quinta-feira, março 19, 2020

Quinta, 19.
O país entrou em estado de emergência. A ideia foi do ressuscitado Presidente da República que para tanto tem poder. Na prática quase nada muda ao estabelecido pelo Governo. A ver vamos como reage o coronavírus a estas interdições, sendo certo que a ameaça permanecerá até que chegue um remédio ou uma vacina que lhe faça frente. Seja como for, com ou sem estados disto e daquilo, tenhamos em mente o que nos foi aconselhado fazer: lavar as mãos com frequência, tossir para o braço, evitar contactos com mais de cinco pessoas/dia, beber água com frequência (o vírus morre em contacto com os ácidos gástricos), levar uma vida simples, não ir a estádios de futebol, à praia, e cobrir-nos com papel higiénico da cabeça aos pés. Só são permitidos três orifícios: olhos, boca e algum outro no polo sul por onde saia o ridículo, a parvoeira e as borras “em família”. 

         - Terminei a limpeza na grande frente da casa. Amanhã vou começar a cortar a erva em roda da piscina. Esta é uma ocupação excelente que me compensa da única actividade que me faz falta – a natação na piscina municipal. Sim, é verdade. Embora o primordial da vida seja a escrita. Que não avança, as personagens são falsas, contam-me histórias com pouca credibilidade e consistência, e ao fim de algumas páginas analiso aquilo e sinto nojo de mim, da minha incapacidade para organizar as ideias, para correr o texto sobre um tema em que penso há uma data de anos. Estou sem fôlego, aéreo, desconcentrado da vida tout court, onde pela força da escrita não há doença que se instale nem morte que se aproxime.

         - Contudo, talvez o hercúleo esforço, terá o destino de todos os outros trabalhos escritos por um génio sem cheta para saciar o editor. Exemplos não faltam, infelizmente. No tempo de Fernando Pessoa e antes no de Camões, aqui como em França com Proust e tantos, tantos outros infelizes que não escreveram à altura do enorme saber e conhecimento cultural dos editores... Nessa altura, as editoras apostavam na obra e no autor e acordavam com ele formas de remunerar o seu trabalho. Hoje é o inverso: paga-se para ser publicado. Não obstante, Julien Green também passou pela humilhação. Tendo já dois ou três livros de sucesso, de cada vez que terminava um romance, tinha de mendigar a sua publicação. Eis o que ele escreve no Diário: “Vendredi 20 octobre 1933 – Vers 7 heures du soir, on m´apporte de la part de la Revue des Deux Mondes mon manuscrit refusé. Pas un mot ne l´accompagne. Le paquet a l´air indéfinissable des choses humiliées, un air à la fois penaud et furieux. Cela m´a surpris et intéressé, rien de plus. » Tratava-se de Le Visionnnaire. Idêntica situação também me tocou a mim. Lembro-me uma vez, estando aqui com o Dacosta, chegou o correio. O carteiro entregou-me um grosso volume: era o manuscrito que eu havia enviado para um editor do Norte (nessa altura ainda não havia computadores). Parecia um corpo amortalhado, sem um comentário. Fernando, vendo o meu rosto mudar em tristeza e desolação, disse: “Não ligues. Repara, eles nem se deram ao trabalho de abrir o dossier.” Quando ele saiu, observei a forma como havia tratado do envio, o cuidado na protecção, etc. – estava, na realidade, tudo intacto. Hoje, as editoras que enriquecem à custa do ingénuo, multiplicaram. Um dos livreiros do Corte Inglês, pessoa curiosa e amante de autores e livros, quando eu lhe disse que não estava disposto a ceder, mesmo que o que escrevo não seja nunca lido, ele respondeu: “Faz muito bem. Eu aqui ouço constantemente autores que pagaram para ser publicados, a lamentarem-se que só lhes interessou o dinheiro e depois foram abandonados. E nós quando pedimos para nos enviarem um ou outro título desses escritores que pagaram, nem nos respondem.” Pois é. Pois para mim, o fundamental é escrever, a edição é secundário. E digo como Gustav Mahler: o meu tempo virá.


         - Dia cumprido na satisfação dos rituais primaveris. Sol qb. Por saturação, já não vejo nem ouço noticiários. Estou por aqui com o coronavírus.