Sexta,
27.
Obtuso
todo o dia de ontem. Não obstante o prazer de ter conduzido até ao
supermercado, não sem antes ter feito a barba, tomado duche como se fosse para
o trabalho de um dia comum. Poucas ou nenhumas leituras. Como nenhum trabalho
lá fora. Um dia desequilibrado, sem escrita, larvar.
- Deve-se viver um dia de cada vez.
Nada de pensar que isto vai durar até Junho ou mesmo Agosto. O importante é
mantermo-nos sólidos, ocupados com pequenas e grandes coisas, se possível com
rotinas que formos construindo à medida que o tempo passa; estarmos curiosos e
interessados nos destinos dos outros, telefonar-lhes para uma conversa longa ou
curta. A quem os dejectos da TV entretenham, não hesite; se um vizinho vem à nossa
porta não lhe voltemos as costas, conversemos com ele a dois metros de
distância; ocupemo-nos da casa, mudemos a decoração, leiamos, aproveitando para
aprofundar assuntos que nos interessam, façamos planos para quando a vida
retornar aos carris saudáveis e humanos. Os crentes sabem da sua obrigação ante
um desastre desta natureza.
- Desde que há semanas quando acabei o
ensaio do filósofo Pierre Hadot, pus-me a pensar no Caduceu de Hermes. Isto
porque me lembro de ter visto há uns anos com Robert (sem a Annie) no Museu de
Saint-Germain-en-Laye, a famosa composição mas com a serpente invertida, ao
invés do Caduceu de Macróbio, que tanto Tyché
como Daimon cingem Éros no cume com Ananké mais a baixo e as asas no sopé, aquela oferece um
simbolismo, que digo eu, com maior vigor. O pau não acompanha de alto a baixo
Caduceu, mas a força fálica é impressionante. Se Daimon é o nascimento e Tyché
a juventude; Éros a adolescência, Ananké a velhice; estas fazes da vida
humana contêm em si a pujança que os Gregos diziam acompanhar o destino do
homem. Macróbio diz que o Caduceu (cito de memória Hadot) na forma das duas
serpentes, macho e fêmea, entrelaçadas, são Tyché
e Daimon, ou seja o Sol e a Lua e as
bocas num beijo é Éros. Na
Antiguidade o nó que as duas víboras fazem, dizia-se ser o nó de Hércules, portanto,
a força que não se separa. Este nó é Ananké, depois as duas serpentes formam um
segundo círculo, com as pontas enroladas no bastão de onde nascem duas asas.
Eis segundo Macróbio que cada uma das divindades determinam o nosso destino. “Muitos
prodígios há, porém nenhum maior do que o homem”, acrescentou depois Sófocles.
- A Annie telefonou para se lamentar
de não chegar hoje conforme o combinado. Embora me tivesse enternecido com a
lembrança, voltei a passar-lhe um raspanete por saber que deixa a casa para ir
ao supermercado. “São só duas vezes por semana, diz-me ela. Vou buscar fruta e
legumes frescos. – Manda-os vir. São só cinco euros. – Mas eu gosto de ver e
depois o Carrefour está quase vazio.” Nada a fazer.
- Hoje voltei a sair para comprar um
cavalete e o jornal. Há tanto trabalho a realizar aqui, que muitas vezes relaxo
e entrego-me a uma certa ociosidade leviana. E no entanto a luz do sol
atrai-me, suga-me lá para fora onde tanta coisa me espera. Mas olho para o
lado, e vejo um livro aqui outro ali, e colo os olhos às suas páginas e deixo o
tempo deslizar até não ser dia. Entretanto, vou reunindo os exemplares dispersos
por todo o lado e levo-os lá para cima. Mesas e cadeiras vão em breve exercer a
acção para que foram construídas.