarrotar de gente a marrar nos telemóveis, todas e todos vestidos com o mesmo uniforme, debitando as mesmas ideias, com os mesmos trejeitos, desenriquecendo a nossa identidade, padronizando comportamentos, ideias e formas de ver o mundo. São os soldados da turbamulta de alienados que os regimes autocratas apregoam. Belos de uma beleza uniformizada, espécie de eugenia dos tempos presentes, que respondem à chamada de George Orwell. 

         - Ontem, tendo entrado no metro com destino a casa, por alturas da estação Anjos ou Arroios, a carruagem cheia de imigrantes e turistas, rebentou uma série infinda de bufas de várias nacionalidades que, embora estivesse de máscara, não evitou o horroroso pivete que se instalou. Para fugir àquele decidido e convicto ataque dos que de cá não são, abandonei o transporte e esperei, desconfiado, pelo próximo – na última carruagem não vinda ninguém. Enfim, respirava-se! 

         - Por falar em máscara. Parece que a OMS já quase a dispensa, tendo em conta que o vírus chinês SARS-COV-2 desapareceu ou está menos agressivo. Pela minha parte, não entro em transportes públicos, hospitais, lares sem me proteger. Eu que recusei a derradeira vacina administrada com a da gripe – esta nunca a tomei na vida, aquela por achar que era capaz de a evitar tendo escapado até agora – nem por isso deixei de andar vigilante. Faço figura de resistente nos comboios onde anda tudo a monte e fé em Deus. 

         - A China e a Rússia parece que possuem drones equipados com inteligência artificial capazes de matar quem for calculado para morrer. Não hesitam em os utilizar, já a França recusa esse recurso bélico de destruição da vida humana, mesmo em caso de guerra defensiva. Mortes programadas não são para os países onde a dignidade humana e mais forte que os ódios dos ditadores. 

         - Entrei na livraria e deparei com mais um volume (Os Livros Históricos) de a Bíblia, traduzida do grego pelo nosso incansável trabalhador Frederico Lourenço. Comprei-o de imediato e quando regressei a casa, pus-me a apreciar o labor contínuo do exegeta de Coimbra. Logo que termine a autobiografia de Simone Veil (estou no fim), iniciarei a leitura que tanto me faltava e tanto tardou (o último volume saiu em 2019). 

         - Dia intenso. De manhã duas horas um pouco por todo o lado, à tarde outras tantas. Ainda por cima com manipulação de três máquinas: motosserra, roçadora e corta-relvas. Não sei como vou acordar amanhã, mas o que vejo mereceu o esforço. E estás feliz, homem de Deus? Mais ou menos. Faltou-me um simples encosto, uma horita no romance, um piscar de olho a Ana Boavida. 


segunda-feira, março 27, 2023

Segunda, 27.

Como sempre, por aqui, trabalho não falta. Ontem não parei um segundo, primeiro na cozinha a preparar dois pratos e uma sopa para arquivo, depois ida à Moita à feira mensal procurar barbante para a roçadora e de seguida comecei e acabei de roçar o mato que se acumulou em volta da piscina. Eu não peço a Deus descanso, peço trabalho e protecção. É a labuta que me faz feliz, me arredonda o olhar quando fixo a paisagem atapetada de um verde cintilante e vejo nela o esforço que o meu corpo ainda consegue expedir. A minha existência actual, desdobra-se entre as coisas do espírito e da vida prática. Ninguém poderá imaginar a hora queda que passei sexta-feira no Vitta Roma onde fui almoçar, corrigindo dez páginas do romance! São momentos sublimes, ímpares, que me transportam para um mundo que não toca os ramos desalmados deste, envoltos numa felicidade limpa, pura, que resumem e conferem realidade à minha passagem por esta terra, ao esforço epopeico do existir em conformidade com o murmúrio interior, a vida constante, solitária, de par com os elementos que lhe dão consistência e razão de ser. Talvez por me ter cabido viver num país pequeno, governado por gente pequena, importante de razões mesquinhas, merdelhices sem qualquer relevância nem grandeza, eu tivesse sido obrigado a fechar-me na liberdade que o conhecimento me trouxe e o espírito critico me desenvolveu. Duas realidades trabalharam o meu carácter - a busca pela verdade e a descoberta que nos circunscreve ao estatuto de marginal ou se preferirem de ilhéu.   

         - Esta manhã, após duas horas de trabalho lá fora seguidas de meia hora de piscina, engolido o almoço, estirei-me na chaise longue a reler Julien Green. O corpo pedia-me aquele repouso iluminado pelos textos do escritor, mas o calor agradável, o silêncio que crescia em volta, convidavam a uma sesta prontamente acolhida. Teria sido meia hora, mas esse tempo replantou em todo o meu corpo o dinamismo com que comecei o dia. Recusei-me hoje trazer aqui alguma revolta que o país que somos hoje sempre nos agita. Nada do que por cá se passa tem interesse para estas páginas onde o silêncio branqueia o barulho e a farfalhice do dia-a-dia. Apetecia-me concluir como Green este diário é “le journal des deux, le journal de moi-même entier, de moi-même enfin reconcilié avec moi-même” (p. 537).  


sexta-feira, março 24, 2023

Sexta, 24.

E se eu me acoitasse junto do meu Criador e fizesse da Sua casa o lugar dos meus dias, o porto de abrigo onde me abandonasse à Sua sombra protectora.  


quinta-feira, março 23, 2023

Quinta, 23.

Paris e várias outras cidades francesas está a ferro e fogo. Os franceses não querem trabalhar para além do 62 anos quando, por toda a Europa, só eles usufruem de tal benesse. Faz bem Macron em não ceder, ainda que eu pense que a senhora Marine Le Pen tem as portas escancaradas para lhe suceder. 

         - Que charabia vai pela Assembleia da República a propósito da lei da habitação! Nenhum partido, à excepção do PS, está de acordo com aquela manta de retalhos e nem as autarquias a querem implementar. Mas Costa é hábil na argumentação e puxa pela memória e junta uns pós daqui e dali, e atira-se ao PSD servindo-se do projecto do “sábio dos sábios” Cavaco Silva sobre o mesmo assunto. A nota dominante, é a de Marcelo o Presidente, que parece ter compreendido, enfim, que pôr a mão debaixo do discípulo “inteligente” é afundar-se com ele. A balbúrdia, os desastres, as complicações, o baixo nível de conhecimento dos seus ministros, mais a política de “cartaz” como eles agora dizem, a paralisia do país, a miséria que se instalou, moral e social, todo este clima de suspensão e tragédia, traduz um reinado de asfixia da tolerância e do desenvolvimento. 

         - O lado contrário, não fugindo do assunto, o que nos oferece o PSD é algo que foge completamente da realidade. Carlos Moedas, o autarca novo-rico, em bicos de pés, proclama estar mais atento ao padecimento daqueles que não têm casa e são obrigados a pagar quartos por uma fortuna. Vai daí, obras realizadas em prédios degradados, para “os pôr ao serviço das comunidades mais necessitadas” como, por exemplo, os estudantes. Só que a renda vai de 600 a 1000 e poucos euros/mês por quarto!!! Neste particular, não foge da imagem de António Costa, nem dos políticos de topo, vivem de tal modo desligados da população que nem se dão conta que a diferença entre os seus vencimentos e a do português médio, é de quatro mil euros por mês! Nem os empregados do PCP, que ganham em média 700 euros, se podem candidatar. Que grande decepção é tudo isto, esta classe governativa! Como é que tudo vai terminar?! O ensaio está feito com as greves sucessivas transversais a todas as actividades económicas e sociais. Resta aplicar a norma que as ditaduras costumam usar uma vez destruída a democracia: a anarquia, a instabilidade, a desordem. 


quarta-feira, março 22, 2023

Quarta, 22.

