segunda-feira, janeiro 31, 2022

Segunda, 31.

Ontem estive tão absorvido com o espectáculo de música clássica (Franz Schubert) no ARTE, que não me deu para ver a “festa da democracia”. Mas li hoje jornais, falei ao telefone com amigos, vi excertos dos noticiários e na Internet espreitei este e aquele matutino. Toda a gente bota discurso, dá opinião, desfaz cálculos estatísticos, defende as suas cores partidárias, cáustica uns e defende outros, que até eu que estive a leste do carnaval me permito dar opinião. Posso? Hoje, não. Fica para depois. Contudo, deixem-me desabafar: estou ufano com a saída pelos fundos da História das meninas tagarelas do BE e do alívio imposto pela abrangência hegemónica da esquerda. Estava tão farto dessa gente! (Para mim o PS não é de esquerda é, quando muito, social democrata.) 

         - Porque a minha preocupação maior vai para o que se passa às portas da Europa com os 100 mil soldados russos em manobras provocatórias na fronteira com a Ucrânia. Aquilo é francamente trágico e põe em risco tratados acordados entre o Oriente e o Ocidente, Estados Unidos e a Europa. Quem acerta na mouche, é Teresa de Sousa ao declarar que “Putin não teme a Ucrânia nem sequer as forças da NATO instaladas nos países europeus da aliança, cuja presença é apenas defensiva e dissuasora. Teme, acima de tudo, ver a Rússia rodeada de democracias por todos os lados”. Gregory Mitrovich compara o erro em que está a cair Putin, com o cálculo de Estaline nos anos Cinquenta relativamente à Coreia. Não é descabido. Só que na Europa desde a II Grande Guerra os soldados americanos ficaram por cá. 

         - Hoje avancei duas páginas no romance - um feito raro em mim. Depois do almoço, estando lá fora a fazer as minhas quotidianas duas horas de leitura ao sol (cheguei à página 400 do diário de Green), apareceu a Piedade para terminar o que não pôde findar quinta-feira passada. Mal me viu, disparou: “Nunca cá venho que não esteja a ler ou a escrever. Não sei como a sua cabeça aguenta.” Posto isto, suspendi a leitura e fui vê-la passar a ferro na cozinha. É todo um mundo que de súbito desagua ali, um mundo de paz, de conversa amena, de laços misteriosos que se enrolam na espessura da tarde e desenrolam ao correr da conversa. Há uma família inteira que ali se instala, um quadro familiar doce, uno, perpassado do calor das vozes, dos silêncios que obrigam a cruzar os braços em expectativa, como se tudo o que ali se diz brindasse às horas o rumor do passado, numa simbiose perfeita que perdura através dos anos. É uma badalada, um cântico romântico, um sopro de nostalgia tangendo na memória que tudo aloja e transforma em vivência e desta em recordação e de recordação em vida pura.  


sábado, janeiro 29, 2022

Sábado, 29.

Chiu, estou a reflectir. A democracia que temos impõe-nos silêncio. Mas ao cabo de muito pensar e já com dores de cabeça, ante vinte tal partidos candidatos às legislativas, estou como aquela senhora do Norte: “Se aquilo fosse mau, ninguém pra lá queria ir.” Todavia, foi na cozinha a confeccionar este bolo de laranja forrado com chocolate, que decidi dar o meu voto a... mim mesmo: isto está uma delicia! Mas... 

... este bolo não é para repartir por nenhum dos candidatos. 



sexta-feira, janeiro 28, 2022

Sexta, 28.

É tão triste ver esta pobre geração de dependentes dos telemóveis e de outros gadgets  - suporte do imenso vazio em que vivem. 

         - O maior logro criado à sombra do planeta e da sua sustentabilidade, tarde ou cedo vinha ao de cima. Ao imporem-nos a mudança do veículo a gasolina para o eléctrico, era nítido para mim que estávamos a entrar em mais uma estratégia capitalista. Todos iriam ganhar, só os condutores iriam perder. Assim, depois de um aumento no início deste ano, a Galp acaba de anunciar mais um (a que chama actualização) a partir do próximo mês para quem carregar a bateria do automóvel. Não tarda viajar de carro está tão caro como o gasóleo ou a gasolina – em tudo contrário quando nos diziam para adoptarmos “um recurso mais amigo do ambiente e mais barato”. Como somos governados por lorpas, aceitamos tudo o que nos impõem. É por esta e muitas outras razões, que eu aprecio os franceses: já estão nas ruas em massa a protestar porque não podem viver com os aumentos de toda a ordem: combustível, frutas, legumes, electricidade, etc. A maturidade de um povo, vê-se no confronto com a autoridade do Governo obrigando-o a governar para ele e não para os interesses obscuros que presidem as decisões políticas. 

         - As amendoeiras começaram a florir! 

         - Esta tarde, encostado a um prédio da Av. António Augusto de Aguiar, deparo-me com um pobre velho, uma caixa de cartão com algumas moedas, a ler um livro como se estivesse numa ilha isolada. Depositei a moeda (um euro) que havia reservado para o rapaz de outro dia que não apareceu. O bom homem de barba e cabelo brancos, agradeceu sem levantar os olhos do texto. Pergunto-lhe o que está a ler. Oferece-me a capa onde leio A Morgadinha dos Canaviais. A poesia é irmã gémea da pobreza e Júlio Dinis o santo que a abençoa e a protege. 


quinta-feira, janeiro 27, 2022

Quinta, 27.

Os partidos de esquerda afrontam o Chega com denodo e muito pouca civilidade democrática. Todavia, deviam interrogar-se antes a si próprios de quem é a responsabilidade pela sua existência e de milhares de portugueses lhe terem dado assento parlamentar. A esquerda, hegemónica e obcecada pelo poder, reduziu o país a duas facções, direita e esquerda, e não deixa medrar o equilíbrio e o convívio entre todos, está na origem da força que o Chega hoje possui e em tão pouco tempo. Eu não lhe dou o meu voto, mas respeito-o e aos militantes e desde que o Chega honre a Assembleia Nacional e quadro institucional, é para mim um parceiro como qualquer outro. Em democracia não se exclui ninguém, goste-se ou não. Só as urnas podem liquidar André Ventura e seus muchachos – é tão simples como isto. 

         - Terminei o volumoso volume do diário de Paul Morand. Nas derradeiras páginas (940-941) do Journal de guerre (1039-1943), o diplomata e escritor, foi indigitado para assumir a embaixada da Roménia e deixa Vichy. Este documento é curioso sob vários e interessantes pontos de vista, a começar pelos factos históricos relatados do lado de dentro do governo Laval. A grande maioria do que a li se lê, são pequenas anotações do dia-a-dia da guerra e da sujeição do marechal Philipe Pétain a Hitler. Morand sempre foi tido como o escritor que lambia os acontecimentos e logo, apressado, os abatia. Contudo, a cordilheira de factos, muitos anotados em cima do joelho, revela bem o que foi Vichy no contexto da ocupação nazi. De Gaulle nunca lhe perdoou e durante os anos do pós-guerra, Paul Morand teve que se fazer à vida de cabeça baixa. Embora a mim me pareça que houve nele uma certa intenção (provavelmente romântica) de proteger a França dos alemães guerra. 

