sexta-feira, março 31, 2023

Sexta, 31. 

Outro dia o André, filho dos Coutos, fez, julgo, 40 anos. Telefonei-lhe e ficámos ao telefone um bom tempo à conversa. Foi quando ele me disse da influência que eu tive sobre a sua personalidade e formação. Não deixei de lhe mostrar a minha admiração pelo que ouvia e ele respondeu que só quando cresceu se deu conta do facto. Acontece que o André, sendo filho único, foi educado como um príncipe e, por isso, eu o batizei de “príncipe André”. Só que este aristocrata deu em socialista, facto que eu perdoo tendo em conta a raiz sã e honrada de onde ele proveio. Aquele trio, é cada um individualmente e depois o conjunto, gente de boa cepa que também a mim me tem amparado e estado presente nos momentos bons e maus que atravessei. 

         - Este facto, porém, leva-me para outras paragens. Tal afirmação ouvia (e ouço) dos amores que atravessaram a minha vida. A influência nos gostos, na forma de viver, de estar nela, na matéria cultural e na aventura das viagens, na descoberta de novos restaurantes e museus, vilas e aldeias, parece que ficou a pairar na memória como um anjo de asas brancas enchendo os seus dias de fantasia. Para não ir mais longe, penso nos leitores que por vezes me escrevem apontando nesse mesmo sentido o quotidiano aqui narrado, que parece merecer-lhes algum toque de loucura que sobrepuja os seus dias arrastados por estes apontamentos. Não há muito, uma leitora dizia-me que tem precisão de me ler diariamente. É por ela e por todos que me esforço por aqui vir piscar o olho a quem do outro lado se quer irmanar com um pobre coitado que abraça a solidão e faz dela dias inteiros e únicos da sua existência terrena. 

          - A Maria José bateu-me ao ferrolho a desafiar-me para um almoço. Embora esteja nas lonas, não resisti e fomos ao Pérola da Serra. Há alguns anos que lá não ia, e o que vi desiludiu-me a começar pela decoração e a acabar nos preços. Noutros tempos, levava lá os amigos e muitos foram: os Amados, Isabel da Nóbrega e Saramago, Lagoa Henriques e o namorado, os Coutos, Sebastião Fortuna, António Carlos, Borges Coelho, amigos estrangeiros, e tanta outra gente. Nesse tempo, o interior era simples, o peixe fresco, a clientela típica daqui, havia fila lá fora, a animação era mais que muita, o preço abordável. Hoje o interior é novo-rico, vulgar, com as cores escuras da moda, o espaço reduziu, e só se come por marcação. Este chique da nova clientela saloia, está em consonância com a arribação por estas paragens de gente sem qualidade, que faz a vida citadina que antes levava em Lisboa, come alarvemente, fala alto, exibe os maxilares já com cavernas, e parece achar-se num santuário construído para os privilegiados que eles são. Abrenúncio! 

         - Por todo o lado encontro o rosto do fim, é o resultado de se viver um pouco mais. Ontem no Centro de Saúde, deparei com Sérgio Godinho e um homem por metade da sua altura, amparado a um andarilho. Fomos vizinhos anos, ele a morar na Rua de S. Bento, eu na São Marçal. O homem que vim a saber ser seu irmão, não consegue dobrar os  joelhos e, quando se atirou (literalmente) para a cadeira, levantei-me de rompante porque pensei que ele ia a cair desamparado no chão. Acode o músico a agradecer-me e diz-me que é assim que ele consegue sentar-se. Bom. Sou entretanto chamado ao consultório da Dra. Vera Martins, e ao sair ouço o cantor a dizer que vai pedir ajuda à médica para o irmão. Ofereço-me e os dois, puxando os braços do infeliz, conseguimos pô-lo de pé e pela minha parte só quando o senti sólido agarrado à barra do andarilho, me despedi. Godinho, estando melhor, também já se nota problemas de locomoção. Disse-me que mudou de morada e vive agora na Alvares Cabral. Enfim, sem que isso me contente, acabamos todos a coxear. Se ao menos isso atrasasse a entrada na morte...