segunda-feira, abril 30, 2018

Segunda, 30.
O tema de O Pesadelo dos Dias Felizes acaba de ser recusado por uma editora. Admito que Peter Santa Clara, afundado numa depressão assustadora, vai cometer certos actos reprováveis à luz de qualquer moral. Eu próprio me surpreendo com a sua conduta. Pergunto-me se o destino do médico de Medicina Interna poderia ser outro. Pergunto, não julgo. A verdade é que eu enquanto averbava a sua história, estive à beira dos mesmos abismos.  

         O curioso é que ninguém está de acordo comigo, mas eu estou de acordo com toda a gente. Gide dizia a propósito da incompreensão que houve em França em aceitar a obra de Dostoievski: “pour triompher d´une incompréhension, le meilleur moyen c´est de la tenir pour sincere et de tâcher de la comprendre”. É isso que eu espero.

domingo, abril 29, 2018

Domingo, 29.
Os líderes das duas Coreias, Kim Jong-um (do Norte), Moon Jae-in (do Sul), encontraram-se para assinar um acordo vasto de paz. De repente, tudo mudou. Há semanas o mundo estava à beira de uma catástrofe nuclear, agora é só sorrisos, promessas, pancadinhas nas costas, folclore e festa rija na fronteira que divide as duas nações. É verdade que o insuflável não destruiu as armas que diz ser a voz que o equipara aos Estados Unidos; como também estes não abandonaram o cerco que mantêm àquele. Portanto, é de crer que tudo não passa de palavras, de um qualquer ensaio para medir forças. Ou então a política é cada vez mais um jogo de charlatanice. O futuro o dirá. No meio disto tudo, o mais consistente e inteligente de todos os pontos de vista, acaba por ser o ditador da Coreia do Norte.

         - O país original que nós somos, nos últimos dois anos com um crescimento de cogumelos na forma de hotéis e hostels impressionante, não tarda a cair como um baralho de cartas. O Mágico vende uma coisa que não possui, o Presidente da República distribui beijos e fixa selfies, o Ministro da Economia, enjaulado na UE, perdeu-se nos jogos entre Bruxelas e o lugar que ocupa em Portugal, as greves estão por todo o lado, a Moody´s que vê tudo de longe, continua a dizer que não passamos de “lixo”.  

         - No saldo da semana. Chou Chou passou três dias a representar o seu próprio drama nos Estados Unidos. Aquilo foi um festival trágico-cómico, com intimidades com o construtor civil, jantares de gala com a senhora sua esposa encolhida no tailleur de onde ressaía o cabelo em forma de espanador. No final, regressou a França sem nada de substancial alcançado, com o rabo entre as pernas magras e sorriso cínico desmaiado. O senhor, perdão, a senhora que se segue é chanceler Angela Merkel. Mas ela, atendendo às amizades com o construtor, vai sair de gatas.

         - Eu não sou leitor de Rui Tavares e tenho muitas reservas quando à sua actividade política, mas estou do seu lado quando, escrevendo sobre os milhões de Manuel Pinho, diz que não podemos ter confiança no “homem dos dois indicadores” que adquiriu a casa onde Almeida Garrett vive e morreu... para a destruir. Mais: o Presidente da Câmara de Lisboa, Pedro Santana Lopes e o seu sucessor Carmona Rodrigues, autorizaram a demolição. É caso para dizer: les beaux esprits se rencontrent.

         - “Macron é o presidente dos ricos” diz François Hollande, ele que tratou os pobres de desdentados. O que pode o ódio, a raiva e o escárnio chez les politiques! Que canalhas!


         - Ontem o canal ARTE passou uma reportagem sobre a pobreza, que digo eu, a extrema pobreza que dos Santos e família ao enriquecerem ilicitamente não tiveram tempo nem interesse para, não digo exterminar, acudir às crianças que vivem em bairros de lata no centro de Luanda e pelas províncias do país como se fossem animais selvagens. Fiquei tão incomodado com o que vi e era do meu conhecimento, que meti-me no carro e fui ver chover longe de casa. A minha raiva era tanta que só me apetecia pôr toda a família de José Eduardo dos Santos contra um muro e pum, pum, pum.

sexta-feira, abril 27, 2018

Sexta, 27.
A bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco, volta que não volta, sequiosa decerto de protagonismo, bota discurso. Desta vez falou da desconfiança que tem relativamente à demora dos contentores onde são tratadas há anos as crianças com cancro no hospital de S. João no Porto; mas também deu a sua opinião favorável à eutanásia. Contudo, para não ser muito atacada, acrescentou “com regras”. Esta bastonária é a mesma que há tempos se insurgiu contra a eutanásia e disse que esta já se pratica nos hospitais públicos e privados há muito tempo, com conhecimento das equipas médicas e da classe. Depois, mandada calar, apertada de todos os lados, entupiu, amedrontada.