         - Terminei o trabalho junto ao portão. Devo ter trazido para ao pé de casa de modo a utilizar nas plantas e laranjeiras uns sete ou oito carros de terra. A entrada dá gosto vê-la assim limpa, mas os meus rins barafustam contra a beleza de uma produção bem executada. Ontem tive a lareira da cozinha todo o dia acesa. Resultado: a sala de jantar e toda a zona esteve agradável até à noite, com uma temperatura ambiente cativante, devido à manga de calor que sai da lareira para o resto da divisão. 

         - São assustadoras as manobras militares russas na fronteira com a Ucrânia. Os países europeus e os Estados Unidos, enviaram material bélico e soldados para a frente de guerra. Não se percebe, vendo o que as imagens nos mostram, o que pretende Putin com aquele arsenal de combate se não é para invadir o ex-país da URSS. Penso que se o fizer, vai perder em toda a linha: económica, militar, estratégica, para além das muitas vidas ceifadas por uma ambição que não se adequa ao tempo histórico presente. 

         - A fiel Piedade esteve aí de manhã na habitual lide da casa; à tarde apareceu de surpresa para podar as hortênsias da entrada. Estive a vê-la desbastar cada ramo, melhor, a aprender dado que quando é ela que se ocupa deste trabalho, as flores reconhecem o seu toque e rebentam felizes como aconteceu o ano passado. Momentos ternos, uma aragem de alegria e bem-estar soltou amarras entre nós. E nem o ruído incessante da máquina ontem e hoje a raspar o chão entre as vinhas da erva daninha, perturbou o nosso entendimento. Glória a Deus por me conservar em vida e a viver aos ritmos da natureza neste campo aberto à amplidão da Criação!  


quarta-feira, janeiro 26, 2022

Quarta, 26.

Quando vou ao Corte Inglês como foi o caso ontem, vejo à saída do metro um rapaz apessoado, discreto, correcto que mendiga em silêncio. A mim nunca me pediu coisa nenhuma achando, porventura, que eu sou tão infeliz como ele. Fui ao seu encontro e dei-lhe uma moeda sendo minha intenção passar a fazê-lo sempre que o vir. Sorriu-me com os olhos que o coração tem e raramente se mostram. Fiquei tão comovido que tive de desaparecer de imediato. Neste país de governantes arrogantes, só os pobres são nobres. Era a eles que devíamos entregar a gestão da nação. Porque a pobreza é a maior universidade da vida e quem nunca por ela passou não pode dizer que viveu – vegetou simplesmente na imoralidade da riqueza. 

         - Regressar ao que há de mais sagrado em mim. Fixar o pensamento na transcendentalidade da vida, rumar a um mundo para além dos espaços siderais, seguir o eco do silêncio adiante das montanhas do céu de um escuro luminoso, ir pelo infinito sem fim, sem memória e sem palavra, descer o abismo em busca da estrela que nos conduz ao lugar da eternidade, leve, leve, leve... 


terça-feira, janeiro 25, 2022

Terça, 25.

Enquanto Portugal se entretém e é animado pelas “arruadas”(a expressão fala por si), o mundo olha com apreensão o confronto entre a Rússia e a Ucrânia. Nenhum dos chamados políticos se manifestou ou teve opinião sobre o nosso destino no contexto da Europa e do mundo. Mas o que se passa na fronteira entre os dois países, é demasiado grave e para mim uma tentativa de tomar o pulso, melhor dizendo, ver até onde a deixam ir o Ocidente e os EUA na sua alucinação subterrânea de expansão ao limite do que fora a então URSS. A recusa de Putin em ter a NATO à sua porta, não é mais que o filão de qualquer coisa mais vasta que nos ameaça a todos enquanto europeus. As manobras bélicas de ajuda ao ditador da Bielorrússia há semanas, era já um ensaio que auscultava da capacidade das forças europeias. 

         - A prova do que somos em termos culturais, está no leilão da igreja do Convento de S. Francisco, em Bragança, por dívidas contraídas com o restauro. A Estado, isto é, cada um de nós, investiu há tempos na sua recuperação 1,5 milhões de euros. O conjunto franciscano medieval (séc. XIII), é Monumento de Interesse Público. A ver vamos se ali não irá nascer mais uma unidade hoteleira.  

          - Portugal subiu um ponto no Índice de Percepção da Corrupção da Transparência Internacional. Melhorou? Nada. Porque os principais corruptos estão no poder político e partidário, e não foram considerados para análise, incluindo o Banco de Portugal! 

         - António Costa, vendo as sondagens de que tanto gosta derraparem em favor do adversário, ainda tem a lata de dizer que Passos Coelho, um excelente primeiro-ministro (pese embora muita coisa com que não concordei), é culpado pelo período de austeridade que atravessámos. Tratando-nos de ineptos, pensa que nos esquecemos que essa fase terrível só aconteceu porque o governo socialista maioritário de José Sócrates, com roubos e negociatas de toda a ordem, nos arrastou para isso.    

         - Terminei o trabalho de limpeza em frente à casa. Iniciei outro, junto ao portão, onde a terra e a erva não deixavam abrir as duas portas. Domingo li 100 páginas das três obras que tenho em curso. Feita a revisão das primeiras páginas do romance, mergulhei numa espécie de pausa meditativa. Não sei se me agradam ou não. Nesse entretanto, prossigo com a escrita, tendo entrado hoje mais duas personagens: o doutor Jacob e a mulher Catarina. Todas as manhãs a quinta atapetada de um manto de erva rente ao chão, transforma-se num espaço alvo coberto da geada que caiu durante a noite. Faz frio, tenho duas lareiras acesas. 

         - Anunciam-nos que o número de pessoas confinadas por Covid-19 ou Ómicron ultrapassa um milhão! Mas estão entregues à sua sorte. Os cientistas dizem que houve um abandalhamento das medidas pessoais de protecção. É bem provável num povo com as características do nosso. Contudo, o concluiu entre Costa e a DGS (ou vice-versa) está montado para a votação: alguém vai ter que arrancar esta gente da cama para ir exercer o “direito de voto”; de contrário é a democracia, esta que temos, que fica em perigo. O que é uma pena, não é verdade? 


segunda-feira, janeiro 24, 2022

Segunda, 24.

Desleixei este registo para me preitear ao romance. Também para assinalar factos e contendas entre políticos em campanha, é pura perda de tempo dado o desinteresse e a aberração do que vejo e ouço. Aprendo mais a observar o Black neste mês em que o cio o descontrola, que a olhar as carrancas dos nossos governantes no vazio das ideias e das mentiras descaradas. 

