sexta-feira, março 27, 2020

Sexta, 27.
Obtuso todo o dia de ontem. Não obstante o prazer de ter conduzido até ao supermercado, não sem antes ter feito a barba, tomado duche como se fosse para o trabalho de um dia comum. Poucas ou nenhumas leituras. Como nenhum trabalho lá fora. Um dia desequilibrado, sem escrita, larvar. 

         - Deve-se viver um dia de cada vez. Nada de pensar que isto vai durar até Junho ou mesmo Agosto. O importante é mantermo-nos sólidos, ocupados com pequenas e grandes coisas, se possível com rotinas que formos construindo à medida que o tempo passa; estarmos curiosos e interessados nos destinos dos outros, telefonar-lhes para uma conversa longa ou curta. A quem os dejectos da TV entretenham, não hesite; se um vizinho vem à nossa porta não lhe voltemos as costas, conversemos com ele a dois metros de distância; ocupemo-nos da casa, mudemos a decoração, leiamos, aproveitando para aprofundar assuntos que nos interessam, façamos planos para quando a vida retornar aos carris saudáveis e humanos. Os crentes sabem da sua obrigação ante um desastre desta natureza.

         - Desde que há semanas quando acabei o ensaio do filósofo Pierre Hadot, pus-me a pensar no Caduceu de Hermes. Isto porque me lembro de ter visto há uns anos com Robert (sem a Annie) no Museu de Saint-Germain-en-Laye, a famosa composição mas com a serpente invertida, ao invés do Caduceu de Macróbio, que tanto Tyché como Daimon cingem Éros no cume com Ananké mais a baixo e as asas no sopé, aquela oferece um simbolismo, que digo eu, com maior vigor. O pau não acompanha de alto a baixo Caduceu, mas a força fálica é impressionante. Se Daimon é o nascimento e Tyché a juventude; Éros a adolescência, Ananké a velhice; estas fazes da vida humana contêm em si a pujança que os Gregos diziam acompanhar o destino do homem. Macróbio diz que o Caduceu (cito de memória Hadot) na forma das duas serpentes, macho e fêmea, entrelaçadas, são Tyché e Daimon, ou seja o Sol e a Lua e as bocas num beijo é Éros. Na Antiguidade o nó que as duas víboras fazem, dizia-se ser o nó de Hércules, portanto, a força que não se separa. Este nó é Ananké, depois as duas serpentes formam um segundo círculo, com as pontas enroladas no bastão de onde nascem duas asas. Eis segundo Macróbio que cada uma das divindades determinam o nosso destino. “Muitos prodígios há, porém nenhum maior do que o homem”, acrescentou depois Sófocles.

         - A Annie telefonou para se lamentar de não chegar hoje conforme o combinado. Embora me tivesse enternecido com a lembrança, voltei a passar-lhe um raspanete por saber que deixa a casa para ir ao supermercado. “São só duas vezes por semana, diz-me ela. Vou buscar fruta e legumes frescos. – Manda-os vir. São só cinco euros. – Mas eu gosto de ver e depois o Carrefour está quase vazio.” Nada a fazer.


         - Hoje voltei a sair para comprar um cavalete e o jornal. Há tanto trabalho a realizar aqui, que muitas vezes relaxo e entrego-me a uma certa ociosidade leviana. E no entanto a luz do sol atrai-me, suga-me lá para fora onde tanta coisa me espera. Mas olho para o lado, e vejo um livro aqui outro ali, e colo os olhos às suas páginas e deixo o tempo deslizar até não ser dia. Entretanto, vou reunindo os exemplares dispersos por todo o lado e levo-os lá para cima. Mesas e cadeiras vão em breve exercer a acção para que foram construídas.