terça-feira, março 31, 2020

Terça, 31.
Como se previa, a mentira é arma dos ditadores. Assim se repetiu com Xi Jinping ping ping. Mentiu quanto ao número dos mortos pelo vírus que disseminou. A quantidade de caixões que as famílias reclamam para dignamente fazer o enterro e o luto, é enorme e leva muitos chineses a passar dias inteiros para receber a urna com as cinzas dos entes queridos. O tirano que governa o país com mão de ferro e insensibilidade, tudo fez para que o vírus fizesse caminho. No começo da tragédia, mesmo no início, quando não lhe convinha travar a peste, forçou o mártir Dr. Li Wenliang a calar-se, obrigando-o a assinar uma confissão de que tinha espalhado “falsos rumores”, como o MRPP fazia aqui a seguir ao 25 de Abril. Mais: as primeiras vítimas, postas na Internet por chineses alarmados, desapareceram e ainda hoje não se sabe do seu paradeiro. Entre nós, gostava de ouvir uma palavra do PCP a denunciar estas prepotências, estes crimes, mas o que ouço é louvores ao dirigente chinês, remetendo para Trump as mesmas acusações. Dizem-me: “ele condenou e pôs na cadeia os dirigentes de Wuhan que não estiveram à altura”. Os que assim falam, são os que combateram Salazar e a sua censura. Ainda estão vivos, terão entre 60 e 80 anos, mas já se esqueceram que o líder fascista, não era tão assassino e diabólico como este que está à frente dos destinos de uma nação com biliões de seres humanos. Tal como no regime do Estado Novo, a mentira é a principal arma que segura à cabeça dos governos terroristas e ditadores. Transcrevo o lúcido e corajoso António Barreto no Público de 15 deste mês: “Como é cada vez mais evidente e provado em relatórios secretos, foi um acidente ocorrido nas instalações chinesas de investigação e produção de vírus e bactérias destinados à guerra biológica e que de qualquer maneira teriam o mundo ocidental como destino.”


         - O tempo associou-se a estes dias de negrume. Às janelas das nossas casas onde estamos apáticos a ver a vida passar, junta-se a tristeza de não vermos no horizonte um sorriso do sol a dar-nos esperança e coragem. Afundamo-nos na depressão cavada de  anfractuosidades abissais. Estamos mortos de tanto desejar viver. E ainda o enterro vai no adro. 

segunda-feira, março 30, 2020

Segunda. 30.
É inevitável e triste, mas não consigo passar ao largo da peste. Estamos confinados – eu sempre estive por vocação e opção – a permanecer em casa, a maioria apatetada com a existência que não sonhavam ser possível. Famílias inteiras a morrer de tédio, a inventar jogos que são modos de vida que carregam angustia, desespero, inadaptação, extravagância. Para a grande maioria a casa era o lugar de onde partiam manhã cedo e regressavam tarde para uma refeição reparadora, a sonolência diante da TV com suas patetices hipnotizadoras e a esteira onde estendiam o cadáver em esgotamento. A verdadeira ligação à mulher e aos filhos, fazia-se através dos espaços de passagem, por ralhos ou monossílabos, sem verdadeiramente se fixarem no rumor interior que debita o afecto e compõe o suporte de uma vida a dois. Hoje, mercê de um bicho minúsculo, travam a batalha da vida contra a morte, todos juntos naquele vale de lágrimas e confrontos, que sufoca, desencaminha o espírito, confronta a necessidade de um quotidiano que nasceu de uma loucura, de uma violência num qualquer momento tangível, surgido do fundo do tempo imobilizado, caprichoso e vagulo, dos corpos insaciáveis. Esta realidade, descoberta corpo a corpo, olhos nos olhos, espanto e incredulidade, paredes nuas e recantos onde o terriço da desordem estava adormecido, acorda a palpável e fria e hipócrita expressão “em família”, embalada pela agitação e loucura que a sociedade de consumo abafou. A seguir, todos juntos, vamos descobrir os vestígios mortíferos de um vírus porventura mais mortal que o coronavírus. O perigo é maior ainda quando penso não ser possível aliviar o cativeiro antes de Julho. Podemos não morrer da Covid-19, mas extinguimo-nos de tédio e depressão. Esta “guerra” foi muito bem pensada. Os seus autores ainda não foram mortos. Pelo contrário, vêm, cinicamente, em ajuda às suas vítimas. É a imagem de um mundo em retorno aos tempos do Antigo Testamento. 