Transformámo-nos num país que escolheu a evasão à realidade. Leio nos jornais, ouço nas notícias que Lisboa, Porto e Almada possuem elevados vestígios de consumo de cocaína e canábis nas águas residuais. A informação vem do Observatório Europeu das Drogas e da Toxicodependência. 

         - As novas tecnologias são o delírio das novas gerações. Não as contradigo, mas vejo com tristeza que se deixam enredar num logro que eu antevejo vir a ser a masmorra e a alienação utilizadas por futuros ditadores para lhes cercear a liberdade. Livros sobre a matéria não faltam, “escritores” também não. O pequeno génio que é um tal Chem Qiufan, chinês de nacionalidade, que se ocupa em livro de Inteligência Artificial de que tanto se fala, numa entrevista diz coisas como estas: “O ser humano precisa de recompensas sólidas: dinheiro, sexo, comida, prazer instantâneo ou estimulação.” Depois divaguei-a e afirma sem sentido: “Algo como uma contribuição com a humanidade e um sentido de pertença” (perceberam?), e acrescenta: “É um pouco naive, mas gosto dessa visão do mundo.” Eu, não. E muito menos de parlapatices. 

         - O modo como as africanas que encontro no Fertagus se atiram cheias, gordas de coxas, mamas, todo o corpo imenso para o assento, é um pequeno telúrico que faz tremer as redondezas. 

         - Ontem estive em agradável conversa na Brasileira com o António e o Castilho, (a praga da política afastada). Para merecer as duas horas de convívio, tive que subir a quase centena de degraus (ou talvez mais) dos escombros da vergonha do metro, à superfície. Raramente as escadas rolantes funcionam, o metro e a edilidade estão-se borrifando para os cidadãos. Suas excelências têm direito a carro e motorista pagos com os nossos impostos. O novo-riquismo dos países miseráveis, sobra sempre para os caloteiros, os corruptos e os incompetentes. 

         - Almocei com a aristocrata Constança. Outrora tivemos um caso, mas não foi disso que falámos à mesa da Confeitaria Nacional. Trabalhámos ambos na Latina, eu como copy, ela a secretariar Jorge Rodrigues, o director. Recordo com saudade esse tempo, não obstante ter contraído pela primeira vez uma monumental depressão devido à acumulação de trabalho no jornal e na agência de publicidade. 

         - A morte do empresário socialista Rui Nabeiro fez correr muitas lágrimas de crocodilo à classe dirigente. Eu estive com ele duas vezes e pude testemunhar da humanidade que transmitia como algo natural provindo da sua personalidade. Não vou recontar porque os nossos encontros foram narrados já noutras páginas. Paz à sua alma. 

         - A reunião os dois ditadores, pariu um rato morto. 

         - Levantei-me cedo para deixar o carro na oficina. Regressado a casa, logo me ocupei de carregar não sei quantos carros dos restos das yucas para o local onde serão queimados. Recaída de dores nos rins. Não é fácil a vida de um modesto camponês. 


segunda-feira, março 20, 2023

Segunda, 20.

Vladimir Putin, desafiando o TPI, esteve de visita à Crimeia e depois a Mariupol, no Donbass, a leste da Ucrânia. Hoje recebeu o líder da China e como dois amigos conversam, bebem e estreitam relações, mostrando ao mundo a sua unidade e indiferença às vidas humanas e à destruição que levam a cabo na Ucrânia. Les beaux dictateurs se reencontre ontem como hoje.


         - Fui ver o filme Ennio, o Maestro. Trata-se do mesmo género de argumento e realização daqueloutro que vi há um mês sobre o prémio Nobel da Literatura do ano passado, Annie Hernaux. Ennio Morricone foi um génio que o mundo levou tempo a reconhecer, porque tinha uma personalidade pouco dada ao exibicionismo e à importância que os media gostam de construir e desconstruir. Grande trabalhador, profundamente poderoso e sensível, levou a vida a encher filmes com música de uma construção que passava para lá do suporte cinematográfico que esteve na sua génese. Dizia-se durante várias décadas, que aquela música não tinha o saber e a profundidade da música clássica escutada nas grandes catedrais góticas da naftalina e da pose. Morricone sofreu com isso, mas não deixou nunca de compor a música que, como dizia a filha, “era o diálogo do filme”. E de facto, quando escutamos a sonorização de filmes como Cinema Paraíso, os grandes westerns, Os Oito Odiados, A Missão e tantos outros, centenas mais, estamos ante uma música sinfónica de verdade, que enriqueceu filmes, dando força e ritmos, consistência e verdade a imagens que sem ela passeariam no ecrã sem a beleza e a energia estética que a sua música imprimiu a cada cena. A tal ponto que o rock e o folk se aproveitaram e se arrastam ainda hoje na cauda de um artista ímpar, que viveu de a para a música como Bach, Mozart ou Beethoven. Quem não se lembra das canções de Joan Baez, daquela empolgante música do filme Sacco e Vanzetti  Here's to You ou da nossa Dulce Pontes. (Vou ver se tenho ali o disco da extraordinária composição.)   

         - Voltei para casa já a noite raiava na cidade e no campo, ao chegar, o céu estrelado imprimia na terra doçura terna, próxima do Paraíso, banhada do silêncio que nos aproxima da presença divina. Contrariamente ao que imaginava, sendo domingo, o comboio veio a abarrotar de gente apinocada. Não eram ainda os nocturnos do passado, era uma massa de gente indefinida, que eu não conhecia por estas bandas, entre o rústico e o citadino, com cheiros de tudo, agradáveis e horríveis, cobertos com fatiotas domingueiras de tendências primaveris. Grosso modo, não havia beleza que os meus olhos tivessem captado. Somos giros e íntegros nos físicos sólidos e expressões provincianas puras, quando nos destacamos da multidão pela originalidade e os restos do português de antanho, belos como as rochas milenárias, secretos como o disfarce de um segredo. 

         - Passei a manhã às voltas pela zona árabe de Setúbal. De nariz no ar à procura de casas que vendessem as tintas (falta-me o vermelho) que o John pretende para pintar a janela da biblioteca, calcorreei para cima de uma hora ruelas estreitas, becos e pátios, todo o traçado magnífico e ainda humano que faz com que a cidade se conserve genuína e agradável onde apetece viver. Depois, satisfeito com a compra, sentei-me numa esplanada a beber café com pastel de nata. Esplanadas não faltam por todo o lado e aquela animação familiar onde todos se conhecem, vive nos espaços públicos como se estes fossem os interiores das casas antigas de cada sadino. Queria tanto que o tempo se quedasse através do remoinho de recordações que vieram ao meu encontro! Ter vida é isto, é viver dentro e fora do tempo-lugar, do tempo-circunstância, abraçar com a memória o tempo ido e o presente, como se um fizesse parte do outro e dois fossem o futuro que se abre lisonjeiro e feliz. O solstício da Primavera acampou por todo o lado, chegou do fundo do calendário com um bouquet de flores perfumadas que todos exibiam na lapela dos casacos que ninguém vestia. Todavia, suspenso no ar, havia um cheiro fresco, subtil; cheirava a sol, a terra, a mar, e em cada rosto abria-se um sorriso infantil que nos tolhia de satisfação. 


sábado, março 18, 2023

Sábado, 18.

O Tribunal Penal Internacional, emitiu um mandado de captura para o Presidente Putin e Maria lvona-Belova, comissária de direitos da criança. Os crimes cometidos por estas duas figuras sinistras, estão mais que comprovados e muitos passaram-se diante das câmaras de televisão do mundo inteiro. Dir-me-ão que é impossível prender Putin; eu respondo que um outro criminoso de seu nome Radovan Karadzic, que todos diziam ser inexequível apanhar, levou com 40 anos de prisão.

