Sexta,
20.
“Estou
por aqui com o coronavírus” disse eu ontem. Na verdade a mediocridade dos
agentes de televisão é tal e tanta que o que fazem é encher tempo. E fazem-no
por ignorância, incapacidade, superficialidade, vaidade. Dão tempo vazio, oco
aos espectadores, cheio apenas daquilo que eles próprios não possuem: gosto,
cultura, dádiva, generosidade e alegria.
Tudo aquilo, dos rostos risonhos à hipocrisia solidária, cheira a falso,
a dondocas malucas, a saloiada esquisita.
- Depois de dois dias de reclusão, fui
esta manhã ao Alegro de Setúbal comprar o Público e fazer algumas compras no
supermercado. Coisas como álcool e lixívia foram usurpadas, as carnes
desapareciam logo na abertura do estabelecimento. Um gordo à minha frente, atirou-se
a seis caixas de frango, qualquer coisa como 48 pernas do dito cujo. Disse-lhe:
“Não açambarque tanto”, respondeu-me: “é para a minha filha”. Só o Auchan se
mantinha a funcionar, todas as lojas do vasto espaço de dois pisos, estavam
encerradas. Junto às caixas, um muro de papel higiénico. Disse para a rapariga
em ar de gozo: “Há assim tanta gente aflita!” ela, rindo-se: “Daqui a nada já
não existe num um rolo.” De um modo geral havia ordem, as pessoas
respeitavam-se e o espaço entre elas era correcto. Nas ruas pouca gente, carros
circulavam sem problema. Parecia que a vida normal era por estas paragens uma
rotina.
- Mais um louvor a António Costa, eu
que tanta desconfiança tenho da sua gestão. Em contraponto com Marcelo Rebelo
de Sousa, ele que tem a direcção do país, mostrou-se à altura: não impôs o
estado de emergência, fez confiança nas pessoas, foi cuidadoso para que a
situação não descambe em violações da democracia e dos direitos dos cidadãos,
todo o catálogo das restrições é lógico, compreendido pela população que se vai
adaptando às circunstâncias. Costa, enfim, deixou de fazer politiquice, governa
na verdadeira e pura acepção da palavra. A magia passou agora para o CDS e BE
que se querem aproveitar do momento... fazendo política. O primeiro estreitado
os velhinhos coitadinhos; o segundo os trabalhadores. São cínicos e
novos-cristãos da solidariedade humana.
- Sempre que acabo uma sessão com a
roçadora, exausto, abraço uma laranjeira e colho da árvore o meu remédio
diário. Neste momento os citrinos estão em flor e o perfume volteja por todo o
lado. São momentos de magnânimo prazer, um sentimento de protecção tolha-me a
absorver não só a beleza como o instante de graça.
- A catalogação dos livros faz-se deste
modo: autores estrangeiros na biblioteca de cima, nacionais na do salão. Aconteceu
que encontrei perdido entre os estrangeiros José Saramago e o seu A Bagagem do Viajante. Tem uma
dedicatória simpática do autor e está datado assim: “Feira do Avante 76.” Lembro-me
da noite em que fomos – ele, a Isabel e eu – à FIL onde a primeira Festa do
Avante aconteceu. O último livro oferecido e dedicado, A Viagem a Portugal, 1981, com participação da Isabel e por isso dedicado
por ambos, põe fim ao nosso relacionamento, quero dizer entre Saramago e eu,
posto que relativamente à autora de Viver
com Outros continuou. Para trás tenho praticamente tudo de José Saramago
porque a nossa amizade levava-o a oferecer-me a sua prolifera obra. Esse rompimento
está narrado algures nestas páginas. Acrescento, contudo, que Saramago ou o
José, me faz imensa falta. Nem sempre estivemos em sintonia, mas a sua
verticalidade é exemplo que quero seguir e como ele costumava dizer: o que me
pertence a mim virá (se não eram estas as exactas palavras, o sentido era
este).
- Terminei a leitura do segundo volume
de Bíblia (os Livros Sapienciais) na tradução de Frederico Lourenço. Palavra a
palavra, linha a linha, página a página fui trilhando aquele espesso volume que
comecei a ler ao mesmo tempo que o Journal
Intégral de Green, com preferência neste e, portanto, muitas vezes pondo de
lado aquele. Há muita coisa incompreensível como acontece nos textos do Antigo Testamento. Não é por acaso que os
estudos prosseguem e não têm fim. Neste volume, interessou-me especialmente esta
versão grega dos Provérbios de Salomão que se pensa ter sido escrita entre 100 e 170 a.C.
- Tempo de lágrimas, tempo sem memória.
Todo o dia choveu e o frio compôs o quadro depressivo. Compreendo que para
muitos dos meus concidadãos seja difícil ficar confinados a casa. 19 horas e 22 minutos.