          - António Costa que se atrela a tudo o que dê votos, fez-se à onda daqueles que querem impor quatro dias de trabalho semanal. Eu estou particularmente bem posicionado para falar do assunto, pois há pelo menos trinta anos que, como director da agência de publicidade que dirigi, institui esse regime. A coisa correu bem, embora alguns meses depois tivesse retornado aos sete dias de labor semanal por imposição dos clientes que precisavam de respostas e serviços em sintonia com as suas necessidades e dias de funcionamento. Nenhuma empresa pode ter a veleidade de ser uma ilha, de contrário vai à falência. 

Dito isto, não ignoro o princípio que norteia a medida e que é este: há mais vida para além do trabalho. É verdade. Eu que levei uma vida de quase escravo, primeiro no jornalismo, sempre em aflições de toda a ordem, mouro de trabalho, tudo sobre os meus ombros, depois acumulando este com o papel de director da agência, sempre que podia reservava umas horas para a escrita e leitura, viagens e amores umas vezes descontinuados outras obsessivos, mas sempre acoitados nesse lírico estatuto. Todavia, é para mim líquido que sem trabalho não pode haver vida digna nem projectos em consonância, assim como é consensual para quem ama a liberdade, primeiro está a nossa realização pessoal e só depois o dinheiro. Não devemos viver para o dinheiro, o dinheiro é que deve “viver” para nós. A pergunta que me ocorre é esta: que irão fazer os milhares de assalariados nos três dias de folga? Com a cultura como se vê, a manjedoura da TV a carregar sucessivamente fardos de dejectos, o futebol como donos disto tudo, os políticos que temos, o sol que não nos larga, a apatia em que nos aprazemos viver, suponho que em breve os milhares de portugueses desocupados aos fins-de-semana vão tornar-se mais sonâmbulos, preguiçosos, dependentes de qualquer coisa – droga, telemóvel, horas nos centros comerciais – contribuindo para desigualdades, esquecendo-se que ao lado há alguém que não tem trabalho e portanto não tem que comer. Contudo, ainda a coisa é ululo, já o PS veio afirmar que “reduzir o horário de trabalho é criar emprego”. O seu irmão, através da voz melodiosa do pároco de aldeia, Rui Tavares, pergunta: “E como se aumenta a produtividade? Apostando na formação e na ciência, conseguindo assim aumentar os rendimentos e a sua distribuição, tirando Portugal da armadilha dos salários baixos.” Bonjour, monsieur La Palice. O que se subentende das suas palavras reverendíssimo vigário, sem redução de dias de trabalho, este dogma santamente pensado, nunca será instituído. Portugueses, trabalhem o mínimo possível, pois só assim chegarão a ricos. Tenham por exemplo políticos como José Sócrates e a elite dos socialistas (entre outros) que entopem os tribunais. 


sexta-feira, janeiro 21, 2022

Sexta, 21.

Instala-se agora com frequência no final do sono, à primeira hora da manhã, quando vacilo em me levantar para começar o dia, uma espécie de desespero que mete medo e me lassa entre a decisão de acordar ou ficar a chafurdar naquele vale de exasperação. Em avalanche chegam ensaios da minha morte, confusão de situações que tenho de enfrentar e com frequência aqueles finais de mês que foram sempre para mim desesperantes, porque tinha de ter dinheiro para pagar aos funcionários da agência de publicidade que dirigi e parecem nunca mais me querer deixar. Depois, logo que ponho os pés no chão feitas as primeiras orações, entra em mim o esplendor do dia, tudo olvido e é com exaltação que me faço às horas que se seguem, sem que qualquer resquício permaneça a impedir a felicidade de me acompanhar.  

         - António Costa, na sua obsessão pela maioria, até ordenou ao SARS-CoV2 que parasse de infectar, de se expandir, de pular de indivíduo em indivíduo, e obrigou os mortos a saltar das covas, os vivos infectados a sair de casa, numa obcecação pelo voto que vai perder em favor de Rui Rio. Enquanto Costa, indiferente à doença e ao bem-estar dos votantes, meteu na cabeça que quer ganhar as eleições, os novos casos de covid-19 já ultrapassam 50 mil por dia.


quinta-feira, janeiro 20, 2022

Quinta, 20.

Ontem almocei na Confeitaria Nacional (Praça da Figueira) com o João, Carlos Soares e Carmo Pólvora. Rico e saboroso almoço condimentado com o convívio simpático, sem a pimenta da política, num ambiente descontraído. Falou-se sobretudo de arte e o Carlos ofereceu ao Corregedor uma pequena aguarela porque ele lhe vai comprar uma maior e a mim que não lhe compro nada outra do mesmo formato. A Carmo, entendida em pintura e arte, ante a capacidade criativa e a desenvoltura dos desenhos do Carlos, disse que ele estava próximo dos surrealistas – uma bacorada de todo o tamanho. Adiante. Dali, João e eu, sob a batuta entendida do meu amigo que em matéria de transportes urbanos é catedrático (mesmo quando era deputado e teve carro e chofer, preferiu sempre andar nos transportes públicos; só o conheço a ele e ao meu querido amigo João Biancard dignos dos cargos que ocuparam, ambos não socialistas, claro), fomos a Campo d´Ourique ao encontro dos dois jovens fraco-portugueses que ali têm uma loja com queijos exclusivamente franceses. João, desde que lhe dei a provar uma boa raclette, ficou cliente e o filho ofereceu-lhe a máquina e ele vai experimentar fazer para os seus decerto uma melhor que a minha. Bom. Regressei já a noite descia em gavelas laminadas de luz. Por todo o lado, no lençol estrelado estendido sobre a terra, reflectiam sombras brancas, minúsculos insetos pousavam e levantavam desentendidos pelos faróis do carro. Em redor da casa, estrelas e silêncio. À minha espera doido de fome, o Black. 

         - Vou fazer como Marcelo: silêncio acerca do carnaval partidário que anda de aldeia em aldeia, de cidade em cidade. 

         - Atingi a página 200 do Diário de Julien Green. Mas vou abrandar. Prefiro saborear cada palavra, cada linha, cada página como se estivesse extasiado diante do pôr-do-sol numa qualquer ilha do Pacífico. 


segunda-feira, janeiro 17, 2022

Segunda, 17.

Devo ir em metade do grosso  volume da correspondência entre Sand e Flaubert. E voilà que o solitário de Croisset, a páginas 347, depois de enterrar o seu amigo íntimo Bouihet, não podendo mais de sofrimento, desabafa com a sua amiga (melhor com o seu amigo) George Sand: “Je sens plus le besoin d´écrire, parce que j´écrivais spècialement pour un seul être qui n´est plus. Voilà le vrai.” Francis, que me tinha alertado para esta revelação, mais uma vez se comportou como un grand connaisseur. Mais adiante, na carta desesperada, acrescenta: “Je ne demanderais pas mieux que de me rejeter sur une affection nouvelle. Mais comment? Presque tous mes vieux amis sont mariés officiels (o itálico é do escritor). Pois. Já em 1870 os faz-de-conta existiam e... casados, perdão, bem casados. 