         - E sair para quê num tempo de cidades, vilas e aldeias mortas, ruas e avenidas deixadas à fúria do vento e das assombrações, vazias da memória dos dias felizes, franqueadas de transeuntes, agora trancados em casa a olhá-las com olhos baços, através das vidraças opacas das habitações minúsculas, sem orações nas mesquitas, igrejas e sinagogas, amortalhadas no silêncio eterno das imagens que desceram ao esquecimento palpitante que faz dor, nostalgia e revolta. Só os sinos da cristandade de quando em vez soltam um gemido, um aceno de chamada ao começo do dia com as palavras santas como bengalas úteis ao frenesim de então. São eles, esses sons cintilantes que nos humanizam e dignificam, sentinelas da nossa passagem por uma época hoje amortalhada, subtraída ao nosso viver nacional, onde faltam os cafés lugares de fraternidade, discussão, as esplanadas cheias de sol e burburinho, por onde se escapuliam, correndo artérias e praças além, envolvidas naquela atmosfera que caracteriza a liberdade que outros nos quiseram roubar, controlar, amouxar, armados em anjos da guarda, as conversas fraternas e o convívio civilizado que num cordão sólido une a humanidade, sem constrangimentos sociais, nem epítetos de qualquer ordem. Quando a cidade estava aberta, ouvíamos os pássaros cantar às varandas, as vozes dos vizinhos apregoando saudações compassivas, o bruhaha das gentes com outra língua, respirávamos o odor a café que saía das chávenas quando caminhávamos nos passeios largos, a brisa da tarde vinda do rio, àquela hora densa atropelada de gente afadigada a caminho dos seus lares. Todo esse mundo sensível, pertence ao passado, foi-nos roubado para nos abolirem a liberdade e a democracia, o nosso estilo de vida, e como experiência para algo mais catastrófico. Um dia seremos invadidos por biliões de formigas sob o comando do formigão ao jeito de Hitler. É o nosso gólgota no século XXI.   
                                                                                                                   
         - Contei a Alice que outro dia, tendo ido ao supermercado, apanhei do chão um maço de tabaco intacto. Voltei para trás e fui oferecê-lo ao segurança que controlava as entradas. Ele disse-me que não fumava e eu respondi que o desse a quem fumasse. Logo a Alice: “pois, sempre a preocupação com os outros”.


         - Apesar do dia tenebroso a juntar-se à prisão forçada de milhões de portugueses, limpei com a máquina de pressão o terraço ou lounge como lhe chama o dondoco Neto. Fazendo de conta que nada se passa de perturbador, quero abrir a época de verão e montar um ponto de convívio à roda da mesa com o largo guarda-sol. Como todos os anos faço.

domingo, março 29, 2020

Domingo, 29.

“Se a natureza saudável do homem se sentisse no mundo como parte de um Todo, um Todo grande, belo, nobre e precioso, se o prazer de viver em harmonia com esse Todo lhe proporcionasse um êxtase livre, então, o universo, se tivesse consciência de si próprio, exultaria de alegria por ter alcançado o seu objectivo, e ficaria deslumbrado com a chegada a esse ponto alto do seu devir e do seu ser. (...) Para quê todo esse luxo de sóis, de planetas, de luas, de estrelas, de vias lácteas, de cometas, de nublosas, de mundos evoluídos e em evolução se, afinal, um homem feliz não consegue, de modo espontâneo, alegrar-se com a sua própria existência.” Goethe, Winkelmann.  


