sexta-feira, março 20, 2020

Sexta, 20.
“Estou por aqui com o coronavírus” disse eu ontem. Na verdade a mediocridade dos agentes de televisão é tal e tanta que o que fazem é encher tempo. E fazem-no por ignorância, incapacidade, superficialidade, vaidade. Dão tempo vazio, oco aos espectadores, cheio apenas daquilo que eles próprios não possuem: gosto, cultura, dádiva, generosidade e alegria.  Tudo aquilo, dos rostos risonhos à hipocrisia solidária, cheira a falso, a dondocas malucas, a saloiada esquisita.

         - Depois de dois dias de reclusão, fui esta manhã ao Alegro de Setúbal comprar o Público e fazer algumas compras no supermercado. Coisas como álcool e lixívia foram usurpadas, as carnes desapareciam logo na abertura do estabelecimento. Um gordo à minha frente, atirou-se a seis caixas de frango, qualquer coisa como 48 pernas do dito cujo. Disse-lhe: “Não açambarque tanto”, respondeu-me: “é para a minha filha”. Só o Auchan se mantinha a funcionar, todas as lojas do vasto espaço de dois pisos, estavam encerradas. Junto às caixas, um muro de papel higiénico. Disse para a rapariga em ar de gozo: “Há assim tanta gente aflita!” ela, rindo-se: “Daqui a nada já não existe num um rolo.” De um modo geral havia ordem, as pessoas respeitavam-se e o espaço entre elas era correcto. Nas ruas pouca gente, carros circulavam sem problema. Parecia que a vida normal era por estas paragens uma rotina.  

         - Mais um louvor a António Costa, eu que tanta desconfiança tenho da sua gestão. Em contraponto com Marcelo Rebelo de Sousa, ele que tem a direcção do país, mostrou-se à altura: não impôs o estado de emergência, fez confiança nas pessoas, foi cuidadoso para que a situação não descambe em violações da democracia e dos direitos dos cidadãos, todo o catálogo das restrições é lógico, compreendido pela população que se vai adaptando às circunstâncias. Costa, enfim, deixou de fazer politiquice, governa na verdadeira e pura acepção da palavra. A magia passou agora para o CDS e BE que se querem aproveitar do momento... fazendo política. O primeiro estreitado os velhinhos coitadinhos; o segundo os trabalhadores. São cínicos e novos-cristãos da solidariedade humana.

         - Sempre que acabo uma sessão com a roçadora, exausto, abraço uma laranjeira e colho da árvore o meu remédio diário. Neste momento os citrinos estão em flor e o perfume volteja por todo o lado. São momentos de magnânimo prazer, um sentimento de protecção tolha-me a absorver não só a beleza como o instante de graça.




         - A catalogação dos livros faz-se deste modo: autores estrangeiros na biblioteca de cima, nacionais na do salão. Aconteceu que encontrei perdido entre os estrangeiros José Saramago e o seu A Bagagem do Viajante. Tem uma dedicatória simpática do autor e está datado assim: “Feira do Avante 76.” Lembro-me da noite em que fomos – ele, a Isabel e eu – à FIL onde a primeira Festa do Avante aconteceu. O último livro oferecido e dedicado, A Viagem a Portugal, 1981, com participação da Isabel e por isso dedicado por ambos, põe fim ao nosso relacionamento, quero dizer entre Saramago e eu, posto que relativamente à autora de Viver com Outros continuou. Para trás tenho praticamente tudo de José Saramago porque a nossa amizade levava-o a oferecer-me a sua prolifera obra. Esse rompimento está narrado algures nestas páginas. Acrescento, contudo, que Saramago ou o José, me faz imensa falta. Nem sempre estivemos em sintonia, mas a sua verticalidade é exemplo que quero seguir e como ele costumava dizer: o que me pertence a mim virá (se não eram estas as exactas palavras, o sentido era este).

         - Terminei a leitura do segundo volume de Bíblia (os Livros Sapienciais) na tradução de Frederico Lourenço. Palavra a palavra, linha a linha, página a página fui trilhando aquele espesso volume que comecei a ler ao mesmo tempo que o Journal Intégral de Green, com preferência neste e, portanto, muitas vezes pondo de lado aquele. Há muita coisa incompreensível como acontece nos textos do  Antigo Testamento. Não é por acaso que os estudos prosseguem e não têm fim. Neste volume, interessou-me especialmente esta versão grega dos Provérbios de Salomão que se pensa ter sido escrita entre 100 e 170 a.C.   


         - Tempo de lágrimas, tempo sem memória. Todo o dia choveu e o frio compôs o quadro depressivo. Compreendo que para muitos dos meus concidadãos seja difícil ficar confinados a casa.  19 horas e 22 minutos.