         - Refeito da vista, eis que me entrego com paixão ao terceiro volume do diário de Julien Green e de uma assentada devorei as primeiras 50 páginas. Green voltou dos EUA, a guerra na Europa terminou, embora o rasto bélico e de humilhação ainda não desaparecesse das ruas de Paris. Robert, “mon Robert, mon bien aimé”, não veio com ele, acompanha-o a irmã e ambos encontram a sua cidade submersa na fome, na miséria, no frio atroz. Não têm onde ficar, aceitam o gesto amável de uma amiga que os aloja em sua casa. O milieu artístico e intelectual está mudado. Sartre e Camus impõem-se; Green percebe que já não reina como antes da Segunda Grande Guerra. Depois... bem depois as ruas da cidade voltam a ser um perigo, a beleza dos corpos masculinos desorientam-no, o místico contranatura, vai lutar desesperadamente olhando de soslaio os físicos que não o deixam sossegar. A par da revelação de muitos dos seus amigos terem colaborado com os nazis (Cocteau, Lacretelle, Cassou, Morand, entre outros), alguns chegaram a exercer sevícias (caso de Cassou); outros louvaram com palavras escritas a glória do invasor. É dos múltiplos almoços e jantares que aceita todos os dias, que regressa a casa cabisbaixo, revoltado, envergonhado com a miséria humana daqueles que julgava imunes a tais conivências. Quatro anos de guerra, assolaram a moral e os princípios que ele julgava eternos. Por agora, a preocupação maior é encontrar casa para morar e trabalhar. Robert regressará em breve – é essa ânsia que lhe dá animo e vida.  

         - Dele esta frase que julgo ter anotado quando li o Diário publicado em vida de Green: “Un journal est une longue lettre que l´auteur s´écrit à lui-même, et le plus étonant de l´histoire est qu´il se donne à lui-même de ses propres nouvelles.” 

         - Estou no meu melhor, conseguindo desde que cheguei de Paris, atingir e manter os meus bons e sólidos 63 quilos de peso. 

         - Dia esplendoroso, jornada de labor sucessivo: trabalho no romance, leituras, prosseguimento do corte da erva defronte da casa, fiz um bolo de laranja que conto pôr na mesa amanhã ao receber para almoçar Nieto. Imprimi as primeiras 13 páginas para ver o que me saiu. Na realidade não sei nada da história porque, a dada altura, tudo se precipitou e eu já não tive controlo sobre nenhuma das personagens. É extremamente fascinante como tudo acontece em catadupa, como se a narrativa fosse a leitura de um facto transposto para a escrita a ocorrer naquele preciso momento. 


sábado, janeiro 15, 2022

Sábado, 15.

Os ecos do debate dos privilegiados (assim os denomino porque todos os outros partidos tiveram apenas 15 minutos) estão por todo o lado. É publicidade acrescida, patuá sem interesse, ufanar de complementos pessoais que só favorece os intervenientes e não o país e os portugueses. Com Costa ou Rio, ao nível das promessas que nunca se cumprirão, a campanha (um eufemismo) parece que começou hoje. Entre, muito a propósito, Eça de Queirós: “A campanha eleitoral é uma navegação pestilencial pelo cano de esgoto de todas as imundícies da conveniência, do egoísmo e da ambição.” Eça de Queirós. in As Farpas.

         - A frase do dia: Portugal “é uma espécie de esqueleto bom para os estudantes de anatomia.” M, Fátima Bonifácio, no Público. 

         - Eu desejaria que a saída dos socialistas não nos trouxesse nada comparado com a partida de José Sócrates (na altura com maioria). Não sei não. Alguns signos de negociatas chegam para me questionar. Sobretudo quando a herança pidesca deixada na Câmara de Lisboa, chefiada pelo bebé Nestlé que Deus tenha, acaba de causar um rombo às finanças da autarquia: a Comissão Nacional de Protecção de Dados, multou a CML em 1,25 milhões de euros! Espero que parte deste dinheiro seja para reparar os estragos sofridos por aqueles que viram, indevidamente, os seus dados pessoais e expostas as suas pessoas, em embaixadas estrangeiras e países onde impera a ditadura mais feroz. 

         - Frio. Tenho a lareira acesa desde que acordei. Longo dia trabalho no romance e leituras várias. 


sexta-feira, janeiro 14, 2022

Sexta, 14.

Assisti por curiosidade ao debate entre Costa e Rio. Grosso modo, estou do lado de Rui Rio, com as suas ideias e processos de governação. Acode-me, contudo, um parecer: se aqueles são os princípios do PSD, porque razão não os puseram em prática os muitos governantes do seu partido? Com tanta gente doutorada (que ridículo ouvi-los tratarem-se reverencialmente por senhor doutor, parece que estamos na África dos sobas) e dita humanista, era natural que Portugal ao fim de 50 anos de democracia e riqueza como eles dizem, estivesse melhor colocado no ranking dos países prósperos e não houvesse dois milhões e meio de pobres, os salários fossem de escravos, a instrução periférica, a necedade gritante, a Justiça para ricos, as simetrias tão gritantes, os reformados pobres, tristes e sós. Depois, como estamos orgulhosamente sós, não houve uma pergunta sobre a reforma do sistema, a educação, a natalidade, as novas tecnologias, as reformas, a nossa posição face a um mundo que desabrocha perigoso. Só espero e desejo que os meus concidadãos não caiam na má ideia de darem a maioria a estes senhores doutores.          

         Olhando o espectáculo tenebroso de ontem, verifico que aqui como em quase toda a Europa, não há personalidades, estadistas – há propagandistas de banha-da-cobra. A democracia está transformada num ringue de mentiras, de promessas fátuas, de projectos que nunca conhecerão a luz do dia e em consequência as pessoas entregues à sua sorte. Nunca o mundo esteve tão maduro para a chegada de um qualquer ditador escudado pelas multinacionais. Alguns ensaios já se fazem ao longe. Sem comentar aquela de António Costa exibir um calhamaço que diz ser o Orçamento para o este e o próximo ano, Orçamento que foi chumbado e ele conta ser aprovado não se sabe por quem? Burrrrrrr que nojo! 