         - Tenho de confessar que usufruo de alguma simpatia por Alexandra Reis com aquele seu ar de freira démodé, aquele silêncio sobre os factos ocorridos na TAP, aquela espécie de distância que a aproxima da razão; e não tenho nenhuma sintonia com o homem de esquerda do PS, hoje aniquilado pela sobranceira ambição, de nome Pedro Nuno Santos. Afinal quem agiu dentro da razão e da probidade, foi a ex-administradora do estandarte socialista, quando a 29 de Dezembro de 2021, por e-mail, pôs à disposição do então ministro das Infra-Estruturas que sempre negou ter tido conhecimento e, decerto, sem exigir indemnização nenhuma, o seu lugar. A trapalhada que se seguiu é conhecida e ficou como mais um marco da governação António Costa versus Fernando Medina. Adianto que não tenho dúvida de que vamos pagar muito caro a exoneração da senhora Christine Ourmières-Widener. Mas que importa se somos um país rico, sem pobreza, equilibrado, governado por políticos competentes, que nunca roubam e assumem como missão e honra nacional dar o seu precioso tempo à nação. Porque, em verdade, nenhum dos gestores é culpado por receber salários milionários e indemnizações correspondentes;  a desigualdade socialista é a única responsável porque atira os pobres e os trabalhadores para a revolta e a miséria e esbanja sem tino o erário que não lhe pertence. Os socialista nunca souberam nada de finanças. E com maioria é uma festa. 


sexta-feira, março 17, 2023

Sexta, 17.

Há um espectáculo com todos os horrores e figuras e figurões lá dentro: as greves ditas gerais nos sectores do ensino, consultas médicas, justiça, recolha de lixo, impostos e os nossos queridos operários dos comboios, mercenários do PCP. Todos estes organismos integram aquilo a que se costuma chamar função pública. Dos privados, parece que os enfermeiros entraram na dança, o resto trabalha –  este resto deu a maioria a António Costa. Só pode. Embora me revolte contra o desprezo, a leviandade de certos sectores ao serviço da comunidade que recorrem à greve em sucessivas ondas, também não deixo de pensar que em Portugal nunca os trabalhadores obtiveram uma côdea sem violência. Todos os governos, este em particular porque não governa para nós, mas para o brilho das injustiças que tanto são apreciadas na União Europeia, que lhes endeusa o comportamento, a gestão das Finanças e a doçura do país. Dirigentes assim, perfilam para postos de elevado gabarito em Bruxelas, com salários a condizer e ajudas de custo e viagens e os holofotes do mundo a aformosearem os seus espíritos brilhantes.

         - Todavia, sob as suas capacidades governativas, acontecem cenas de bradar aos céus. Como a mais recente (há centenas no rosário da liderança de Costa!) detectada pelo Tribunal de Contas. Este descobriu a compra de dez catamarãs eléctricos, pelo valor de 52,4 milhões de euros a uma empresa espanhola, para a travessia entre Lisboa e a margem Sul do Tejo, pela Transtejo, mas com um pormenor de somenos importância: só um estava equipado com a bateria que permite a sua navegação. Descoberta a falta, logo a administração da empresa pública, tentou por ajuste directo, adquirir os nove acumuladores em falta, por mais 15,5 milhões. Felizmente que os técnicos do TC estavam atentos e recusaram o aval com esta frase sublime que ficará na história daquele organismo: este negócio equivale a comprar um “carro sem motor, uma bicicleta sem pedais ou uma moto sem rodas”. Excelente, excelente! A administração demitiu-se em bloco, mas esta acção acontece por todo o lado onde o dinheiro dos contribuintes corre como água do oceano. É por estas e por muitas outras, que eu reclamo dos meus concidadãos a revolta enquanto exercício cívico. O dinheiro nunca chega para abrandar a pobreza, mas sobra para os desvarios de gestão, os salários de directores e CEOs (oh, bela designação!), indemnizações milionárias, e todo esse parasitismo que prolifera na administra pública. Vou citar Julien Green para que me entendam (não encontrei a citação, embora tenha folheado as 1031 páginas do volume 3 de Toute Ma Vie, grosso modo, o que ele diz é que quanto mais nos cultivamos, mais livres somos. 

         - A lei que permite ao Estado francês adiantar a idade da reforma para os 64 anos, passou com o decreto do Presidente da República. As grandes contestações nas ruas, na Praça da (des) Concorda, com greves abundantes à mistura, vão prosseguir, para regozijo da rataria. Calcula-se que 3 milhões de ratos só em Paris, engordam e passeiam-se por prédios e avenidas da capital. Os empregados da recolha dos dejectos de milhões de franceses que há uma semana estão em greve, fazem com que 5 metros de altura de sacos e todo o tipo de porcaria acumulado nos passeios, impressione e revolte os parisienses.  

         - Seis meses depois do início da contestação da juventude iraniana nas faculdades e ruas de Teerão, e apesar da violência feroz do Governo, juventude e cidadãos misturados, continuam a gritar “abaixo a ditadura”. São eles o heróis de amanhã. 

         - Costumo ver o noticiário da SIC todos os dias. Acontece que ontem, fui obrigado a sintonizar a RTP1 e esbarro com o locutor-escritor de serviço, José Rodrigues dos Santos. Que personagem! Desde a atitude, a voz impositiva, a gordura que lhe sobe com o nervosismo ao rosto, tudo aquilo num tom áspero, sonoro, como quem discute, aqui estou aqui me têm, me pareceu patético.  

         - Outro dia vi um extraordinário documentário da RTS sobre a guerra na Ucrânia. As monstruosidades dos soldados russos a matar ucranianos indefesos para as câmaras de televisão, como se fossem moscas brejeiras, ou um filme de gangues enfurecidos, sem qualquer tipo de humanidade, deixaram-me num estado de enervamento que me custou a adormecer. O João Corregedor costuma advertir-me: “aquilo são imagens realizadas pelos americanos”. Como sempre o bem está neles, o mal nos outros. 


quinta-feira, março 16, 2023

Quinta, 16.

Ontem, depois de ter perdido duas vezes a ordenança médica para fazer uma tac ao cérebro, lá fui quatro horas antes sem comer, realizar a ordem da Dra. Vera Martins. Deparei-me com um clínico curioso, oficial da Armada, que antes de me deitar no esquife diabólico, quis saber a razão para aquele exame. Contei-lhe a discussão com o João, os tiques no dia seguinte, a “médica” que me atendeu no Centro de Saúde de Palmela. Riu-se. Depois disse que provavelmente tudo o que me aconteceu foi uma descasca do sistema nervoso. A seguir, enquanto me aconchegava ao meu destino mortuário, foi-me contando que teve por doente Mário Soares, Jorge Sampaio e António Filipe do PCP, todos com histórias diferentes e, no caso do ex-deputado comunista, embora feio e sisudo, todo ele à moda antiga, (digo eu), ao que parece boa pessoa. Disse-lhe que eu tinha estado com ele no enterro de Urbano Tavares Rodrigues, na SPA e enquanto eu rezava um padre-nosso por alma do meu amigo, ele ali estava circunspecto a cumprir a obrigação de representar o partido no adeus ao camarada. Bref. Ulteriormente, deseja-me boa noite e desaparece para se fechar num cubículo à entrada do consultório de onde opera a caixa abobadada para onde me deslizou a cabeça. Por momentos parece que estou a viajar num avião supersónico, ruído e uma imagem que roda a grande velocidade enche-me os olhos de maravilhas tentadoras que almejo tocar. A viagem dura um espaço ainda longo, que começa a incomodar-me porque penso que ele está a pesquisar coisas que eu não quero que descubra. Tento mover a cabeça, mas ela está presa à base por uma tira sólida. Fico calmo, mas o meu cérebro, habituado a cogitar sem descanso, põe-se a imaginar que visão vai para lá daquela urna onde estou pronto a partir para um qualquer obscuro canto de mim mesmo, subitamente à mercê da cultura e da inquietação científica do médico. Ei-lo a destapar-me dos montões de atoalhado de papel que me envolveram o pescoço, a deslizar a tumba de modo a desembaraçar-me daquele túnel onde estivera imóvel, fingindo de morto. 

