segunda-feira, março 30, 2020

Segunda. 30.
É inevitável e triste, mas não consigo passar ao largo da peste. Estamos confinados – eu sempre estive por vocação e opção – a permanecer em casa, a maioria apatetada com a existência que não sonhavam ser possível. Famílias inteiras a morrer de tédio, a inventar jogos que são modos de vida que carregam angustia, desespero, inadaptação, extravagância. Para a grande maioria a casa era o lugar de onde partiam manhã cedo e regressavam tarde para uma refeição reparadora, a sonolência diante da TV com suas patetices hipnotizadoras e a esteira onde estendiam o cadáver em esgotamento. A verdadeira ligação à mulher e aos filhos, fazia-se através dos espaços de passagem, por ralhos ou monossílabos, sem verdadeiramente se fixarem no rumor interior que debita o afecto e compõe o suporte de uma vida a dois. Hoje, mercê de um bicho minúsculo, travam a batalha da vida contra a morte, todos juntos naquele vale de lágrimas e confrontos, que sufoca, desencaminha o espírito, confronta a necessidade de um quotidiano que nasceu de uma loucura, de uma violência num qualquer momento tangível, surgido do fundo do tempo imobilizado, caprichoso e vagulo, dos corpos insaciáveis. Esta realidade, descoberta corpo a corpo, olhos nos olhos, espanto e incredulidade, paredes nuas e recantos onde o terriço da desordem estava adormecido, acorda a palpável e fria e hipócrita expressão “em família”, embalada pela agitação e loucura que a sociedade de consumo abafou. A seguir, todos juntos, vamos descobrir os vestígios mortíferos de um vírus porventura mais mortal que o coronavírus. O perigo é maior ainda quando penso não ser possível aliviar o cativeiro antes de Julho. Podemos não morrer da Covid-19, mas extinguimo-nos de tédio e depressão. Esta “guerra” foi muito bem pensada. Os seus autores ainda não foram mortos. Pelo contrário, vêm, cinicamente, em ajuda às suas vítimas. É a imagem de um mundo em retorno aos tempos do Antigo Testamento. 

         - E sair para quê num tempo de cidades, vilas e aldeias mortas, ruas e avenidas deixadas à fúria do vento e das assombrações, vazias da memória dos dias felizes, franqueadas de transeuntes, agora trancados em casa a olhá-las com olhos baços, através das vidraças opacas das habitações minúsculas, sem orações nas mesquitas, igrejas e sinagogas, amortalhadas no silêncio eterno das imagens que desceram ao esquecimento palpitante que faz dor, nostalgia e revolta. Só os sinos da cristandade de quando em vez soltam um gemido, um aceno de chamada ao começo do dia com as palavras santas como bengalas úteis ao frenesim de então. São eles, esses sons cintilantes que nos humanizam e dignificam, sentinelas da nossa passagem por uma época hoje amortalhada, subtraída ao nosso viver nacional, onde faltam os cafés lugares de fraternidade, discussão, as esplanadas cheias de sol e burburinho, por onde se escapuliam, correndo artérias e praças além, envolvidas naquela atmosfera que caracteriza a liberdade que outros nos quiseram roubar, controlar, amouxar, armados em anjos da guarda, as conversas fraternas e o convívio civilizado que num cordão sólido une a humanidade, sem constrangimentos sociais, nem epítetos de qualquer ordem. Quando a cidade estava aberta, ouvíamos os pássaros cantar às varandas, as vozes dos vizinhos apregoando saudações compassivas, o bruhaha das gentes com outra língua, respirávamos o odor a café que saía das chávenas quando caminhávamos nos passeios largos, a brisa da tarde vinda do rio, àquela hora densa atropelada de gente afadigada a caminho dos seus lares. Todo esse mundo sensível, pertence ao passado, foi-nos roubado para nos abolirem a liberdade e a democracia, o nosso estilo de vida, e como experiência para algo mais catastrófico. Um dia seremos invadidos por biliões de formigas sob o comando do formigão ao jeito de Hitler. É o nosso gólgota no século XXI.   
                                                                                                                   
         - Contei a Alice que outro dia, tendo ido ao supermercado, apanhei do chão um maço de tabaco intacto. Voltei para trás e fui oferecê-lo ao segurança que controlava as entradas. Ele disse-me que não fumava e eu respondi que o desse a quem fumasse. Logo a Alice: “pois, sempre a preocupação com os outros”.


         - Apesar do dia tenebroso a juntar-se à prisão forçada de milhões de portugueses, limpei com a máquina de pressão o terraço ou lounge como lhe chama o dondoco Neto. Fazendo de conta que nada se passa de perturbador, quero abrir a época de verão e montar um ponto de convívio à roda da mesa com o largo guarda-sol. Como todos os anos faço.