sábado, março 28, 2020

Sábado, 28.
Um amigo com responsabilidades na área da magistratura, telefonou-me. Perguntou-me de raspão se achava que o mundo ia acabar. Disse-lhe em jeito de brincadeira que o mundo talvez não, mas as pessoas era provável. Logo o vi alterado, debitando toda a sorte de crendices, numa agitação impressionante. Contou-me que tinha ido ao supermercado comprar o necessário para si, para a mulher e a filha, mas que lhe disseram que não devia tocar em nada e ele por força das circunstâncias teve conctato com objectos e pessoas. “Acha que fui contaminado? – Se lavou as mãos e conversou a uma distância de dois metros é pouco provável. – Então acha que devo lavar as mãos? – Sim, e vinte vezes ao dia durante quatro segundos com sabão.” O homem na sua agitação agradeceu-me muito, como se eu lhe tivesse revelado o princípio da preservação da vida. Desligado o telefone, pus-me a pensar: em que mundo vive este homem? Ele que devia estar na linha da frente do conhecimento, que por força da sua formação e notoriedade devia saber como se defender! Então, pensei, imagine-se a multidão de analfabetos que constitui o tecido humano do país, abatidos diante dos ecrãs, recebendo a diarreia de informação, cada uma com seu parecer e voz, baralhados e ansiosos por se lançarem na aventura dos dias desfraldados de irresponsabilidades ante um inimigo assustador!  

         - Inimigo que não escolhe idade nem condição social. Está infectado o Príncipe Carlos de Inglaterra, Boris Johnson, o seu médico e o Ministro da Saúde, assim como milhares de ingleses. Johnson julgou tratar-se de uma simples “gripezinha”, para utilizar a expressão irresponsável de Bolsonaro, e, assim sendo, deixou à solta o povo numa espécie de capoeira colectiva a criar anticorpos. Acontece que isto não é um contagio sazonal e, pior ainda, os médicos não compreendem a sua violência e modo de actuação no organismo. Por outro lado, aquela que se serve da velhice, numa espécie de eugenia, também não colhe. Em França, ontem, morreram em três dias uma bonita rapariga de 16 anos e um rapaz de 25. E se por cá muitos velhos acolhidos em lares estão infectados, foi porque os familiares os contaminaram do exterior.

         - Os Estados Unidos são agora o primeiro país no mundo atingido pela Covid-19. Por culpa do seu governador e construtor civil Donald Trump, ultrapassando a nação onde o bicho foi criado, a China. São 100 milhões de americanos doentes, sem seguro de vida, sem dinheiro e sem emprego. Mesmo assim o idiota, mantém as festividades da Páscoa e há mesmo um grupo de jovens grunhos e imbecis que organizou “a festa do coronavírus” para que a economia – sempre esta peçonha que se cola aos gananciosos como doença pior que o coronavírus – não sofra da recessão de outros tempos recentes.

         - O Papa Francisco, inspirando-se do Evangelista Marcos, deu-nos este belo e oportuno texto: “Na nossa avidez de lucro, deixamo-nos absorver pelas coisas e transtornar pela pressa. Não nos detivemos perante os teus apelos, não despertamos face a guerras e injustiças planetárias, não ouvimos o grito dos pobres e do nosso planeta gravemente enfermo. Avançamos, destemidos, pensando que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente. Agora, sentindo-nos em mar agitado, imploramos-Te: «Acorda, Senhor!»”

         - Eu gostava que as coisas fossem todavia mais claras. Por exemplo, quanto nos vai custar o material de protecção encomendado à China; quanto nos custa a súbita disponibilidade dos hospitais e clínicas privadas para acolher os doentes com coronavírus, sendo revoltante o que li sobre a sua exigência de “pagamento imediato” da dívida do Estado, numa espécie de chantagem inadmissível neste momento.

         - Há uma entrevista que Maria do Céu Padrão Neves, catedrática de Ética, deu ao Público quinta-feira, que merece uma reflexão nestas páginas. Não conhecia a Senhora e fiquei profundamente impressionado com o que disse a tal ponto que quero pensar com calma na sua análise dos tempos presentes. Encontrar um cérebro assim, é uma descoberta que nos suspende.

         - Nestas últimas duas semanas foi a debandada. Tantos nos deixaram, com ou sem Covid-19: Patxi Andión que eu corria para assistir aos seus concertos, Vasco Pulido Valente, Tozé Martinho  que eu conheci através da Isabel, o discreto Norberto Barroca com quem me sentei tantas vezes na Brasileira, Manuel Jorge Veloso o nosso alegre homem do Hot Club que fez furor na minha juventude, para não citar outros artistas estrangeiros lembrando-me agora do fabuloso saxofonista Manu Dibango, com coronavírus, em Paris.   