- O que faz na vida? – quando me levanto e fico olhos nos olhos com ele, sendo da mesma altura. 

- Melhor diria o que tenho feito na vida. Porque pergunta?

- Porque estou surpreendido com a qualidade do seu cérebro. Está intacto para a idade que tem. 

- Olhe, tenho trabalhado toda a vida com palavras, escrita, jornalismo, sensações, emoções, muita curiosidade, cuidados com o sono, abadas de leituras e hoje vivo como sempre sonhei – a escrever e a ler. 

- Pois. Todo esse trabalho foi muito benéfico ao seu cérebro. Hoje vai levar consigo o disco e dentro de dias, por e-mail, receber o relatório. – E à despedia, já no corredor: - Parabéns pelo cérebro que tem. 

Dá que pensar. Anda há duas semanas a oftalmologista dizia-me que mantenho um pouco mais de 80% de visão e agora o meu cérebro parece estar intacto. Irei eu a caminho da velhice ou em retrocesso para a juventude airada? O vício de uma vida leviana e dissoluta que foi a minha, desta vez à moda da velhice capada de todos os desejos, será a sina que me espera? Então, com este cérebro, já não deslizo para a mesma morte de Virgínia Woolf como tantas vezes pensei ser o meu destino? E que lugar terá Deus em tudo isto? Porque Ele nos prepara para o nosso fim sem nos dizer onde e quando iremos deixar estas inquietações e estas (porque não dizê-lo) esperanças e sonhos de velho a caminho da redenção.  

         - Como tudo é fantasia, Santo Deus! De Lisboa segui directo para Setúbal onde tinha várias compras a fazer. Uma delas na farmácia para saber da farmacêutica Dra. Madalena (ela é a minha conselheira em suplementos ditos alimentares) que espécie de produtos existem para baixar a tensão. Indica-me a oliveira em cápsula, mas eu descarto a ideia porque não tem os efeitos curativos que dizem possuir. Acabo a comprar o Valdisper e ela diz-me que gostava de me ver a tensão e fôssemos do balcão para o seu gabinete nas traseiras. Quando me desloco, tropeço na trotinete de um rapaz que estava a ser atendido ao meu lado e fico literalmente estendido no chão. Acodem todos ao mesmo tempo – técnicos de farmácia (como agora se diz), farmacêuticas, naturalmente a doutora Madalena e umas velhas muito aperaltadas que iam tendo um “chalique” de mãos no coração numa aflição. Erguido, encaro o rapaz e digo-lhe da minha indignação por ter entrado na farmácia com o aparelho e ainda por cima tê-lo deixado de qualquer maneira enquanto era atendido. Ele fica muito assustado, todo o mundo a cascar-lhe em cima, as velhas a jurarem que se fosse com elas já iam a caminho do Otão com os ossinhos todos desfeitos. Ante as desculpas e o pavor que vi no rosto da beauté, abracei-o e disse-lhe que estava desculpado, e para a próxima pensasse que a farmácia não é lugar para se entrar de trotinete. Bom. Sentado no gabinete da farmacêutica, ainda mal refeito do susto e das dores na anca da perna que um dia será levada a Fátima num andor aos ombros das raparigas e rapazes, disse à minha protectora “isso, como estou, deve apontar para vinte”. Não foi vinte, mas dezasseis o que para ela era muito, mas para mim, do signo Virgem, sei que não representa nada de grave. Dali, com tapete estendido no chão da botica, as velhas à minha espera para saberem como me sentia, fui ao Alegro comprar o necessário para o jantar. Cheguei a casa uma hora depois. A tensão registava 13,1-6,7. O habitual. 

         - Esta manhã meti ombros a tarefas difíceis. Como a Piedade esteve cá, pude, com a motosserra, continuar a desfazer-me de umas quantas plantas da família da yuca que tinha junto à piscina e no jardim. Estas donzelas, estavam já espigadotes, com pernas grossas e barba de homem das cavernas. Saí do trabalho que apenas começou, desfeito em água e cansaço e dores nos lombares. Vou precisar de uns dias para me recompor. Vai chover não tarda. 


terça-feira, março 14, 2023

Terça, 14.

Foi-me impossível prosseguir a descrição de horror da viagem que Simone Veil fez, em 1945, entre o campo nazi de Auschwitz-Birkenau e Bergen-Belsen. As páginas 72 a 85 que contam como escapou à morte, e como eram esses bastiões de indiscritível horror, sofrimento, desumanidade, autêntico inferno, deixaram-me no limite da angústia e do desespero, fechei o livro Une Vie por incapacidade sensível de continuar. Estive em Auschwitz-Birkenau na manhã de 14 de Janeiro 2019 coberta de neve, onde o silêncio era mais espesso e a memória não apaga os gritos lancinantes que ali permanecem e arrepiam quem por lá se afoita. O terror, camadas de terror sobrepostas, ficaram naqueles pavilhões cobertos das sombras malditas que inundaram a Europa entre 1939-1945. No meio da alucinação nazi, quando Hitler pressentiu o fim e os soldados dos campos de concentração atacaram as mulheres judias com o pretexto de não terem relações sexuais há muito tempo, raparigas e mulheres sofreram ainda esse vexame ignominioso. O mesmo aconteceu com as alemãs que os russos utilizaram como muito bem entenderam e a sua sexualidade selvagem ditou.  

Fotos sinistras que nos cegam de raiva e estupefacção.  




         - Numa grande superfície comercial um empregado assim que vê chegar aproxima-se: “Em que o posso ajudar?” Conhecemo-nos de longa data, mas desta vez achei-o diferente. “Há qualquer coisa que mudou em si”, digo por gentileza. E ele todo roliço: “Oh, decidi não pintar mais o cabelo e a minha esposa diz que até me ficam bem estas brancas nas fontes.” Tem mulher, perdão, esposa que é cega...  

         - Estive a serrar os grossos troncos de uma espécie de yuca que tinha atingido um certo porte. De seguida fui fazer meia hora de natação e voltei para prosseguir a leitura de Simone Veil. A tarde esteve admirável e sentado lá fora ao sol, ia intervalando o olhar nas páginas limpas da autora e na paisagem pronta para receber a Primavera. Há neste quadro belo, um destino renovado que me surpreende em cada ano. Como se a natureza contivesse em si a maravilha que se espreguiça quando sente chegada a hora de se exibir. 

         - Já se aproxima mais uma crise financeira. Como sempre chega-nos dos EUA e ameaça os sistemas bancários europeus. O célebre banco do Silicon Valley e um outro, mas é aquele que me interessa porque assenta nas novas descobertas tecnológicas como a Inteligência Artificial, que nos alimentam o orgulho com a sua estabilidade e elevados rendimentos, pelos vistos, afinal de contas, não passam de uma casca de laranja a boiar em alto-mar. Os políticos ronhas, já se adiantaram a dar por certo que as Finanças da UE não vão à falência. O nosso sacristão está de acordo – com ele ao leme os portugueses vão continuar a enriquecer. Só que o dinheiro, não lhes chega às mãos. Porque será? 


segunda-feira, março 13, 2023

Segunda, 13.

Marcelo deu uma grande entrevista à RTP1. Não vi, não vejo. Tudo o que sua excelência tem para dizer, já ouvimos por aqui e por acolá, porque o andarilho não tem parança e fala pelos cotovelos. Todavia, pelo que leio nos jornais, construiu desta vez uma retórica diferente, atacando e bem os assuntos que estão na ordem do dia. Todavia, o que mais apreciei pela imagem que encontrei quando mudava de canal, foi o cenário litúrgico onde o facto aconteceu. Foi pensado, decerto, pela sua imaginação galopante e queria reforçar tudo o que disse acerca da Igreja e dos seus pedófilos. Cinco estrelas, ilustre Presidente. 