         - A história da eutanásia discutida e aprovada no Parlamento, é um atentado à vida e à democracia. Eu já aqui me manifestei contra e propus um referendo ao assunto. Não reconheço – disse na altura – qualquer capacidade e conhecimento, aos senhores deputados para legislarem sobre um assunto tão sensível. Naquela Casa, é a propaganda partidária a alavanca das leis e não os princípios éticos e morais de cada um de nós. Acresce que me parece que para eles a dádiva suprema e para mim divina da vida, é menos dispendiosa para o Estado acabar com ela, que assistir com dignidade e sem sofrimento os nossos derradeiros dias ou meses ou anos neste mundo.

         - Ontem uma editora pediu-me que lhe enviasse o original de O Rés-do-Chão de Madame Juju com sinopse da obra. Tive, portanto, de voltar ao romance e no embalo, reli alguns capítulos. Juro que o fiz durante duas horas sem despegar os olhos do computador. Às tantas, já cansado, via as palavras em duplicado, as linhas a mexerem, e assim. Estava tão absorto, sobretudo o capítulo em que Juju reencontra aos oitenta e cinco anos, o pai do filho de ambos, Serafim. Eles têm uma longa conversa no hotel das termas de Santa Cruz da Trapa. Juju não o escutava, transferida para uma espécie de resumo da vida que fora a sua até à chegada do covarde fugido para o Brasil por volta de 1908. Julgo que são três ou quatro páginas densas, sem parágrafos e orações formadas e terminadas num ponto. Lembro-me que tudo aquilo foi escrito palavra a palavra, sofrido, pensado, delicadamente porque residiam naquelas páginas o sumário do muito sofrimento por que havia passado aquela mulher corajosa, inteligente e de coração magoado. Um autor nunca é bom juiz em causa própria. Contudo, atendendo aos dois anos decorridos e lendo eu – enfim até certo ponto – como se não fosse o seu criador, pareceram-me maravilhosamente bem escritas e pensadas. Eu sei que o leitor ou o editor poderá ter outra opinião – aí reside a incerteza de todo o trabalho de anos.  


         - O livro já podia estar editado, não fosse eu quem sou. Vivo tão intensamente o acto quotidiano da escrita, que não me sobra tempo para me empenhar a fundo na sua divulgação. “Mas isso não pode ser, Helder!” insistia a Gi ao telefone, ontem, na sequência do convite para que esteja na próxima semana no lançamento do livro do marido, História da União de Portugal à Coroa de Castela. Não é só ela que me impulsiona. Mas eu sou bicho do mato, vivo ailleurs, suspenso não sei em que mundo porque só me sinto bem acamaradando com as personagens que não criei, mas vieram ao meu encontro para privarmos na maior intimidade, secretismo e companheirismo. Todavia, às vezes, quando elas se afastam, num impulso movo-me e sou capaz de dar um passo, discreto, para dizer “estou aqui”. Foi o caso hoje.

quinta-feira, abril 26, 2018

Quinta, 26.

Julien Green, ia já nos 77 anos de vida, quando esteve em Chiraz, Persépolis e Teerão. Fui comparar a sua impressão do país com o que escreveu Pierre Loti e este é incomparavelmente mais assertivo, entusiasta, poético e conhecedor. Green viaja como um burguês instalado nos fabulosos direitos de autor, Loti transita no imprevisto, apanha sustos, percorre o território montanhoso debaixo de temperaturas alucinantes,  enfrenta mil problemas. Depois a linguagem do autor de Vers Ispahan é extremamente rica, conhecedora da antiguidade, da flora que na Pérsia de então era a imagem de um mundo evoluído que tinha na natureza o reflexo da sua essência. Ambos visitam os túmulos de Dario, Artaxerxes, Xerxes, Cirus, mas Loti conversa com as pedras, toca a divindade e entra na antiguidade para oferecer ao leitor a sua impressão, a emoção que vive ao ver a beleza pura dos azulejos, extasia-se com o verde que por todo o lado impera, chora sobre a degradação dos palácios, demora-se a meditar na história que vem lá de trás, dos povos que tinham já uma ciência, uma arte, uma filosofia, uma cultura que os europeus estavam longe de possuir, ouve o silêncio que se move nas abóbadas em estalactites de neve que os mortos cobrem com a sua presença eterna. Green tem um desabafo que o redime:  ici il y a une contagion de l´absolu”.

