Domingo, 31.
Na noite em que o Couto veio sibilar aos
meus ouvidos o número 35 mil e que eu não consegui decifrar ao acordar que
queria dizer, mas tinha ficado no meu pensamento, recebi um postal dele e da
Zitó de férias no Algarve. É um texto que me fez pensar nos tempos das férias
grandes como então se dizia, e nos permitia passar três meses na ociosidade
total, entre Albufeira, Lisboa e Foz do Douro.
“Helder neste cantinho da costa algarvia (Praia do Cabeço) vão-se passando belos dias juntos a um mar quente e longo areal, por onde fazemos algumas caminhadas, para descontrair. Os fins de tarde são muito bons e acabamos por nos deliciar lendo e conversando.
“Helder neste cantinho da costa algarvia (Praia do Cabeço) vão-se passando belos dias juntos a um mar quente e longo areal, por onde fazemos algumas caminhadas, para descontrair. Os fins de tarde são muito bons e acabamos por nos deliciar lendo e conversando.
Espero também que esses mergulhos na piscina sirvam para atenuar este
Verão quente...”
Era assim que os amigos e as pessoas educadas transmitiam os seus estados d´alma e com um simples postal assinalavam a lembrança do amigo que está distante, tudo antes dos sms, dos mails e da alienação comunicacional que remeteu para o fosso do vulgar o terno momento da escrita enluvada do pensamento sincero.
Era assim que os amigos e as pessoas educadas transmitiam os seus estados d´alma e com um simples postal assinalavam a lembrança do amigo que está distante, tudo antes dos sms, dos mails e da alienação comunicacional que remeteu para o fosso do vulgar o terno momento da escrita enluvada do pensamento sincero.
- De facto, meu caro Couto, tenho-me deliciado com braçadas enérgicas e
o júbilo da água cristalina, enfim, na sequência de uma semana que não consegui
trazer o PH para níveis compatíveis. Acresce que como em torno da piscina
existem várias figueiras, tenho enquanto mergulho o perfume das árvores e a
beleza dos figos a engrossar e a incensar o ar do seu aroma milenar. Praia do
Cabeço qual carapuça!...
- A propósito de sonhos. Adianto que não aprecio ver a sua descrição à
sorrelfa ou a martelo nos diários dos escritores. Green abusou, Junger idem, Jaccottet
é obsessivo e passo. Contudo, como este rememora os meus tempos de Coimbra, sou
tentado a trazê-lo aqui, porque ele me devolveu por uma noite, intactos, os
meus tempos de juventude. Era Verão. As noites cálidas atiravam para as ruas os
estudantes e as famílias. A televisão com os seus horrores e compreendendo a
marrequinha a incitar os saloios excitados pela fama a fazer sexo diante das
câmaras que os vigiam noite e dia, as telenovelas, os concursos a dar esmolas
na forma de prémios pagos pelos espectadores em chamadas telefónicas, e toda
essa caldeirada de espectáculos que entretêm o vácuo, ainda não existiam. Os
exames decorriam no Liceu D. João III, no Penedo da Saudade. A Avenida D.
Afonso Henriques onde o liceu tinha morada, era nessa altura uma avenida
coberta de árvores frondosas que iam desde o Carmelo de Santa Teresa à
frontaria do edifício escolar, e uma espécie de varanda sobre a cidade lá em
baixo onde não faltavam ao longo do passeio uns banquinhos para nos sentarmos. No
Verão toneladas de gente passeava depois do jantar, de trás para a frente, em
conversa amena, plácida, onde todos se conheciam e cumprimentavam, os rapazes
catrapiscavam as raparigas, e os serões assim passados pareciam tirados dos
livros de Júlio Dinis. Não se pense porém, que era a monotonia e o vazio que os
habitava. Pelo contrário, a multidão de peripatéticos exibiam um ar feliz,
distendido, e os passeios permitiam até um bom sono. Nós saímos do Colégio
Camões que não distava dali dez minutos a pé, em rebanho. Antes, parávamos no
café Madeira para um jogo de bilhar e a reunião de outros camaradas que, não
fazendo parte do colégio, estavam hospedados em casas particulares ou em Repúblicas.
Eu ia quase sempre com o Rui Cardoso e o irmão e lá juntava-me aos colegas do
lar. O “miudame” como lhe chamávamos, fervia de risinhos e olhinhos às
escondidas dos papás. Alguns Lentes cruzavam-se connosco de braço dado com as respectivas
consortes, muito importantes, de nariz empinado, achando que a cidade e todos
os estudantes lhe deviam vénia. Dias havia que quase não se podia circular -
tal a chusma de veraneantes. Terminados os exames, recrudescia o número e com
ele o ruído das vozes, dos passos raspando o asfalto. Então ouvia-se
nitidamente o eléctrico que vinha do Largo da Portagem e passava na rua de cima
para o Tovim. No ar pairava um ligeiro perfume de tília. Nós só tínhamos
permissão de ficar até às onze horas. Alguns não respeitavam o horário e era um
ver-se-te-avias no silêncio da noite a abrir as janelas do rés-do-chão por onde
entravam os fraldiqueiros noctívagos. Um sonho nostálgico que me iluminou o dia
da leve sensação de que a juventude é eterna.