         - Estou de novo mergulhado nas madrugadas assustadoras. Antes de acordar completamente, regressam à memória todos os dramas pessoais e mundiais; assuntos pendentes há anos surgem nítidos ao raiar do dia, uma pressão imensa submerge daquele estado de lassitude que odeio e bem conheço. Há um rosário de todas as minhas frustrações, de todos os meus delírios, de todos os propósitos e intenções que vou procrastinando, porque assim que o dia se instala e eu deixo os lençóis, renasce em mim a esperança, a morte é sacudida para o inferno, o tempo surge latitudinário e inteiro repondo o equilíbrio, a confiança e a saúde que a mente devastada defraudou.  

         - Tive conhecimento, ontem, da morte de Alexandre Patrício Gouveia. Conheci-o como se costuma dizer de ginjeira. Era um homem misterioso sob vários aspectos e um crente que eu costumava dizer-lhe ter muitas contas a prestar a Deus. Amante de dinheiro, toda a vida o viu passar pelos dedos e pela vista, um e outra ávidos da abundância de modo a cegarem-no ante a humanidade que habita qualquer ser humano. Ultimamente, talvez para colmatar uma certa falta de cultura, injectou muito dinheiro em Aljubarrota e empenhou-se na Fundação que criou e na certeza de que o irmão que faleceu no desastre aéreo com Francisco Sá Carneiro, foi um crime. Consta que nem uma nota de cinco euros levou consigo. Paz à sua alma. As minhas orações de hoje, são por ele.

         - Vou almoçar e despachar-me para o Dr. Cambeta. Vou necessitar de ajustes na prótese do maxilar inferior e o meu amigo que hoje de manhã está a dar aulas na faculdade, virá depois do almoço ao seu consultório e receber-me-á com a sua generosa prontidão. Creio, contudo, que estes desajustes, têm origem no facto de ele querer ir demasiado depressa (três meses apenas) na aplicação dos implantes definitivos. O médico-cirurgião que colocou os implantes no maxilar superior, precisou de sete meses. Nesse entretanto, com medo de morrer desdentado e cruzar-me com o socialista François Hollande e ouvi-lo morder “mais um pobre desdentado”, pedi muitas vezes que fosse abreviado o tempo, sempre em vão e decerto com razão – tanto o pobre socialista como eu, ainda habitamos esta Terra abençoada por Deus. 


sexta-feira, março 10, 2023

Sexta, 10.

Levantei-me às seis da matina. Tinha aprazado com a minha médica dita de família uma consulta. Cheguei a horas porque o Fertagus, sendo privado, não faz greves. Mal entrei no seu gabinete, disse: “Apreciei a forma como mudou a consulta para hoje que decerto se deveu à greve dos médicos dos Centros de Saúde.” Riu-se e confirmou: “Vocês têm muita sorte em ser avisados!” Como não sou de ficar calado, repostei: “Ainda bem. Mas também penso que esse gesto é prova de civilidade, respeito e direito do utente.” Por fim, após analise aos valores de tensão que lhe levei, quis ela própria medir-me a pulsação. “Então, que tal? – Nem lhe digo. Vamos ver de novo: 18-7,2.” Aqueles valores não condiziam com os que registei nestas últimas duas semanas e afirmei: “Não ligue a isso. A prova que se trata de uma tensão, como direi, psico-somática, de sensibilidade, está no facto de ver os registos que fiz depois de três horas de escrita de manhã e no mesmo dia à tarde.” E concluiu: “Sim, trata-se de uma tensão emocional. Mas aconselho-o a não deixar o medicamento. – Isso é que não prometo.” Quando ia a sair. Disparei: “Sabe, estou inteiramente de acordo com a sua luta. Com um governo de maioria absoluta, dinheiro à tripa-forra, trata-se de incompetência, ideologia a mais, falta de reformas, desleixo, e o resto se verá quando Costa for despedido.” Riu-se e riram-se dois candidatos a médicos que estagiavam no gabinete. Quando cheguei a casa, tinha 12, 9 – 5,7. 

         - Mas claro vi o transtorno dos comboios da CP, as pessoas traziam no rosto o cansaço, o desânimo de tanta perturbação no seu dia-a-dia. Olhei os placards e estava por ali abaixo “suprimido”. Esta foto tirada pelo Público, diz tudo o que a mim me falta em palavras e revolta.  

         - Ontem foi um dia terrível para a Ucrânia. O país foi bombardeado um pouco por todo o seu imenso território com mísseis hipersónicos. Parece que foi a primeira vez que a Federação Russa utiliza estas armas. Morreram pelo menos nove pessoas e os estragos são consideráveis.  

         - Ontem fez um ano que a Maria Luiza nos deixou. Se acrescentar os nossos pais, só eu resto na recordação triste do seu abandono. 


quinta-feira, março 09, 2023

Quinta, 9.

Os consultórios médicos são um arquivo de memórias. Narrou-me outro dia uma médica que um doente, pessoa ilustre do reviralho, que esteve preso na cadeia de Peniche tendo por companheiros Álvaro Cunhal e Mário Soares, entre outros; lhe contou que o futuro Secretário-Geral do PS, recebia mimos alimentares da família como os companheiros. Chegada a hora da refeição, todos partilhavam o que tinha vindo do exterior entre si, Soares ia alambazar-se sozinho num espaço à parte. Sem comentários. 

         - A propósito, ontem fui ao Dr. Cambeta para acertos na prótese. Como toda a operação chegou ao fim e com bons resultados, só lá voltarei daqui a um mês para que o meu ilustre médico veja como se está a portar o casamento entre o maxilar inferior e os implantes (os dois masculinos e cada um tire desde já as suas conclusões...). Vai daí, quando ia a sair, diz-me a sua assistente: “Que pena! O senhor tem sempre conversas tão interessantes quando cá vem...” 

         - Acerca de frases. No comboio ouvi um casal idoso dizer: “A mocidade anda hoje muito estragada.” Exactamente a mesma frase que eu ouvi quando jovem. 

         - Há um relatório que o Público publicou outro dia sobre os Oceanos, onde o cientista Markus Eriksen fala do drama imenso de toneladas de detritos submersos no fundo dos mares. Se é verdade que uma imagem vale por mil palavras, nunca essa ideia fez tanto sentido como esta foto. 

         - A renovação dos principais elementos da gestão da TAP, é outro retrato pungente da governação socialista. A francesa que a dirigiu, e foi despedida como qualquer canalha indecente, vai pôr o Estado em tribunal. A portuguesa que a secretariava e ficou sem um milhão de indemnização, à boa moda portuguesa, conformou-se. Mas o sacristão, contra ventos e marés, mantém-se firme ao leme das Finanças, embora seja a cópia da incompetência do seu capelão. 


quarta-feira, março 08, 2023

Quarta, 8.

Sim, é incompreensível a argumentação da Igreja sobre o destino a dar aos sacerdotes pedófilos. O Patriarca de Lisboa diz que não os pode suspender nem demitir porque isso só o Papa Francisco o poderá fazer. Todavia, a Conferência Episcopal Portuguesa anunciou a retirada das comissões diocesanas de todos os membros do clero. Braga e Évora já cumpriram e afastaram os membros do clero da composição das respectivas comissões. Tudo isto para que as vítimas de abusos sexuais cometidos por membros da Igreja, se sintam mais confortáveis sem os atrozes por perto. Por outro lado, embora concorde que não basta denunciar, é preciso também que os casos cheguem a tribunal para que se apure da veracidade das confissões à Comissão que estudou os abusos e os endemoninhados sejam condenados. Agora que isto abalou a fé e a confiança do católico básico, abalou. A Igreja é um todo, no centro do qual está Deus. Daí que não possamos reduzir a comunidade religiosa a uma mera generalização. Não, não devemos. Há padres que são profundamente a imagem de Cristo e se entregam inteiros aos outros crentes ou não crentes. Depois, fraquezas todos temos e o pecado não é uma abstracção. Se assim fosse, Deus não teria passado pela hedionda dor de ver o seu Filho morto e crucificado na cruz. 