         - Almocei com a Marília e o João no República Italiana (Av. da Igreja). Um regalo de almoço, não tanto pelo que se comeu que foi vulgar, mas pela companhia. João desiludido com os políticos a pouco e pouco aproxima-se de mim. Pelo menos já o vi mais longe e mais radical. Encontrei-o indisposto de saúde e, nessas circunstâncias, pouco dado ao entusiasmo da discussão. Marília como sempre óptima, salutar, dizendo aquilo que entende, sem se importar com as posições políticas do companheiro. Ao ouvi-la falar, quem não a conhecesse, diria que eu que me exprimia pela sua boca.  


quinta-feira, janeiro 13, 2022

Quinta, 13.

A merda de jornalismo que hoje se pratica deixa-me em fúria. Sujeitarem Jerónimo de Sousa, Secretário Geral do PCP, em véspera de ser operado a uma artéria que leva à irrigação do cérebro e pode provocar a morte, ao bombardeamento de perguntas provocantes, íntimas, sem fundo de utilidade no contexto da campanha para as legislativas, como se o homem fosse a vedeta de cabaré em vésperas de novo show. São, sobretudo, meninas exploradas pelas televisões e ensinadas a serem provocantes, no princípio de quanto mais sangue melhor. O Sindicato dos Jornalistas não terá nada a dizer a este tipo de jornalismo sem profissionalismo, cultura e sensibilidade?

         - Dias Brito foi um excelente e culto jornalista. Diz o sobrinho que lhe acudiu nos derradeiros dias de vida e o levou para um lar onde acabou por falecer quatro dias depois, assim que chegou no dia seguinte já falava a todos os companheiros em fim de vida. Ficou-se naquilo a que se costuma chamar uma morte santa, quando conversava normalmente com o seu familiar. No rosto não assomou nenhum sinal de dor ou medo, apenas ficou o silêncio eterno.

         - Vou registar esta ocorrência, apenas para que os meus leitores não desistam nunca de lutar pelos seus direitos, políticos, sociais ou outros, que o mundo está cheio de armadilhas e temos de estar sempre em alerta. Quando estive em Paris, comprei pela OPODO a viagem de regresso a Lisboa. Um mês depois já em casa, utilizando o número do cartão que liquidou a passagem de avião, recebo um débito de 60 e poucos euros para... custear o bom e saudável planeta. Vou ao site da agência de viagens, percorro-o com toda a atenção, e não enxergo nenhuma forma de contactar a companhia. Uns dias depois, recebo no telemóvel a oferta de aviões baratos para aqui e para ali. Dei-me ao trabalho de ler tudo até ao fim e... em letras muito miudinhas, no final do texto, encontro a morada em Madrid para onde enviei uma carta registada, ameaçando-os e exigindo o reembolso do roubo efectuado. Milagre! Dias depois chega ao meu computador o e-mail resposta: vamos analisar o problema. De facto, assim aconteceu e dois ou três e-mails trocados, os serviços deram-me razão, pediram imensa desculpa e transferiram para a minha conta bancária a importância surripiada. 

         - Esta semana trouxe-nos cascatas de luz. Aproveito-as em leituras lá fora ao sol e a prosseguir trabalhos no exterior. Ontem e hoje, avancei com a roçaga da erva à entrada da casa; a Piedade veio e pôs em dia a roupa empilhada em uma hora a passá-la a ferro. 

         - O Carlos Soares é um homem consagrado dos séc. XV ao XVIII, conta-me que sempre foi doente por política, religião e arte, e acrescenta: das primeiras estou curado só não consigo restabelecer-me da última. 

         - Doutor (imagino que não seja médico, mas possua ao menos um curso superior) Rui Rio deixe que lhe diga que o Partido Comunista não é “corente”, mas é decerto coerente. 


terça-feira, janeiro 11, 2022

Terça, 11.

Mestre Acácio que veio aí hoje substituir a torneira que leva a água à piscina, é um homem divertido e do alto dos seus oitenta anos, diz-me quando lhe pergunto se aceita um café: “Eu? Não. Isso é pra velhos.” Questionado se tem filhos, respondeu: “Tenho um rapaz. Na verdade não tenho um filho, tenho um ladrão.” Ai, família! 

         - No Filipe tenho um anjo da guarda. Leitor atento deste diário, amigo de longa data, lendo o tombo que sofri, logo me envia um sms a desejar melhoras. Volta que não volta, manda-me anúncios de vivendas à venda aqui na zona. O seu sonho era viver neste refúgio encantado e sereno, que oferece qualidade de vida que não existe em Lisboa e arredores. O problema é que tudo o que vejo no telemóvel, tem a dimensão das casas apalaçadas da gente pretensiosa de Hollywood e valem em conformidade.  

         - Fui ao Corte Inglês comprar um blusão que me defenda do frio e da chuva, enfim! Este “enfim” tem uma razão: durante anos a Annie quis oferecer-me um agasalho assim e eu que nunca namorei o seu dinheiro, sempre recusei. Ainda no mês de Novembro, ela insistiu: “Robert, comment on peut faire pour acheter un blouson à Helderrre?” O marido, quando toca a dinheiro, faz ouvidos de mercador, portanto dali posso estar tranquilo. Aconteceu que ela me telefonou esta tarde e eu informei-a da compra; resposta imediata: “Então sou eu que to ofereço. Dá-me o número da tua conta bancária e manda-me uma fotografia com o blusão vestido.” Um capitalista é sempre alguém em quem não se pode confiar, e se ainda por cima for socialista, então, il y à toujours une arrière- pensée... 

         - O amor entre Julien Green e Robert de Saint-Jean é perturbador. Atravessou a vida de ambos e, passados os anos de sexo intenso, transformou-se num amor platónico que não desmerece de nenhum outro, homo ou hetero. A amizade cúmplice que se estabelece, substitui a loucura que os levou a toda a sorte de orgias, nas décadas 30 e 40 e, no caso de Green, fortaleceu a sua busca pela virtude de vida proclamada nos Evangelhos. Cristo cai três vezes com a pesada cruz às costas; também Julien se rende à beleza de um rosto, à harmonia de um corpo. E de queda em queda, sai mais robustecido para conquistar o rumo que Jesus quer para cada um de nós. A sua luta entre o bem e o mal, entre o desejo carnal e a perfeição dos dias, o desvio de um olhar e o pensamento do caminho novo, atravessam centenas de páginas. Foi por isso que eu chamei ao segundo volume Toute Ma Vie o breviário de Green. Durante os cinco anos que ele passa em Baltimore, EUA, estuda a fundo teologia, devora a Bíblia, lê todas as vidas dos santos da Igreja, tem no seu convívio quotidiano sacerdotes, e consegue praticamente escapar ileso às tentações que se cruzam com ele nas ruas de Nova Iorque e Washington. É confrangedora essa luta, esse rasgão no corpo ainda jovem e cheio da sensualidade que alimenta o delírio, apazigua os sentidos e fornece ao corpo a urgente realização dos seus desejos, corpo e mente em disputa pela perfeição que a Igreja impõe sem ter em conta as necessidades fisiológicas e psicológicas de cada ser humano. Até à chegada de Wilbur um jovem aspirante a poeta. Com ele tudo recomeça, com ele as angústias metafísicas crescem, o querer e não querer, as horas vazias povoadas do corpo magro, frágil que ele possui na sofreguidão que a abstinência demasiado longa produz. Personalidade complexa e fascinante, Julien Green viveu por antecipação e num tempo impreparado para aceitar a franqueza dilúcida e dura da verdade. 

