segunda-feira, março 20, 2023

Segunda, 20.

Vladimir Putin, desafiando o TPI, esteve de visita à Crimeia e depois a Mariupol, no Donbass, a leste da Ucrânia. Hoje recebeu o líder da China e como dois amigos conversam, bebem e estreitam relações, mostrando ao mundo a sua unidade e indiferença às vidas humanas e à destruição que levam a cabo na Ucrânia. Les beaux dictateurs se reencontre ontem como hoje.


         - Fui ver o filme Ennio, o Maestro. Trata-se do mesmo género de argumento e realização daqueloutro que vi há um mês sobre o prémio Nobel da Literatura do ano passado, Annie Hernaux. Ennio Morricone foi um génio que o mundo levou tempo a reconhecer, porque tinha uma personalidade pouco dada ao exibicionismo e à importância que os media gostam de construir e desconstruir. Grande trabalhador, profundamente poderoso e sensível, levou a vida a encher filmes com música de uma construção que passava para lá do suporte cinematográfico que esteve na sua génese. Dizia-se durante várias décadas, que aquela música não tinha o saber e a profundidade da música clássica escutada nas grandes catedrais góticas da naftalina e da pose. Morricone sofreu com isso, mas não deixou nunca de compor a música que, como dizia a filha, “era o diálogo do filme”. E de facto, quando escutamos a sonorização de filmes como Cinema Paraíso, os grandes westerns, Os Oito Odiados, A Missão e tantos outros, centenas mais, estamos ante uma música sinfónica de verdade, que enriqueceu filmes, dando força e ritmos, consistência e verdade a imagens que sem ela passeariam no ecrã sem a beleza e a energia estética que a sua música imprimiu a cada cena. A tal ponto que o rock e o folk se aproveitaram e se arrastam ainda hoje na cauda de um artista ímpar, que viveu de a para a música como Bach, Mozart ou Beethoven. Quem não se lembra das canções de Joan Baez, daquela empolgante música do filme Sacco e Vanzetti  Here's to You ou da nossa Dulce Pontes. (Vou ver se tenho ali o disco da extraordinária composição.)   

         - Voltei para casa já a noite raiava na cidade e no campo, ao chegar, o céu estrelado imprimia na terra doçura terna, próxima do Paraíso, banhada do silêncio que nos aproxima da presença divina. Contrariamente ao que imaginava, sendo domingo, o comboio veio a abarrotar de gente apinocada. Não eram ainda os nocturnos do passado, era uma massa de gente indefinida, que eu não conhecia por estas bandas, entre o rústico e o citadino, com cheiros de tudo, agradáveis e horríveis, cobertos com fatiotas domingueiras de tendências primaveris. Grosso modo, não havia beleza que os meus olhos tivessem captado. Somos giros e íntegros nos físicos sólidos e expressões provincianas puras, quando nos destacamos da multidão pela originalidade e os restos do português de antanho, belos como as rochas milenárias, secretos como o disfarce de um segredo. 

         - Passei a manhã às voltas pela zona árabe de Setúbal. De nariz no ar à procura de casas que vendessem as tintas (falta-me o vermelho) que o John pretende para pintar a janela da biblioteca, calcorreei para cima de uma hora ruelas estreitas, becos e pátios, todo o traçado magnífico e ainda humano que faz com que a cidade se conserve genuína e agradável onde apetece viver. Depois, satisfeito com a compra, sentei-me numa esplanada a beber café com pastel de nata. Esplanadas não faltam por todo o lado e aquela animação familiar onde todos se conhecem, vive nos espaços públicos como se estes fossem os interiores das casas antigas de cada sadino. Queria tanto que o tempo se quedasse através do remoinho de recordações que vieram ao meu encontro! Ter vida é isto, é viver dentro e fora do tempo-lugar, do tempo-circunstância, abraçar com a memória o tempo ido e o presente, como se um fizesse parte do outro e dois fossem o futuro que se abre lisonjeiro e feliz. O solstício da Primavera acampou por todo o lado, chegou do fundo do calendário com um bouquet de flores perfumadas que todos exibiam na lapela dos casacos que ninguém vestia. Todavia, suspenso no ar, havia um cheiro fresco, subtil; cheirava a sol, a terra, a mar, e em cada rosto abria-se um sorriso infantil que nos tolhia de satisfação.