         - Apreciei a sensibilidade da minha médica de família, Dra. Verá Martins, com quem tinha encontro marcado amanhã e venho a saber que os clínicos dos Centros de Saúde estarão em greve quinta-feira. Ela mandou telefonar a desmarcar a consulta para que eu não faltasse ou tivesse problemas, “devido às greves dos comboios”. São pessoas deste quilate que não me fazem descrer do país governado nestes últimos sete anos por um homem que criou um gigantesco interregno. 

         - Os meus serões são a perfeição absoluta. Desligada a televisão depois das notícias, entro num mundo de paz habitado pelo silêncio mais absoluto que sobre a terra cai. As muralhas de livros, cercam-me de vozes que murmuram não só dramas, como clarões de luz. Acoitam-se em torno de mim, a manta sobre os joelhos, a lenha a crepitar na lareira, e segredam-me saberes antigos, comunicam-me sinais tangíveis, espécie de camaradagem quando os escutei nas longas horas de leituras que atravessaram os anos e me formaram naquilo que hoje sou. Dispenso tudo, menos estes buliçosos e serenos amigos, eternizados em páginas que formam catedrais onde de joelhos imploro mais uma centena de anos de vida na sua serena e divina companhia. 

         - Impressionantes manifestações ontem em França contra a reforma Macron que pretende elevá-la para 64 anos (actualmente é de 62). Nós só podemos pedir a reforma aos 66 anos. Vejam a diferença abissal! E no entanto, não há uma manifestação, um murro na mesa, um esgar, nada, absolutamente nada. Somos mansos como cordeiros amestrados. Malham-nos em cima e nós amochamos. Vivemos contentinhos com a vida, não passando de uns pobres desgraçados que gostam que lhes malhem em cima do dorso dobrado. Comparados com os franceses, não existimos enquanto povo vivo. Não é que esteja contra a reforma de Chouchou, mas inquieta-me esta apatia doentia que só acorda para as razões sem razão do futebol típica da nossa natureza.    

         - Acabo de chegar de uma visita ao lar onde se encontra a Teresa Magalhães. Que dizer quando muitos ou poucos anos de vida desaguam num mar de tristeza. Somos aquilo, a morte puxa-nos para o seu lado e só esperamos vencê-la quando, enfim, ficarmos frente a frente com Deus. Dito isto, Marcelo Rebelo de Sousa que lhe outorgou a Ordem do Infante D. Henrique, melhor seria que acompanhasse a condecoração com um qualquer subsídio que lhe permitisse uma velhice com dignidade.  


terça-feira, março 07, 2023

Terça, 7.

A China chama-lhe pré-plano de paz para a Ucrânia, mas nas costas enche de cuidados, conselhos e alguma estima (para não falar de armamento) o ditador russo. Na ONU abstêm-se de tomar partido pela guerra, faz uma política sinistra de relacionamento internacional, vai-se adaptando às circunstâncias sempre de olho nos Estados Unidos. O financiamento para a defesa foi aumentado para os próximos anos, todo o grande país parece estar permanentemente em alerta, em tensão, aguardando o pior. O seu plano de paz é uma no cravo, outra na ferradura. É de desconfiar e obrigar o Ocidente e os EUA a estarem atentos. 

         - O desassossego é constante na vida de hoje. Na Grécia, depois do descarrilamento de um comboio cheio de jovens onde morreram pelo menos quase uma centena, as ruas estão transformadas em campo de batalha. Todos os dias os motins com a polícia leva às prisões quantidades de manifestantes revoltados. Nada funciona lá como cá. Governos impreparados, loucos pelo poder, obcecados por ideologias que não se ajustam nem aos cidadãos nem à vida moderna, alteram o funcionamento cordato e solidário da convivência comum. Há uma corrida vertiginosa para o abismo, mas ninguém parece ter consciência disso. Ventos anabólicos varrem tudo à sua frente, levantam poeiras ideológicas que alucinam, perturbam as mentes e lançam na inquietação toda a terra e desgraçam a vida a toda a gente; que importa se uns quantos puderem impor pela força contra milhares de milhares de trabalhadores, puros, que ganham a vida com suor sangue e lágrimas, e não são chamados para nada que lhes diga directamente respeito. São escravos às mãos de autócratas sanguinários disseminados por todo o lado: empresas, sindicatos, associações, clubes, parlamentos, etc. e etc. 

         - Lá está. Temos mais dias de greves decretados pelos barões e marqueses da CP. Eu, que não sou como as meninas queques do BE que só se enfiam nos comboios com as câmaras de televisão atrás, vejo e sinto o pulsar da população simples e trabalhadora. Anda de rastos, não consegue chegar a horas ao trabalho, algumas e alguns ouço-as dizer que os patrões descontam os dias e os atrasos, e naquela aflição acodem aos filhos, aos maridos, pais e avós. Lá atrás, sentados nas poltronas do poder, estão aqueles que, ganhando muitíssimo mais que aqueles que forçam ao transtorno dos dias, dominados pelo poder e as ideologias assassinas, indiferentes à atarantação de vidas, impõem o que outros mais fortes que eles os abrigam a infligir. É uma cadeia bárbara que a democracia consente. Infelizmente. 

         - A dama que valia meio milhão de euros, passou a valer uns patacos. De nada nos vale barafustar contra a maioria, como diz o chefe temos de o gramar. Os nossos impostos que não param de subir, são sempre pouco para as loucuras ideológicas que socialistas e comunistas insistem em impor e só prejudicam quem delas não pode fugir. A TAP é a radiografia perfeita da passagem do socialismo pelas nossas vidas. Está nela o despudor, a incompetência, a choldra, o abuso de poder, o aproveitamento de muitos, o clientelismo, a imposição do partido no exercício governativo, os roubos, as leis feitas para não serem aplicadas, o dinheiro gasto de qualquer maneira porque não tem nenhum valor para eles, a opulência novo-rico, as negociatas entre camaradas, a desorganização social, a fenda profunda entre ricos e pobres, o descaramento, a ignorância, o salve-se quem puder...  


segunda-feira, março 06, 2023

Segunda, 6.

Comprei o Público de ontem que é de antologia. O jornal tem por hábito convidar uma das ditas figuras públicas para compor a edição aniversariante (33º ano). Este número coube ao artista chinês Ai Weiwei que vive no Alentejo, suficientemente longe da China por motivos óbvios. O resultado é simultaneamente uma obra de arte, um arrojo de paginação, um grito de liberdade, um olhar intenso sobre o mundo, isto é, a Vida e a Morte com que abre o maravilhoso exemplar que vou guardar para a posteridade. Nenhum outro director depois de Vicente Jorge Silva foi tão visionário, tão criativo, tão moderno. Caro Weiwei, não deixe este país e diga-nos em voz sonante e sem temores, o que se esconde no horizonte hoje já pouco misterioso do Extremo Oriente, onde falta o essencial à vida – a liberdade. 

         - Com o João Corregedor, depois daquele insano almoço, de cada vez que nos encontramos, há como que um distanciamento visceral, automático que me leva a estar de atalaia às directrizes politicas a que o seu extremismo conduz. Todavia, o homem é bondoso, atento aos amigos, disponível para lhes aligeirar os sofrimentos, com méritos bastastes para acolher a minha simpatia. Ele ocupa-se do nosso grupo, telefona a este e àquele, quando sabe que algum de nós está a passar por qualquer problema, aparece, intensifica o relacionamento, está livre e inteiro para a solidariedade. Um exemplo. Ontem à noite telefonou-me a dar notícia que tinha entrado em contacto com o Guilherme Parente, há muito perdido em Guimarães por causa dos problemas de saúde do filho; informou-me que entrou em contacto com o Carlos Soares (que eu lhe tinha dito estar a atravessar um momento menos bom), e forçou-o a fazer os exames que os médicos lhe aconselharam; marcou para quarta-feira uma visita ao lar onde se encontra a Teresa Magalhães e onde ele já esteve uma vez; vai marcar almoço com o Vergílio e nós outros, Guilherme incluído. Este homem não abandona ninguém e no entanto é ateu, embora perdido no seio de uma família de crentes. É a contradição em pessoa, mesmo ao nível filosófico marxista-leninista onde está no trono. Todo o seu estilo de vida foi combatido por Karl Marx e Lenine – os seus deuses.  

