segunda-feira, janeiro 17, 2022

Segunda, 17.

Devo ir em metade do grosso  volume da correspondência entre Sand e Flaubert. E voilà que o solitário de Croisset, a páginas 347, depois de enterrar o seu amigo íntimo Bouihet, não podendo mais de sofrimento, desabafa com a sua amiga (melhor com o seu amigo) George Sand: “Je sens plus le besoin d´écrire, parce que j´écrivais spècialement pour un seul être qui n´est plus. Voilà le vrai.” Francis, que me tinha alertado para esta revelação, mais uma vez se comportou como un grand connaisseur. Mais adiante, na carta desesperada, acrescenta: “Je ne demanderais pas mieux que de me rejeter sur une affection nouvelle. Mais comment? Presque tous mes vieux amis sont mariés officiels (o itálico é do escritor). Pois. Já em 1870 os faz-de-conta existiam e... casados, perdão, bem casados. 

         - Refeito da vista, eis que me entrego com paixão ao terceiro volume do diário de Julien Green e de uma assentada devorei as primeiras 50 páginas. Green voltou dos EUA, a guerra na Europa terminou, embora o rasto bélico e de humilhação ainda não desaparecesse das ruas de Paris. Robert, “mon Robert, mon bien aimé”, não veio com ele, acompanha-o a irmã e ambos encontram a sua cidade submersa na fome, na miséria, no frio atroz. Não têm onde ficar, aceitam o gesto amável de uma amiga que os aloja em sua casa. O milieu artístico e intelectual está mudado. Sartre e Camus impõem-se; Green percebe que já não reina como antes da Segunda Grande Guerra. Depois... bem depois as ruas da cidade voltam a ser um perigo, a beleza dos corpos masculinos desorientam-no, o místico contranatura, vai lutar desesperadamente olhando de soslaio os físicos que não o deixam sossegar. A par da revelação de muitos dos seus amigos terem colaborado com os nazis (Cocteau, Lacretelle, Cassou, Morand, entre outros), alguns chegaram a exercer sevícias (caso de Cassou); outros louvaram com palavras escritas a glória do invasor. É dos múltiplos almoços e jantares que aceita todos os dias, que regressa a casa cabisbaixo, revoltado, envergonhado com a miséria humana daqueles que julgava imunes a tais conivências. Quatro anos de guerra, assolaram a moral e os princípios que ele julgava eternos. Por agora, a preocupação maior é encontrar casa para morar e trabalhar. Robert regressará em breve – é essa ânsia que lhe dá animo e vida.  

         - Dele esta frase que julgo ter anotado quando li o Diário publicado em vida de Green: “Un journal est une longue lettre que l´auteur s´écrit à lui-même, et le plus étonant de l´histoire est qu´il se donne à lui-même de ses propres nouvelles.” 

         - Estou no meu melhor, conseguindo desde que cheguei de Paris, atingir e manter os meus bons e sólidos 63 quilos de peso. 

         - Dia esplendoroso, jornada de labor sucessivo: trabalho no romance, leituras, prosseguimento do corte da erva defronte da casa, fiz um bolo de laranja que conto pôr na mesa amanhã ao receber para almoçar Nieto. Imprimi as primeiras 13 páginas para ver o que me saiu. Na realidade não sei nada da história porque, a dada altura, tudo se precipitou e eu já não tive controlo sobre nenhuma das personagens. É extremamente fascinante como tudo acontece em catadupa, como se a narrativa fosse a leitura de um facto transposto para a escrita a ocorrer naquele preciso momento.