         - Eis uma charada à Rui Rio: “Sou católico, mas não sou crente.” Atenção: em política o homem é também isto e aquilo. 

         - A mim preocupa-me imenso o que se passa nas redes sociais. Sobretudo o controlo e invasão da privacidade de cada um, a apropriação da internet para certos abusos é matéria de estudo para a inglesa Shoshana Zuboff. Pedro Rios trouxera intacta há dias ao Público e dissecou-a com inteligência e oportunidade. Lembrei-me dos Robert que há por este mundo fora. Ele de cada vez que liga o computador, desce como cascata fumegante, um chorrilho de publicidade, mails, propostas e assim. Digo-lhe que a culpa é só dele e comunico-lhe que no meu não descarrega nada, absolutamente nada. Isto porque estou sempre com muita atenção, não aceito isto nem aquilo, não quero ser rico nem famoso, não preencho APPs, quero salvaguardar a minha privacidade até ao limite do possível. E ainda não conhecia estas palavras da escritora: “As nossas vidas dependem de tecnologias que nos extraem em segredo a nossa experiência privada, traduzida em biliões de dados, para ganhar dinheiro. Uma invasão que reduz a liberdade, compromete a saúde mental e ataca a democracia.” Mais vai longe: “Google, Facebook e YouTube, não permitem recusar cookies (outro dia falei aqui disso) de forma simples como aceitá-los, o que viola a liberdade de consentimento.”  A isto chama a autora “o capitalismo da vigilância”. 


segunda-feira, janeiro 10, 2022

Segunda, 10.

Depois de ter recusado ir no dia de Natal a casa da tia Júlia, acedi ontem e lá fui ao encontro da minha prole; Gustavo muito desenvolvido e do alto dos seus vinte e poucos anos, garboso. Os pais não envelheceram quase nada e a tia também não. Se observo isto, é porque todas e todos avelhentaram à minha volta, devido à pandemia que nos atacou psicologicamente para destruir a nossa imagem. Momentos extremamente simpáticos, discutidos, plenos de galhofa, com pontos sérios que eu sem querer introduzi e de que me arrependo. Esta mania de tudo analisar e equacionar, é uma doença que merece tratamento... 

         - Acordei com o lençol cheio de manchas de sangue. Pensei quando me deitei que havia tratado as feridas do braço e do cotovelo, mas o que vi obrigou-me a fazer novo curativo. Que tombo, hei!  

         - Por arrasto do telejornal da SIC, acabei assistindo ao primeiro (para mim) debate para as legislativas. Gostei. Ambos defenderam os seus programas, civilizadamente, António Costa e Francisco dos Santos, embora, tanto um como outro, não me tivessem convencido no seu jogo de cativar os eleitores. Aquilo é o costume: um horror de blá-blá para que já não tenho a mínima pachorra e sei de antemão que nunca será cumprido.  Dito isto, do que avulso nos jornais e nos telejornais vou lendo e vendo, justiça lhe seja feita, é a menina do BE a melhor preparada e a mais acintosa. 

         - Todos se vão. Desta vez a pintora Lourdes de Castro. Comparo-a à minha amiga Carmo Pólvora, uma certa concepção da pintura onde vivem as sombras que irradiam a luz que projecta o interior do artista, o ritmo do tempo inventado para projectar a arte que brota da consciência e produz na tela a magia dos dias vestidos das manchas que a noite e a madrugada oferecem à densidade da tela. 


sábado, janeiro 08, 2022

Sábado, 8.

Dei um trambolhão e peras. Ia a entrar na cozinha com uma braçada de lenha, e não sei como, caí atirando com a madeira para um lado e o corpo para cima dela. Fiquei a gemer no chão de tijoleira e a pedir a protecção divina porque a impressão que tive foi que havia partido o braço. Doía-me também o joelho da perna que transporta às alturas libidinosas os rapazes e os homens feitos. Logo me ocorreu o jeito que dei precisamente há um ano, quando tentava fazer entrar na lareira do salão o mastodonte de acácia, problema que só me largou completamente (já bati três vezes no tampo da mesa) em Novembro passado e espero tê-lo resolvido para sempre. Levantei-me quando pude e como pude. Corria sangue do braço, um largo rasgão empapado que a pele tentava reter. Tratei-o com mercúrio-cromo, pus uma compressa e fui sentar-me à secretária a trabalhar. Eis se não quando, o bloco onde assentava o cotovelo, ficou com uma mancha avermelhada – era o cotovelo que estava ao mesmo nível do braço e a necessitar de idêntico tratamento.

         - Mas este acidente deu-me que pensar. Não quero ser como aquelas beatas que por tudo e por nada invocam o santo nome de Deus em vão. Todavia, à memória veio-me os dias difíceis que passei no hospital de Santamaria há onze anos, eu que nunca tinha estado num hospital e não fazia a mínima ideia o que era sofrer. Bref. Acontece que os dias que se seguiram à operação, foram tormentosos de todos os pontos de vista, sobretudo para alguém que não tinha sido até ali acossado por doenças. Lembro-me quando saí e o João Carolino teve a amabilidade de me proteger por uns 15 dias em sua casa (e o Couto me veio buscar para me levar para o apartamento do meu amigo e depois trazer-me de regresso aqui), perto do Arco do Cego, o Eugénio que nunca faltara às visitas, quis que almoçássemos um dia. Combalido, fui ao seu encontro. Durante o almoço, de súbito, sabendo o Eugénio muito crente, mais do que eu, rompendo num pranto que surpreendeu o meu amigo e todos quantos comiam ao nosso lado, disse-lhe, irado: “Deus nem me acudiu! E eu nunca pensei Nele.” Não vou estender-me em pormenores da relação que tenho com Deus. O que queria referir é que, à distância de 11 anos, ainda nem havia tocado o solo, já estava a pedir-Lhe protecção. E fui atendido. Não tenho ainda arcabouço para o sofrimento, embora saiba o suficiente através da cultura que ele tem várias latitudes e todas elas nos redimem. Não vou citar a este propósito de novo Marguerite Duras, mas não resisto a contar o que Green diz no 3º volume que folheei apenas, citando o padre Crété seu amigo, em grande sofrimento às portas da morte, quando lhe perguntaram se se aborrecia e ele respondeu: “Eu não me aborreço porque sofro.” Silêncio. 