         - Fui esta manhã a Setúbal ouvir o meu velho amigo Carlos Barbosa, a dissertar sobre o seu trabalho à frente do ACP. O homem é hábil à moda dos políticos, dominou uma vasta plateia de velhos e saiu daquilo tudo incólume. Abraçámo-nos e eu ia a sair, quando ele vem para mim pedindo-me que ficasse na fotografia de família. Bom. Dali desci à Baixa da cidade, e fui fazer um passeio pedestre debaixo de chuva miudinha pela Luísa Todi. Que beleza de zona, que singular cidade cheia de cafés e restaurantes simpáticos, onde apetece ficar horas a sentir o marulhar manso das ruas e o rumor da chuva nas costas do nosso encantamento!

         - “Todas as câmaras do país estão falidas” – disse a dada altura o presidente do Automóvel Clube de Portugal. Se assim é, quem, que sector, instituto, academia, hospital ou escola tem saldo positivo? Duvido de algum. Num país onde toda a gente vive acima das suas posses, a começar pelo Estado, pedinchar não é problema e a pobreza até é alegre.   


domingo, março 05, 2023

Domingo, 5. 

Negligenciei a vinda aqui por laxismo, cansaço das palavras, monotonia grosseira da nossa vida colectiva e dispersão. A escrita necessita de concentração, solidão, horizontes fechados, cabeça limpa e vivência paralela entre dois mundos opostos: o da realidade e o da fantasia. Retomemos, portanto, para meu equilíbrio ainda que o mundo e o nosso país não sejam lugares onde apeteça viver e criar. Falemos de nós, o mesmo é dizer falar de mim, pois este diário não é mais que uma permanente interrogação de mim para mim, com os olhares quotidianos de uns quantos leitores que me admira encontrarem nestas linhas algum interesse.

         - A radiografia da nossa realidade política é surpreendente, embora, conhecendo como julgo conhecer os comparsas que nela actuam ainda assim, alguns conseguem surpreender-me. É o caso daquele pobre homem que na Assembleia apontou os chifres à oposição. Manuel Pinho, antigo ministro da Economia, negou a semana passada  ter praticado crimes de corrupção, embora assuma, no Requerimento de Abertura de Instrução (RAI),que cometeu “ao longo de vários anos, crimes de fraude fiscal, tendo embarcado num esquema global dentro do Grupo Espírito Santo (GES), em que os pagamentos de parte das remunerações e de prémios eram feitos por fora, inclusive para offshores”. Claro que não é de maneira nenhuma um caso isolado. A podridão está por todo o lado, e não é por acaso que estamos entre os países mais corruptos, não direi do mundo, mas da Europa. 

         - A guerra, entretanto, não parou. Conheceram-se os números odientos com 60 a 70 mil soldados russos mortos em combate. Curiosamente, nada se sabe dos que faleceram do lado ucraniano. Como em qualquer guerra não há anjos da guarda, imagino que o número não deve andar muito distante, não digo entre miliares, mas estes mais os civis. Uma outra sondagem aponta para o total de baixas russas, incluindo militares mortos, feridos e desaparecidos, entre os 200 mil e os 250 mil. Contudo, os números nesta situação, valem o que valem. Mas há mais: este valor ultrapassa o número de militares russos em todos os conflitos que envolveram a Rússia e a União Soviética desde o final da II Guerra Mundial; destacando-se a invasão do Afeganistão, entre 1979 e 1989, em que morreram entre 14 mil e 16 mil soviéticos, e as duas guerras na Tchetchénia, entre 1994 e 1996, e entre 1999 e 2009, onde morreram entre 12 mil e 25 mil militares russos (A este propósito, conselho a leitura de Um Diário Russo de Anna Politkovskaya, ed. Círculo dos Leitores). Os autores do estudo, também incluíram nos cálculos os cerca de sete mil mortos durante os oito anos de guerra no Donbass, embora a Rússia negue participação directa nesse conflito. 

         - Por cá o Governo deixou cair referendo à regionalização por, segundo diz, falta de apoio do PSD. Tenho qualquer coisa a dizer sobre o assunto, mas acontece que vou ter que me despachar para um almoço em casa da tia Júlia. Ficará para depois. 


quinta-feira, março 02, 2023

Quinta, 2.

Tenho a sensação que há qualquer coisa que se está a instalar apoiada nos trabalhadores hospitalares, nos professores, nos ferroviários e em muitas outras actividades fundamentais para a convivência democrática. Nestes últimos três meses, sob a bandeira da guerra na Ucrânia, há mão totalitária que quer impor o derrube da democracia e a instauração de uma qualquer forma de ditadura. As greves selvagens são a isca, a anarquia e a revolta completam o cenário e dão o mote para que o povo aceite a ordem pública que nos quiserem impor. O político que Costa diz ser, anda demasiado ocupado com a sua imagem lá fora e cá dentro e não se dá conta do estado em que se encontra o país. O Chefe do Estado prossegue na sua linha apaziguadora que não leva a parte nenhuma. As sombras adensam-se, mas ele, primeiro-ministro, optou pelo lado do sol. 

         - Esta manhã, fui cedo para a estação a fim de chegar a Lisboa às onze horas ao encontro do Dr. Cambeta com quem tinha consulta médica aprazada. No ecrã da gare, vejo que todos os comboios tinham sido suprimidos e a atarantação das centenas de pessoas, na sua maioria trabalhadores honestos e cumpridores, fazia pena. Estavam literalmente abandonados à sua sorte, revoltados, sem saber o que fazer porque respostas não as havia por parte da funcionária da Fertagus e só o plasma respondia sem responder às suas perguntas. Ontem, vim num comboio sobrelotado. Os passageiros eram tantos, que montaram as discussões e o salve-se quem puder. Por pouco não houve violência. O mesmo não se passou na linha de Sintra, onde o gado em forma de gente era tal, que alguém puxou o manípulo SOS duma carruagem e a locomotiva foi parar a não seis quantos metros da estação, uma passageira foi conduzida ao hospital. Os barões e marqueses das Infra-Estruturas que ganham entre 2 mil e 3 mil euros/mês, podem continuar as paralisações pelo tempo que lhes aprouver, porque o sindicato capitalista assegura-lhes o salário. Eles estão-se nas tintas para a população pobre que não pode fazer greves de luxo, precisa do ganha-pão diário e vive num inferno de vida por sua causa. Diz João Miguel Tavares no Público de hoje, que esta malta, tem entre eles, pelo menos, 15 sindicatos!!! Agora imaginem o pobre ministro das Infra-estruturas, já de si fracote e sem experiência e demasiado encostado ao partido, à mesa das conversações com estes matulões todos em redor!  


quarta-feira, março 01, 2023

Quarta, 1 de Março. 

