Segunda.
30.
É
inevitável e triste, mas não consigo passar ao largo da peste. Estamos
confinados – eu sempre estive por vocação e opção – a permanecer em casa, a
maioria apatetada com a existência que não sonhavam ser possível. Famílias
inteiras a morrer de tédio, a inventar jogos que são modos de vida que carregam
angustia, desespero, inadaptação, extravagância. Para a grande maioria a casa
era o lugar de onde partiam manhã cedo e regressavam tarde para uma refeição
reparadora, a sonolência diante da TV com suas patetices hipnotizadoras e a
esteira onde estendiam o cadáver em esgotamento. A verdadeira ligação à mulher
e aos filhos, fazia-se através dos espaços de passagem, por ralhos ou
monossílabos, sem verdadeiramente se fixarem no rumor interior que debita o
afecto e compõe o suporte de uma vida a dois. Hoje, mercê de um bicho
minúsculo, travam a batalha da vida contra a morte, todos juntos naquele vale
de lágrimas e confrontos, que sufoca, desencaminha o espírito, confronta a
necessidade de um quotidiano que nasceu de uma loucura, de uma violência num
qualquer momento tangível, surgido do fundo do tempo imobilizado, caprichoso e
vagulo, dos corpos insaciáveis. Esta realidade, descoberta corpo a corpo, olhos
nos olhos, espanto e incredulidade, paredes nuas e recantos onde o terriço da
desordem estava adormecido, acorda a palpável e fria e hipócrita expressão “em
família”, embalada pela agitação e loucura que a sociedade de consumo abafou. A
seguir, todos juntos, vamos descobrir os vestígios mortíferos de um vírus
porventura mais mortal que o coronavírus. O perigo é maior ainda quando penso
não ser possível aliviar o cativeiro antes de Julho. Podemos não morrer da
Covid-19, mas extinguimo-nos de tédio e depressão. Esta “guerra” foi muito bem
pensada. Os seus autores ainda não foram mortos. Pelo contrário, vêm, cinicamente,
em ajuda às suas vítimas. É a imagem de um mundo em retorno aos tempos do
Antigo Testamento.
- E sair para quê num tempo de
cidades, vilas e aldeias mortas, ruas e avenidas deixadas à fúria do vento e
das assombrações, vazias da memória dos dias felizes, franqueadas de
transeuntes, agora trancados em casa a olhá-las com olhos baços, através das
vidraças opacas das habitações minúsculas, sem orações nas mesquitas, igrejas e
sinagogas, amortalhadas no silêncio eterno das imagens que desceram ao
esquecimento palpitante que faz dor, nostalgia e revolta. Só os sinos da
cristandade de quando em vez soltam um gemido, um aceno de chamada ao começo do
dia com as palavras santas como bengalas úteis ao frenesim de então. São eles,
esses sons cintilantes que nos humanizam e dignificam, sentinelas da nossa
passagem por uma época hoje amortalhada, subtraída ao nosso viver nacional,
onde faltam os cafés lugares de fraternidade, discussão, as esplanadas cheias
de sol e burburinho, por onde se escapuliam, correndo artérias e praças além,
envolvidas naquela atmosfera que caracteriza a liberdade que outros nos quiseram
roubar, controlar, amouxar, armados em anjos da guarda, as conversas fraternas
e o convívio civilizado que num cordão sólido une a humanidade, sem
constrangimentos sociais, nem epítetos de qualquer ordem. Quando a cidade
estava aberta, ouvíamos os pássaros cantar às varandas, as vozes dos vizinhos
apregoando saudações compassivas, o bruhaha
das gentes com outra língua, respirávamos o odor a café que saía das chávenas
quando caminhávamos nos passeios largos, a brisa da tarde vinda do rio, àquela
hora densa atropelada de gente afadigada a caminho dos seus lares. Todo esse
mundo sensível, pertence ao passado, foi-nos roubado para nos abolirem a
liberdade e a democracia, o nosso estilo de vida, e como experiência para algo
mais catastrófico. Um dia seremos invadidos por biliões de formigas sob o
comando do formigão ao jeito de Hitler. É o nosso gólgota no século XXI.
- Contei a Alice que outro dia, tendo
ido ao supermercado, apanhei do chão um maço de tabaco intacto. Voltei para
trás e fui oferecê-lo ao segurança que controlava as entradas. Ele disse-me que
não fumava e eu respondi que o desse a quem fumasse. Logo a Alice: “pois, sempre
a preocupação com os outros”.
- Apesar do dia tenebroso a juntar-se
à prisão forçada de milhões de portugueses, limpei com a máquina de pressão o
terraço ou lounge como lhe chama o
dondoco Neto. Fazendo de conta que nada se passa de perturbador, quero abrir a época
de verão e montar um ponto de convívio à roda da mesa com o largo guarda-sol.
Como todos os anos faço.