         - Deixou-nos o nosso querido amigo Brito. Desde o aparecimento do SARS CoV2 que não saía de casa. Era um homem notável, foi um jornalista de talento, tinha uma memória prodigiosa, não ouvia, não via, tinha 96 anos, vivia só, e mesmo nestas condições tomava o autocarro, depois o metro, e aparecia na Brasileira para trocar dois dedos de conversa (e que conversa!) com os amigos. Descansa em paz, querido amigo. Muita falta nos vais fazer e as manhãs da Brasileira serão para sempre sombrias sem ti. 


sexta-feira, janeiro 07, 2022

Sexta, 7.

A Maya que às vezes espreito, começou o ano a dizer que este é que o excelso para os virginianos como eu. Diz que vou conhecer o amor da minha vida, insiste hoje no mesmo e parece dirigir-me uma bênção de felicidade onde cabe também o êxito para a actividade da escrita. Registo apenas para conferir quando chegar o fim de 2022. 

         - Há, todavia, uma sombra que atravessa os meus dias, um certo balanço entre a luz e as trevas, uma desmotivação que me atira para horas em que fico suspenso a olhar sem ver o que me rodeia. As leituras e o romance, são sempre para mim momentos de grande intensidade, de felicidade crua, os únicos que trazem ao facto de ter nascido a essência de tudo o que o vida me dá e até o que me suprime, a saída do presente para um mundo onde não entram as torturas do quotidiano e eu fico distante a viver intensamente as fantasias que descem à página do computador. E contudo não me devia queixar. São passados apenas sete dias do início de Janeiro e já somo dez páginas escritas – uma lança em África para quem aprendeu a trabalhar no mais completo vagar. Portanto, Helder, coração ao alto!  Talvez a Maya seja a tua musa descida das cartas que orientam o teu destino e antevêem primaveras de uma sonoridade insigne. 

         - Consumi a manhã em meia página do romance, leitura do Público e do Figaro Magazine. Depois do almoço, sentado no sofá de verga, na tarde bêbeda de sol, li duas horas. De seguida fui cortar a erva nociva que cresceu imenso em frente à casa. Todo este trabalho – romance, leitura das notícias, do Diário de Paul Morand e com a roçadora – foi acompanhado da palração das mulheres de Zuckerberg que estão de volta. Ouvi uma centena de vezes falar do Facebook, das vidas palpitantes de interesse que por lá pululam e são a alegria do povo que não tem amigos com quem desabafar e o corte e costura da inveja medra para gáudio do inventor americano. 


quinta-feira, janeiro 06, 2022

Quinta, 6.

Ontem fui ao encontro do Fr. Hélcio para um café na Avenida da Igreja (ele mora ali perto), durante o qual pusemos em dia a choldra da vida. O tempo foi correndo e a dada altura ele propõe almoçarmos juntos. Como tinha outro compromisso no mesmo sentido, despachei-me com desejos mútuos de excelente 2022 – uma formalidade de opacidade deprimente.  

         - O portátil toca pela uma da tarde. Não conheço o número, mas decido atender. “Estou a falar com o senhor X? Falo da Endesa. - Não, não está, respondo seco. – Incomodo? – Já incomodou. Estava a fazer amor. – Oh, esta hora! Que sorte!, responde a voz do jeune homme.” 

         - Avanço a passos rápidos para o fim do calhamaço Paul Morand. A páginas 764, leio: “Les hommes cherchent dans les livres des recettes pour vivre. C´est pourquoi les écrivains optimistes partent toujours gagnants. Ils veulent en tout cas une certitude; de là vient le dégoût actuel pour la France et Renan.”  Talvez, digo eu. No século anterior, Renan que nele imperou omnipresente, nem sempre foi bem tratado. Até Green oscilou na sua devoção ao autor de Anticristo. Todavia, todo o séc. XIX foi um século do ponto de vista da exegese, extremamente interessante. 

         - Portugal é, normalmente, o país da trapalhada. Que o diga o jogador de futebol Luís Figo. No meio do carnaval político com eleições no final do mês, surge agora o problema (gravíssimo dizem eles) de como votar quando uma parte significativa está confinada. Ora, responde a DGS, levante-se o morto, leve-se à mesa de voto, e devolva-se de novo à morte. Entretanto, só hoje, houve 39.074 novos casos covid-19! Assustador. 


terça-feira, janeiro 04, 2022

Terça, 4.

Por assim dizer tenho vivido nestes últimos seis meses mergulhado na Segunda Grande Guerra. Primeiro com o Journal de Guerre (1939-1943) de Paul Morand, de seguida com o segundo volume de Julien Green (1940-1945). Ao todo 2.136 páginas que me esclareceram e me trouxeram dados pessoais sobre o conflito. Morand fez parte do Governo Vichy; Green exilou-se nos EUA combatendo Laval e o seu governo. Em Fevereiro de 43, Paul Morand vem a Portugal e em meia dúzia de linhas traça o perfil do país sob o comando de Salazar: “Quand on voit la misère d´ici, les bas salaires, jamais relevés depuis vingt ans, soixante-dix pour cent d´illetrés, les ouvriers payés dix escudos, par jour, prix de 1914, la syphilis, la tuberculose, on est étonné de tout ce qui n´a pas été fait encore.” Pág. 716, Ed. Gallimard.  

         Portugal mudou? Sim. Todavia, a questão que se põe é esta: mudou mesmo? Ressalvadas as devidas proporções, à parte a democracia e o fim das guerras coloniais, o país evoluiu mas as condições de vida são praticamente as mesmas. Os salários continuam baixos, reformas de miséria, um indecente desprezo pelas pessoas, duas classes marcadamente a dividir a nação: a dos políticos com todas as mordomias, o resto a ver passar o progresso e a justiça social; a pobreza a crescer todos os dias. As estatísticas dizem que já não somos analfabetos. Todavia, não fomos ensinados a pensar, nem convém; basta-nos alinhar duas linhas do programa da quarta classe, para gostar de futebol, concursos televisivos, festas e arrais e anotar nas estatísticas oficiais que somos cultos. 

         - Quando os dirigentes diziam a meio do ano passado que a Covid-19 já era, o que os números (impressionantes) nos apresentam é a sua irresponsabilidade para com os cidadãos em particular médicos e enfermeiros, pessoal auxiliar, etc. Números recorde estão a sair todos os dias por cá e por todo o mundo, mostrando que o que se exigiria aos governantes era, no mínimo, se mantivessem de sobreaviso. Os EUA tiveram ontem um milhão de casos de covid-19, no mundo inteiro 292 milhões identificados desde o início da pandemia, 5,4 milhões de mortes, segundo a universidade norte-americana Johns Hopkins publicados no Público de hoje. Por cá, os novos infectados, ultrapassam os 10 mil. Dizem os médicos que uma grande percentagem é dos que não se quiseram vacinar, e vai daí estuda-se já na UE a sua obrigatoriedade. Sou contra. Já não me oponho a que sejam obrigados a pagar as despesas da hospitalização.  


segunda-feira, janeiro 03, 2022

Segunda, 3.