Ontem fui como um trangalhadanças a Lisboa. O objectivo era uma consulta no velho Gama Pinto. Acontece que os marqueses da CP prosseguiam a greve, nas tintas para o enxovalho dos passageiros. Perdi o primeiro Fertagus, não por culpa deste, mas por mor dos doutores das infra-estruturas dos comboios que deviam ser de Portugal mas são eles os seus donos. Chego, portanto, atrasadíssimo ao hospital. Felizmente não sou o único a avaliar pelo que ouço na recepção. Bref. Há quinze anos que lá não punha os pés, embora tivesse encontrado algumas melhorias logísticas, todo o edifício é uma múmia respeitável. Entramos na Segunda Grande Guerra e no centro do salazarismo. Por aqui e por ali rabiam sombras, abatem-se apreensões, somos levados pelas memórias que ficaram dos escombros de um período sinistro. Sentamo-nos em cadeiras de pau, ao gosto do ditador, o chão é de lajedo de cor incerta, as portas de abano, os corredores de susto, as salas de espera desconfortáveis e frias onde se amontoam os cadáveres dançantes de um mundo pobre e nobre. As assistentes chegaram naquele momento da frente de combate, têm ainda o cansaço e o horror pegados ao rosto duro. São lassas e gastas às primeiras horas da manhã; ouvem-nos sem verdadeiramente nos escutarem, fazem o seu trabalho tocadas pela indiferença que orienta o funcionamento de toda a estrutura. São gordas, com aquela massa de gordura vinda da infância pobre, aquele ar aperaltado ao gosto pequeno-burguês que despegou há muito da realidade. Falam alto, exprimem-se com autoridade, quase não nos olham, de quando em vez assoma uma espécie esquecida de bondade, que está a mais, por arribar desconchavada e tarde quando o universo em redor se rendeu já à humilhação. Sento-me perto de uma janela larga e alta, coberta por uma tela azul-escura e aguardo que me chamem para a consulta. Diante de mim não tenho, felizmente, nenhum aparelho de televisão como os que se encontram nos hospitais privados, mas um ecrã que não pára um segundo de chamar ao balcão 1 e 2 os pacientes para os mais diversos tratamentos. A sala pequena e levantada de uma espécie de hall, está sarapantada. Ninguém parece compreender por que ali está, paira no ar uma atarantação incompreensível. Muitos velhos e muitos novos que isto dos olhos toca a todos. Contudo, o maior movimento, vem da porta que tenho ao meu lado direito e é de correr. Gira para a direita e nós entramos num espaço onde temos duas outras portas que indicam os wc para as mulheres e para os homens. Depois de três horas de espera, fui tentado a entrar naquele santuário de horrores. Recuso-me a descrever o que vi, adiantando apenas que decerto lá fora tinha ocorrido um qualquer combate e o nervosismo era tanto que os soldados de ambos os sexos entraram e saíram esgazeados naquele refúgio imundo. Perto da uma da tarde, ouvi, enfim, pelo altifalante chamar pelo meu nome. Dirijo-me à porta de onde julgo ter vindo a voz feminina, carrego num botão, e esta abre-se por magia, reinstalando-me de súbito no presente e não na tenebrosa realidade dos anos 1939-1944. Avanço às escuras por pequeno corredor e vejo-me às atarantas num espaço escuro à procura do gabinete número 5. É uma doente que me diz onde fica o gabinete da doutora de oftalmologia. Entro e volto aos anos 40. Começo a questionar-me se a minha saúde mental está intacta. Tão depressa estou numa época como noutra. Nada bate certo na minha mente mal preparada para tanta dolorosa mudança. Sou recebido por uma médica a quem eu horas antes havia perguntado no longo corredor da entrada aonde me dirigir. “Feliz coincidência”, digo para estabelecer um bom convívio. Ela não chega a sorrir; apenas o seu semblante coberto de longos cabelos já esbranquiçados esboça uma qualquer máscara que se assemelha a um cumprimento. O consultório é de uma pobreza franciscana, Salazar anda por ali, “pobrezinhos, mas honrados”. Sento-me na cadeira que deve ter vindo directamente de S. Bento, o S. Bento do beato António, nada a ver com o presente que até piscina possui e toda a decoração foi feita a pensar na Sala Oval, “democratas e novos-ricos”. Já tenho o traseiro dorido de estar tantas horas abancado por aqui e por ali em cadeiras desconfortáveis, feitas para pobres que têm por obrigação tudo suportar. Ainda dizem que Portugal mudou muito. “Então o que sente?”, pergunta-me já de dedos preparados no computador. Digo-lhe que quero saber a razão pela qual fecho o olho direito de cada vez que me sento ao computador e quando há luz excessiva na rua. Segue-se uma série de perguntas de carácter geral sobre a minha saúde, medicamentos que tomo, etc. Como nada tenho a registar nesse domínio, sou convidado a sentar-me noutra cadeira de pau duro e assestar o olhar na máquina que irá revelar-lhe os encantos e tristezas dos meus olhos. O exame é minucioso, há classe na médica, o seu saber e sensibilidade reflete-se na forma como pesquisa, anota, conclui. Sinto-a indecisa, qualquer coisa lhe escapa. Depois diz-me: “Vou fazer uma pesquisa mais profunda e para isso a enfermeira vai pôr-lhe umas gotas para dilatar as pupilas.” Sigo dali para o gabinete em frente onde está uma rapariga gira e desenvolta que me diz ir aplicar o mínimo de líquido para o estudo da médica. Entrou a droga e eu sou aconselhado a aguardar na entrada dos gabinetes 2 e 5 noutra cadeira de costas hirtas de “forma a que aos empregados não lhe dêem ao sono” como diz Franco Nogueira na sua história sobre o Estado Novo que Salazar exigia. Daí a alguns minutos, entro noutra dimensão que me permite ver o médico gordo, tão gordo que me parece uma mulher grávida, outra colega velhota e doce que se aparenta com a minha avó Emília, e um médico (o do gabinete 2) saltitante como se eu estivesse sentado num sofá confortável do Teatro Dona Maria a assistir a um bailado. O homem não terá trinta anos (inverosímil porque já formado e em actividade), de calças creme tão justas que se lhe vê o recorte do corpo. Pena que o rosto seja vulgar e todo ele para o baixote, porque a sua passagem pelo hall em pontas, sugeriu-me um Nureyev envolto numa nuvem niveladora das minhas delirantes fantasias. Em verdade porém, à medida que o efeito das gotas ia passando, os recônditos cantos do edifício, iam abrindo o ângulo miserável e pelintra onde estou sentado a aguardar que a minha clínica me chame. Estou eu e uma senhora de meia-idade, e nas cadeiras do outro lado, dois homens tipicamente portugueses, gordos e carecas, baixos e bigodaços que entretanto haviam entrado vindos da algazarra do átrio principal e a enfermeira obrigou a colocar a máscara. Entre os dois, a minha médica chama-me. O odor que agora se instalou não me agrada e penso que ela percebeu porque abriu ligeiramente a janela alta aberta na parede vertical a fugir para o telhado. Volto à cadeira onde a máquina me espera para uma enfiada de exames de uma minúcia que me impressionou. De regresso ao assento inicial, ouço as descobertas e as confirmações: “O senhor tem ainda 80% de visão o que é muito bom (ela evitou dizer para a minha idade); não encontrei lesão de qualquer tipo no conjunto ocular e vou pedir para que façam um exame pois detectei que tem um ligeiro estrabismo no olho direito e quero ver em pormenor o que se passa (facto já meu conhecido). À parte isso, não vejo nenhum problema, nem tem precisão de mudar de óculos. Todavia, se tiver um momento sem visão ou vir coisas luminosas, vai imediatamente às urgências do hospital.” Inquieto-me com o que ouço e peço explicação, ela não ma dá remetendo para a altura do resultado ao exame que solicitou. Saio já passa das duas da tarde num táxi direitinho ao restaurante do Corte Inglês onde sacio  a minha (não digo fome) vontade de comer.  

         - A vitória por maioria de António Costa, foi a derrota de todos nós. 

         - A Piedade andou aí toda a manhã a podar as hortênsias, enquanto eu terminei o trabalho de expurgar na parte de trás da casa a erva ruim. De seguida fui fazer meia hora de natação, voltei para almoçar e reler 20 páginas de Green (terceiro volume). 

         - Esta actividade, encobre uma profunda nostalgia que me vem do fundo cavado do céu. O meu cérebro pensa nos circuitos tangíveis da morte. Sinto que a vetustez se aproxima a passos largos e tenho ainda um mundo imenso por descobrir. Queria abrir todas as portas e janelas e deixar entrar a loucura aprisionada que a velhice dita serena esconde.