quarta-feira, março 01, 2023

Quarta, 1 de Março. 

Ontem fui como um trangalhadanças a Lisboa. O objectivo era uma consulta no velho Gama Pinto. Acontece que os marqueses da CP prosseguiam a greve, nas tintas para o enxovalho dos passageiros. Perdi o primeiro Fertagus, não por culpa deste, mas por mor dos doutores das infra-estruturas dos comboios que deviam ser de Portugal mas são eles os seus donos. Chego, portanto, atrasadíssimo ao hospital. Felizmente não sou o único a avaliar pelo que ouço na recepção. Bref. Há quinze anos que lá não punha os pés, embora tivesse encontrado algumas melhorias logísticas, todo o edifício é uma múmia respeitável. Entramos na Segunda Grande Guerra e no centro do salazarismo. Por aqui e por ali rabiam sombras, abatem-se apreensões, somos levados pelas memórias que ficaram dos escombros de um período sinistro. Sentamo-nos em cadeiras de pau, ao gosto do ditador, o chão é de lajedo de cor incerta, as portas de abano, os corredores de susto, as salas de espera desconfortáveis e frias onde se amontoam os cadáveres dançantes de um mundo pobre e nobre. As assistentes chegaram naquele momento da frente de combate, têm ainda o cansaço e o horror pegados ao rosto duro. São lassas e gastas às primeiras horas da manhã; ouvem-nos sem verdadeiramente nos escutarem, fazem o seu trabalho tocadas pela indiferença que orienta o funcionamento de toda a estrutura. São gordas, com aquela massa de gordura vinda da infância pobre, aquele ar aperaltado ao gosto pequeno-burguês que despegou há muito da realidade. Falam alto, exprimem-se com autoridade, quase não nos olham, de quando em vez assoma uma espécie esquecida de bondade, que está a mais, por arribar desconchavada e tarde quando o universo em redor se rendeu já à humilhação. Sento-me perto de uma janela larga e alta, coberta por uma tela azul-escura e aguardo que me chamem para a consulta. Diante de mim não tenho, felizmente, nenhum aparelho de televisão como os que se encontram nos hospitais privados, mas um ecrã que não pára um segundo de chamar ao balcão 1 e 2 os pacientes para os mais diversos tratamentos. A sala pequena e levantada de uma espécie de hall, está sarapantada. Ninguém parece compreender por que ali está, paira no ar uma atarantação incompreensível. Muitos velhos e muitos novos que isto dos olhos toca a todos. Contudo, o maior movimento, vem da porta que tenho ao meu lado direito e é de correr. Gira para a direita e nós entramos num espaço onde temos duas outras portas que indicam os wc para as mulheres e para os homens. Depois de três horas de espera, fui tentado a entrar naquele santuário de horrores. Recuso-me a descrever o que vi, adiantando apenas que decerto lá fora tinha ocorrido um qualquer combate e o nervosismo era tanto que os soldados de ambos os sexos entraram e saíram esgazeados naquele refúgio imundo. Perto da uma da tarde, ouvi, enfim, pelo altifalante chamar pelo meu nome. Dirijo-me à porta de onde julgo ter vindo a voz feminina, carrego num botão, e esta abre-se por magia, reinstalando-me de súbito no presente e não na tenebrosa realidade dos anos 1939-1944. Avanço às escuras por pequeno corredor e vejo-me às atarantas num espaço escuro à procura do gabinete número 5. É uma doente que me diz onde fica o gabinete da doutora de oftalmologia. Entro e volto aos anos 40. Começo a questionar-me se a minha saúde mental está intacta. Tão depressa estou numa época como noutra. Nada bate certo na minha mente mal preparada para tanta dolorosa mudança. Sou recebido por uma médica a quem eu horas antes havia perguntado no longo corredor da entrada aonde me dirigir. “Feliz coincidência”, digo para estabelecer um bom convívio. Ela não chega a sorrir; apenas o seu semblante coberto de longos cabelos já esbranquiçados esboça uma qualquer máscara que se assemelha a um cumprimento. O consultório é de uma pobreza franciscana, Salazar anda por ali, “pobrezinhos, mas honrados”. Sento-me na cadeira que deve ter vindo directamente de S. Bento, o S. Bento do beato António, nada a ver com o presente que até piscina possui e toda a decoração foi feita a pensar na Sala Oval, “democratas e novos-ricos”. Já tenho o traseiro dorido de estar tantas horas abancado por aqui e por