sábado, março 28, 2020

Sábado, 28.
Um amigo com responsabilidades na área da magistratura, telefonou-me. Perguntou-me de raspão se achava que o mundo ia acabar. Disse-lhe em jeito de brincadeira que o mundo talvez não, mas as pessoas era provável. Logo o vi alterado, debitando toda a sorte de crendices, numa agitação impressionante. Contou-me que tinha ido ao supermercado comprar o necessário para si, para a mulher e a filha, mas que lhe disseram que não devia tocar em nada e ele por força das circunstâncias teve conctato com objectos e pessoas. “Acha que fui contaminado? – Se lavou as mãos e conversou a uma distância de dois metros é pouco provável. – Então acha que devo lavar as mãos? – Sim, e vinte vezes ao dia durante quatro segundos com sabão.” O homem na sua agitação agradeceu-me muito, como se eu lhe tivesse revelado o princípio da preservação da vida. Desligado o telefone, pus-me a pensar: em que mundo vive este homem? Ele que devia estar na linha da frente do conhecimento, que por força da sua formação e notoriedade devia saber como se defender! Então, pensei, imagine-se a multidão de analfabetos que constitui o tecido humano do país, abatidos diante dos ecrãs, recebendo a diarreia de informação, cada uma com seu parecer e voz, baralhados e ansiosos por se lançarem na aventura dos dias desfraldados de irresponsabilidades ante um inimigo assustador!  

         - Inimigo que não escolhe idade nem condição social. Está infectado o Príncipe Carlos de Inglaterra, Boris Johnson, o seu médico e o Ministro da Saúde, assim como milhares de ingleses. Johnson julgou tratar-se de uma simples “gripezinha”, para utilizar a expressão irresponsável de Bolsonaro, e, assim sendo, deixou à solta o povo numa espécie de capoeira colectiva a criar anticorpos. Acontece que isto não é um contagio sazonal e, pior ainda, os médicos não compreendem a sua violência e modo de actuação no organismo. Por outro lado, aquela que se serve da velhice, numa espécie de eugenia, também não colhe. Em França, ontem, morreram em três dias uma bonita rapariga de 16 anos e um rapaz de 25. E se por cá muitos velhos acolhidos em lares estão infectados, foi porque os familiares os contaminaram do exterior.

         - Os Estados Unidos são agora o primeiro país no mundo atingido pela Covid-19. Por culpa do seu governador e construtor civil Donald Trump, ultrapassando a nação onde o bicho foi criado, a China. São 100 milhões de americanos doentes, sem seguro de vida, sem dinheiro e sem emprego. Mesmo assim o idiota, mantém as festividades da Páscoa e há mesmo um grupo de jovens grunhos e imbecis que organizou “a festa do coronavírus” para que a economia – sempre esta peçonha que se cola aos gananciosos como doença pior que o coronavírus – não sofra da recessão de outros tempos recentes.

         - O Papa Francisco, inspirando-se do Evangelista Marcos, deu-nos este belo e oportuno texto: “Na nossa avidez de lucro, deixamo-nos absorver pelas coisas e transtornar pela pressa. Não nos detivemos perante os teus apelos, não despertamos face a guerras e injustiças planetárias, não ouvimos o grito dos pobres e do nosso planeta gravemente enfermo. Avançamos, destemidos, pensando que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente. Agora, sentindo-nos em mar agitado, imploramos-Te: «Acorda, Senhor!»”

         - Eu gostava que as coisas fossem todavia mais claras. Por exemplo, quanto nos vai custar o material de protecção encomendado à China; quanto nos custa a súbita disponibilidade dos hospitais e clínicas privadas para acolher os doentes com coronavírus, sendo revoltante o que li sobre a sua exigência de “pagamento imediato” da dívida do Estado, numa espécie de chantagem inadmissível neste momento.

         - Há uma entrevista que Maria do Céu Padrão Neves, catedrática de Ética, deu ao Público quinta-feira, que merece uma reflexão nestas páginas. Não conhecia a Senhora e fiquei profundamente impressionado com o que disse a tal ponto que quero pensar com calma na sua análise dos tempos presentes. Encontrar um cérebro assim, é uma descoberta que nos suspende.

         - Nestas últimas duas semanas foi a debandada. Tantos nos deixaram, com ou sem Covid-19: Patxi Andión que eu corria para assistir aos seus concertos, Vasco Pulido Valente, Tozé Martinho  que eu conheci através da Isabel, o discreto Norberto Barroca com quem me sentei tantas vezes na Brasileira, Manuel Jorge Veloso o nosso alegre homem do Hot Club que fez furor na minha juventude, para não citar outros artistas estrangeiros lembrando-me agora do fabuloso saxofonista Manu Dibango, com coronavírus, em Paris.   


         - Dia inundado de luz servido por brisa suave. Terminei de roçar a erva no espaço entre a casa e a piscina. Fiz sopa de cenoura. Escrevi umas quantas linhas no romance para as barrar logo depois. Não saí para honrar aquelas e aqueles que me dizem ler, melhor dizendo, liam nas noites de serviço nos hospitais, médicos e enfermeiras, estas páginas de um insubmisso. Honra vos seja feita e não vos falte as forças e o desânimo não vos consuma.