         - Dia inundado de luz servido por brisa suave. Terminei de roçar a erva no espaço entre a casa e a piscina. Fiz sopa de cenoura. Escrevi umas quantas linhas no romance para as barrar logo depois. Não saí para honrar aquelas e aqueles que me dizem ler, melhor dizendo, liam nas noites de serviço nos hospitais, médicos e enfermeiras, estas páginas de um insubmisso. Honra vos seja feita e não vos falte as forças e o desânimo não vos consuma.  

sexta-feira, março 27, 2020

Sexta, 27.
Obtuso todo o dia de ontem. Não obstante o prazer de ter conduzido até ao supermercado, não sem antes ter feito a barba, tomado duche como se fosse para o trabalho de um dia comum. Poucas ou nenhumas leituras. Como nenhum trabalho lá fora. Um dia desequilibrado, sem escrita, larvar. 

         - Deve-se viver um dia de cada vez. Nada de pensar que isto vai durar até Junho ou mesmo Agosto. O importante é mantermo-nos sólidos, ocupados com pequenas e grandes coisas, se possível com rotinas que formos construindo à medida que o tempo passa; estarmos curiosos e interessados nos destinos dos outros, telefonar-lhes para uma conversa longa ou curta. A quem os dejectos da TV entretenham, não hesite; se um vizinho vem à nossa porta não lhe voltemos as costas, conversemos com ele a dois metros de distância; ocupemo-nos da casa, mudemos a decoração, leiamos, aproveitando para aprofundar assuntos que nos interessam, façamos planos para quando a vida retornar aos carris saudáveis e humanos. Os crentes sabem da sua obrigação ante um desastre desta natureza.

         - Desde que há semanas quando acabei o ensaio do filósofo Pierre Hadot, pus-me a pensar no Caduceu de Hermes. Isto porque me lembro de ter visto há uns anos com Robert (sem a Annie) no Museu de Saint-Germain-en-Laye, a famosa composição mas com a serpente invertida, ao invés do Caduceu de Macróbio, que tanto Tyché como Daimon cingem Éros no cume com Ananké mais a baixo e as asas no sopé, aquela oferece um simbolismo, que digo eu, com maior vigor. O pau não acompanha de alto a baixo Caduceu, mas a força fálica é impressionante. Se Daimon é o nascimento e Tyché a juventude; Éros a adolescência, Ananké a velhice; estas fazes da vida humana contêm em si a pujança que os Gregos diziam acompanhar o destino do homem. Macróbio diz que o Caduceu (cito de memória Hadot) na forma das duas serpentes, macho e fêmea, entrelaçadas, são Tyché e Daimon, ou seja o Sol e a Lua e as bocas num beijo é Éros. Na Antiguidade o nó que as duas víboras fazem, dizia-se ser o nó de Hércules, portanto, a força que não se separa. Este nó é Ananké, depois as duas serpentes formam um segundo círculo, com as pontas enroladas no bastão de onde nascem duas asas. Eis segundo Macróbio que cada uma das divindades determinam o nosso destino. “Muitos prodígios há, porém nenhum maior do que o homem”, acrescentou depois Sófocles.

         - A Annie telefonou para se lamentar de não chegar hoje conforme o combinado. Embora me tivesse enternecido com a lembrança, voltei a passar-lhe um raspanete por saber que deixa a casa para ir ao supermercado. “São só duas vezes por semana, diz-me ela. Vou buscar fruta e legumes frescos. – Manda-os vir. São só cinco euros. – Mas eu gosto de ver e depois o Carrefour está quase vazio.” Nada a fazer.


         - Hoje voltei a sair para comprar um cavalete e o jornal. Há tanto trabalho a realizar aqui, que muitas vezes relaxo e entrego-me a uma certa ociosidade leviana. E no entanto a luz do sol atrai-me, suga-me lá para fora onde tanta coisa me espera. Mas olho para o lado, e vejo um livro aqui outro ali, e colo os olhos às suas páginas e deixo o tempo deslizar até não ser dia. Entretanto, vou reunindo os exemplares dispersos por todo o lado e levo-os lá para cima. Mesas e cadeiras vão em breve exercer a acção para que foram construídas.