ali em cadeiras desconfortáveis, feitas para pobres que têm por obrigação tudo suportar. Ainda dizem que Portugal mudou muito. “Então o que sente?”, pergunta-me já de dedos preparados no computador. Digo-lhe que quero saber a razão pela qual fecho o olho direito de cada vez que me sento ao computador e quando há luz excessiva na rua. Segue-se uma série de perguntas de carácter geral sobre a minha saúde, medicamentos que tomo, etc. Como nada tenho a registar nesse domínio, sou convidado a sentar-me noutra cadeira de pau duro e assestar o olhar na máquina que irá revelar-lhe os encantos e tristezas dos meus olhos. O exame é minucioso, há classe na médica, o seu saber e sensibilidade reflete-se na forma como pesquisa, anota, conclui. Sinto-a indecisa, qualquer coisa lhe escapa. Depois diz-me: “Vou fazer uma pesquisa mais profunda e para isso a enfermeira vai pôr-lhe umas gotas para dilatar as pupilas.” Sigo dali para o gabinete em frente onde está uma rapariga gira e desenvolta que me diz ir aplicar o mínimo de líquido para o estudo da médica. Entrou a droga e eu sou aconselhado a aguardar na entrada dos gabinetes 2 e 5 noutra cadeira de costas hirtas de “forma a que aos empregados não lhe dêem ao sono” como diz Franco Nogueira na sua história sobre o Estado Novo que Salazar exigia. Daí a alguns minutos, entro noutra dimensão que me permite ver o médico gordo, tão gordo que me parece uma mulher grávida, outra colega velhota e doce que se aparenta com a minha avó Emília, e um médico (o do gabinete 2) saltitante como se eu estivesse sentado num sofá confortável do Teatro Dona Maria a assistir a um bailado. O homem não terá trinta anos (inverosímil porque já formado e em actividade), de calças creme tão justas que se lhe vê o recorte do corpo. Pena que o rosto seja vulgar e todo ele para o baixote, porque a sua passagem pelo hall em pontas, sugeriu-me um Nureyev envolto numa nuvem niveladora das minhas delirantes fantasias. Em verdade porém, à medida que o efeito das gotas ia passando, os recônditos cantos do edifício, iam abrindo o ângulo miserável e pelintra onde estou sentado a aguardar que a minha clínica me chame. Estou eu e uma senhora de meia-idade, e nas cadeiras do outro lado, dois homens tipicamente portugueses, gordos e carecas, baixos e bigodaços que entretanto haviam entrado vindos da algazarra do átrio principal e a enfermeira obrigou a colocar a máscara. Entre os dois, a minha médica chama-me. O odor que agora se instalou não me agrada e penso que ela percebeu porque abriu ligeiramente a janela alta aberta na parede vertical a fugir para o telhado. Volto à cadeira onde a máquina me espera para uma enfiada de exames de uma minúcia que me impressionou. De regresso ao assento inicial, ouço as descobertas e as confirmações: “O senhor tem ainda 80% de visão o que é muito bom (ela evitou dizer para a minha idade); não encontrei lesão de qualquer tipo no conjunto ocular e vou pedir para que façam um exame pois detectei que tem um ligeiro estrabismo no olho direito e quero ver em pormenor o que se passa (facto já meu conhecido). À parte isso, não vejo nenhum problema, nem tem precisão de mudar de óculos. Todavia, se tiver um momento sem visão ou vir coisas luminosas, vai imediatamente às urgências do hospital.” Inquieto-me com o que ouço e peço explicação, ela não ma dá remetendo para a altura do resultado ao exame que solicitou. Saio já passa das duas da tarde num táxi direitinho ao restaurante do Corte Inglês onde sacio  a minha (não digo fome) vontade de comer.  

         - A vitória por maioria de António Costa, foi a derrota de todos nós. 

         - A Piedade andou aí toda a manhã a podar as hortênsias, enquanto eu terminei o trabalho de expurgar na parte de trás da casa a erva ruim. De seguida fui fazer meia hora de natação, voltei para almoçar e reler 20 páginas de Green (terceiro volume). 

         - Esta actividade, encobre uma profunda nostalgia que me vem do fundo cavado do céu. O meu cérebro pensa nos circuitos tangíveis da morte. Sinto que a vetustez se aproxima a passos largos e tenho ainda um mundo imenso por descobrir. Queria abrir todas as portas e janelas e deixar entrar a loucura aprisionada que a velhice dita serena esconde.