Quinta, 31.
Um grupo de angolanos foi condenado a
vários anos de cadeia por “actos preparatórios de rebelião e associação de
malfeitores” quando o que eles fizeram foi ler colectivamente um livro. Entre
eles está Luaty Beirão que esteve há tempos 36 dias em greve da fome. No fundo,
os activistas pelos direitos humanos, só querem a demissão de Eduardo dos
Santos, no poder há quatro décadas. No poder de uma forma déspota, enriquecendo
e dando a enriquecer não só a família como os oficiais do exército que o
mantêm, numa espécie de democracia que não passa de uma oligarquia, onde a
liberdade de expressão não tem lugar. António Costa e o Presidente da República
portuguesa, não estiveram à altura ao não condenar um julgamento fantoche. As
negociatas com a menina Isabel dos Santos, a ricaça que ninguém explica onde
foi buscar os milhões quando ainda há poucos anos vivia pacatamente numa
sanzala, são mais importantes que a democracia, a liberdade e a honra dos
angolanos que lá como cá noutros tempos lutam pela democracia participativa e
plural.
- Foram gastos 15 milhões de euros na “cidade do futebol” que hoje o
prof. Marcelo inaugura. Os homens da bola dizem, orgulhosos, que o dinheiro
saiu do seu bolso e que nada devem ao Estado. Mordam aqui a ver se eu deixo! É
preciso serem descarados! Então e os milhões que os governos (da direita à
esquerda, desculpem, ao PS) despendem para isto e para aquilo, as negociatas de
terrenos, os impostos não liquidados, os ordenados dos futebolistas em atraso, a
corrupção com os contratos dos jogadores, etc. etc. para não falar na
exploração dos trabalhadores, no desrespeito pelos seus direitos que a Amnistia
Internacional hoje denuncia. Num país miserável, com carência de tudo e mais
alguma coisa, como se permite que um sector profissional seja uma espécie de
povo eleito dentro de uma nação acossada pela pobreza. Boçais indiferentes à
desgraçada de pelo menos dois milhões de cidadãos, que passam dificuldades e
olham esgazeados a luxúria que meia dúzia de pacóvios exibe com arrogância.
- Almocei com Fr. Hélcio num restaurante vegetariano numa rua paralela à
Avenida da Igreja. Tendo chegado cedo, percorri o bairro de Alvalade a pé, sem
despegar das recordações do passado como do patrão da firma de advogados
Jeremias Carrapato e Associados, Lda. e ministro das Obras Públicas, que eu narro
(no Rés-do-Chão de Madame Juju) a
jantar dentro do Centro Comercial com o mesmo nome. Passei defronte do prédio
onde morou o Jorge Tavares Rodrigues, irmão de Urbano, e lembrei-me de uma
série de amigos e conhecidos que no bairro habitavam no tempo da outra senhora com
linha directa ao Vá-Vá de queridas memórias. Fr. Hélcio apareceu desengonçado
devido à operação que fez à coluna, mas de língua afiada, e no final do
simpático repasto fez questão que eu fosse conhecer o apartamento que comprou
na Avenida do Brasil. Palmilhámos ruas e ruas em diagonal, até ao prédio
construído pelos anos quarenta, com porteira sentada na espaçosa entrada, dois
elevadores que funcionam mal e inquilinos (direito e esquerdo) que não se
falam. O apartamento fica no último andar (o sétimo), com vista para amontoados
de cimento armado de um lado e de outro que se encostam como cogumelos
oferecendo uma paisagem dantesca e terrificante. O andar é espaçoso, grandes
salas, duas marquises ensoleiradas, muita luz e uma atmosfera de revista de
decoração à portuguesa onde parece não viver ninguém. Ficámos pela tarde a
conversar na marquise do lado sul como se fôssemos o casal Cavaco Silva na sua
dependência envidraçada a alumínio da Travessa do Possolo a desfiar
recordações. Quando me conveio raspei-me, apanhei um autocarro e saltei em Sete
Rios. Dentro do comboio que me trouxe até aqui, esbarrei com o mesmo casal
jovem que tive na ida pelas oito da manhã. Duas aventesmas de se lhe tirar o
chapéu. Ele, de grandes farripas escuras, o rosto toldado de maciez e olhos
lassos, o físico sem corpo coberto de escuro, as calças a meio do rabo que não
tinha, casaco de couro esfiapado; ela de cabelo vermelho, grandes mamas que
espreitavam por uma nesga da blusa negra, ar desleixado que parecia denunciar
cio retardado ou promessas não inteiramente satisfeitas. De que falavam eles? À
tarde como de manhã, escutei a mesma ladainha que arrastava a mãe dela pelas
ruas da amargura e ele ameaçava fazer o que fizera ao pai, isto é, agredi-la. Ele
insistia com ela para procurar casa onde pudessem dar largas ao amor que cada
um sentia pelo outro, sem a restinga paternal, mas já com a sarna da velhice adiantada
que vestiam sem saberem.