Quinta,
19.
O
país entrou em estado de emergência. A ideia foi do ressuscitado Presidente da
República que para tanto tem poder. Na prática quase nada muda ao estabelecido
pelo Governo. A ver vamos como reage o coronavírus a estas interdições, sendo
certo que a ameaça permanecerá até que chegue um remédio ou uma vacina que lhe
faça frente. Seja como for, com ou sem estados disto e daquilo, tenhamos em
mente o que nos foi aconselhado fazer: lavar as mãos com frequência, tossir
para o braço, evitar contactos com mais de cinco pessoas/dia, beber água com frequência
(o vírus morre em contacto com os ácidos gástricos), levar uma vida simples,
não ir a estádios de futebol, à praia, e cobrir-nos com papel higiénico da
cabeça aos pés. Só são permitidos três orifícios: olhos, boca e algum outro no
polo sul por onde saia o ridículo, a parvoeira e as borras “em família”.
- Terminei a limpeza na grande frente
da casa. Amanhã vou começar a cortar a erva em roda da piscina. Esta é uma
ocupação excelente que me compensa da única actividade que me faz falta – a natação
na piscina municipal. Sim, é verdade. Embora o primordial da vida seja a
escrita. Que não avança, as personagens são falsas, contam-me histórias com
pouca credibilidade e consistência, e ao fim de algumas páginas analiso aquilo
e sinto nojo de mim, da minha incapacidade para organizar as ideias, para
correr o texto sobre um tema em que penso há uma data de anos. Estou sem
fôlego, aéreo, desconcentrado da vida tout
court, onde pela força da escrita não há doença que se instale nem morte
que se aproxime.
- Contudo, talvez o hercúleo esforço,
terá o destino de todos os outros trabalhos escritos por um génio sem cheta
para saciar o editor. Exemplos não faltam, infelizmente. No tempo de Fernando Pessoa
e antes no de Camões, aqui como em França com Proust e tantos, tantos outros
infelizes que não escreveram à altura do enorme saber e conhecimento cultural
dos editores... Nessa altura, as editoras apostavam na obra e no autor e
acordavam com ele formas de remunerar o seu trabalho. Hoje é o inverso: paga-se
para ser publicado. Não obstante, Julien Green também passou pela humilhação.
Tendo já dois ou três livros de sucesso, de cada vez que terminava um romance,
tinha de mendigar a sua publicação. Eis o que ele escreve no Diário: “Vendredi
20 octobre 1933 – Vers 7 heures du soir, on m´apporte de la part de la Revue des Deux Mondes mon manuscrit
refusé. Pas un mot ne l´accompagne. Le paquet a l´air indéfinissable des choses
humiliées, un air à la fois penaud
et furieux. Cela m´a surpris et intéressé, rien de plus. » Tratava-se de Le Visionnnaire. Idêntica situação também me tocou a mim. Lembro-me
uma vez, estando aqui com o Dacosta, chegou o correio. O carteiro entregou-me
um grosso volume: era o manuscrito que eu havia enviado para um editor do Norte
(nessa altura ainda não havia computadores). Parecia um corpo amortalhado, sem
um comentário. Fernando, vendo o meu rosto mudar em tristeza e desolação,
disse: “Não ligues. Repara, eles nem se deram ao trabalho de abrir o dossier.” Quando
ele saiu, observei a forma como havia tratado do envio, o cuidado na protecção,
etc. – estava, na realidade, tudo intacto. Hoje, as editoras que enriquecem à
custa do ingénuo, multiplicaram. Um dos livreiros do Corte Inglês, pessoa
curiosa e amante de autores e livros, quando eu lhe disse que não estava
disposto a ceder, mesmo que o que escrevo não seja nunca lido, ele respondeu:
“Faz muito bem. Eu aqui ouço constantemente autores que pagaram para ser
publicados, a lamentarem-se que só lhes interessou o dinheiro e depois foram
abandonados. E nós quando pedimos para nos enviarem um ou outro título desses escritores
que pagaram, nem nos respondem.” Pois é. Pois para mim, o fundamental é
escrever, a edição é secundário. E digo como Gustav Mahler: o meu tempo virá.
- Dia cumprido na satisfação dos
rituais primaveris. Sol qb. Por saturação, já não vejo nem ouço noticiários. Estou
por aqui com o coronavírus.