Quant à moi, quand l´argent vient, je dis tant mieux sans transport et quand il ne vient pas, je dis tant pis, sans chagrin aucun. L´argent n´étant pas le but, ne doit pas être la precupation. Il n´est non plus la vraie preuve du succès puisque tant de choses nulles ou mauvaises font de l´argent. George Sand em conversa epistolar com Gustave Flaubert num momento em que os dois se lamentam da falta de dinheiro. (Correspondance, Ed. Le Passeur, pag. 229) 

         - Estive a ler com grande interesse a entrevista que Sobrinho Simões deu ontem ao Jornal de Notícias. Temos tão poucas pessoas livres, a pensar pela sua cabeça, dispostas a dizer o que pensam sem olhar às consequências pessoais e de carreira, que é um grande presente de Natal poder usufruir por momentos de cérebros esclarecidos como o seu. Três parágrafos que vale a pena reter:

         “As ciências do lado das humanidades estão a falhar. E a saúde é muito complicada, porque não dá votos nem dinheiro. Vivemos numa sociedade que depende, para fazer dinheiro e para ter votos, da doença.”

         “O político o que quer é tratar doenças. Não ganha votos se disser que estamos todos felizes e saudáveis.”

         “Eu gostava muito de voltar a ter uma ideia do público que fosse o resultado de um compromisso de regime que não dependesse agora do partido A, B ou C, porque estes partidos, tal como estão, não estão a resolver os problemas da sociedade.” 

         Somos poucos, cada vez menos, os espíritos livres e corajosos, mas espero que os portugueses que consentem por omissão e desinteresse manter uma classe política pouco preparada, egoísta e corrupta, pensem mais naquilo que é fundamental e deixem de parte a forma de vida que vem do fascismo e a esquerda combateu e agora por ambição de votos e poder, alimenta.  

         - Manhã passada numa caixa de nevoeiro depois de nove horas seguidas de sono reparador. O silêncio que nunca é absoluto, esteve hoje alojado junto ao tapete de erva que cobre a quinta. A TSF, quando acordei, falou de debates políticos nas televisões – não vi, não vejo, porque é sempre o mesmo paleio, botado de bocas mentirosas, espécie de espectáculo insuportável, num português de caserna, que para minha sanidade mental me recuso a assistir. 


domingo, janeiro 02, 2022

2 de Janeiro. 

Mais um ano! Receoso de conhecer por antecipação que registos vou aqui adjudicar, sendo certo que a tão proclamada “esperança” é a arma dos corruptos, dos políticos sectários e a expectativa do povo que dela espera todas as desgraças. A esperança que é do domínio da crença cristã, e tem o sentido apontado para lá deste mundo, é arma que os poderosos e os hipócritas esgrimem para se manterem à tona sem mugirem na defesa dos seus interesses criminosos. 

         - De contrário, que quer dizer aquela trintena de cidadãos de esquerda, signatários de um documento dirigido à si próprios, onde afirmam ser “indispensável que se aproveite a oportunidade que se abre em 30 de janeiro para retribuir a confiança política de quem votou naqueles partidos”, reforçando que “só a convergência do centro-esquerda e das esquerdas” pode proporcionar “melhores condições de vida a todos e promovendo o desenvolvimento do país”. Que lata! Então porque não fizeram quando estiveram reunidos? Enfim, mais do mesmo. Espero, sinceramente, que os portugueses não se iludam e dêem a maioria aos socialistas. 

         - Os votos cínicos não param. Até aquela editora que me acha um génio e um fracasso porque não lhe dou 2 mil euros para me editar, como aquela outra que me ficou a dever 12 mil euros de direitos de autor, não me largam. Devem estar naquela: “Água mole em pedra dura tanto bate até que a fura.”

         - A tristeza deste Fim de Ano, ainda não deixou o rosto dos portugueses. Reinação é com eles, como é com eles a praia, o futebol, os concursos televisivos, a palração dos programas da manhã nas televisões, etc. Mas as gentes daqui não se podem queixar. A noite de São Silvestre, vista das janelas desta casa que, portanto, está num vale e isolada do conglomerado habitacional, foi um ribombar de foguetes antes e depois da meia-noite. O céu todo em volta, eram rabilongos de luz que iam de Palmela, atravessava todas as freguesias, até ao Seixal. Foi lindo de se ver. Até o Black fosse porque nunca vira igual ou porque o seu cérebro se pusesse a conjurar coisas dos humanos, do parapeito onde estava comigo não abandonou. Parecia tão feliz como eu a admirar aquelas cornucópias que subiam ao céu numa noite estrelada e serena. O espectáculo durou mais de meia hora. 

         - Agora, o que me reteve quase duas horas de olhos postos no ecrã, foi o Concerto de Ano Novo de Viena d´Áustria. Há anos que não perco um, mas ontem foi diferente porque tudo me recordava a minha estada na capital austríaca antes da pandemia. Corri o centro histórico com aquele par de cicerones que apareceu a ilustrar as valsas dos irmãos Strauss Josef e Eduard. David Barenboim foi o maestro que dirigiu o grupo de músicos da orquestra estatal, com a originalidade, a dada altura, de os pôr a cantar substituindo os seus instrumentos pela voz que é de todos o melhor. Ao admirar o interior dourado, repleto como é norma de flores, cheio de gente civilizada, amante de música clássica (naquele momento mais ligeira e erudita), onde havia, pelo menos duas vezes deambulado, não só na plateia como no primeiro andar com seu bar onde as senhoras de vestidos de noite e os homens de smoking, bebiam uma flute de champanhe quase ao preço do bilhete de entrada; sem esquecer a escadaria, tantas vezes aparecida em filmes, tudo aquilo mais o que a nostalgia carregada de memórias me devolveu, deixou-me ensimesmado do que fora o Império Austro-Húngaro. Estivera, precisamente, nesta altura em Viena, uma cidade coberta de neve que caiu sempre em abundância, transformando os meus dias na magia civilizacional de um país onde cabe o futebol e na mesma dimensão a cultura.   

Ópera estatal de Viena

Espaços de silêncio e beleza

A Catedral sob o manto de neve. A personagem eclipsa-se nos agasalhos  

         - Ontem tive um dia extremamente recheado de trabalho. De manhã enchi a máquina de roupa, sequei-a ao sol, dobrei-a para a Piedade dar a ferro, fiz o almoço, li duas horas, depois com a roçadora devastei a erva que pulou do relvado diante do salão (hoje terminei), tomei um duche e já não fiz mais nada que jeito tivesse entregue ao telefone que não parou um segundo: Francis, Christian, Maria José, Fortuna, o meu sobrinho, Carmo e não sei quem mais quem para o caso pouco interessa. Ao serão deliciei-me com duas horas e meia de velhas canções francesas no canal 2.