quarta-feira, abril 25, 2018

Quarta, 25.
Terminei o in-te-re-ssan-te livro de Pierre Loti Vers Ispahan. Loti é um viajante incurável, um contador de histórias iluminado, um homem para quem os espaços terrestres são cópias do céu imenso. Ele vai fazer – pelo menos em parte –  o caminho da fantástica expedição de Alexandre o Grande. Deixa a Índia em 1900 para se dirigir a Ispahan (eu vou adoptar o nome para português de Isfahan, embora haja quem diga Esfahan e até Ispaão). Vai atravessar a Pérsia (actual Irão), utilizando a caravana puxada a mulas ou cavalos, recortando pessoal indígena que se reveza à chegada às  principais cidades por onde passa até Isfahan ou mais exactamente até Teerão para o acompanhar e, sobretudo, para o defender dos ataques da gatunagem que exerce toda a sorte de violência ao longo das montanhas e vales profundos. Entra no país de barco à vela pelo Golfe Pérsico vindo da Índia e a primeira paragem, à entrada do deserto, é Bender-Bouchir (mantenho os nomes em francês que não divergem muito daqueles que utilizamos). Estamos a 17 de Março e a partir daquele dia é o deserto que vai ter que vencer, viver como pode, experimentar os primeiros revezes de uma viagem absolutamente esgotante, muitas vezes sem ter onde dormir, de atalaia constante aos perigos das noites cálidas e das picadas dos mosquitos. Contorna Boradjoune a grande cidade de oásis, para chegar a Daliki o deserto decorado de palmeiras onde a magnificência começa por lhe travar a respiração. Dorme e no dia seguinte, a 19 de Abril, está em Konor-Takté, para prosseguir até Konoridjé, Kazeroun, Bouchir, e a 25 chega a Chiraz atravessando as três muralhas que guardam a cidade de 60 mil habitantes. Aqui vai ficar por uns dias. A fundação da cidade remonta a 695 da nossa Era, é referida como uma das mais belas, onde o poeta Saadi (1194) está sepultado, assim como Hafiz dois séculos depois, cidade das rosas, da mesquita de Kerim-Khan, de minaretes, das orações ao longo do dia “Alá! Alá!”, de vizires, de príncipes, de palácios das Mil e uma Noites, de ruínas datadas dos Aqueménidas, fundadores do primeiro Império Persa por alturas de 556-330 av. J.C. que haveriam de chegar próximo da Ásia Menor, ao Afeganistão, Paquistão actual, Líbia, Iraque, e pela Síria ao Egipto, Arábia Saudita, Jordânia, Israel, Líbano e por aí fora. Todo este mundo vai render-se ao jugo de Alexandre em 330 av. J.C. Em 2 de Maio, deixa a bela e perfumada Chiraz e entra na “rota de Isfahan” para passar a noite em Zargoun. Na zona não dispensa a visita aos palácios de Dario e Xerxes, reis aqueménidas, pai e filho, do séc. XV av. J.C. que o exército macedónio haveria, dois mil anos depois, revelado a existência ao Ocidente, depois de ter incendiado tudo na fúria da conquista. (Pierre Loti, diz que viu fragmentos de cedros decorativos do Líbano queimados por Alexandre.) Detém-se a admirar os baixos relevos, as estátuas, as pedras que guardam antigos segredos. A 5 de Maio retoma a marcha por montanhas agrestes onde jazem ao sol apodrecidos os cadáveres dos animais mortos de fadiga. Chega a Abas-Abad e encontra na habitual zona reservada aos caravanistas em viagem, lugar para ele e para a sua trupe de viajantes. No dia seguinte, muito cedo, como é hábito para escapar à torreira das tardes, está em Dehbid, a seguir Abadeh, Makandbey, Koumichah, campos vasto de ópio na forma de pequenas flores brancas, destinadas “aos homens dos olhos minúsculos do Império Celeste”. As caravanas precisam de 55 dias para chegar a Teerão. Ele, porém, tem como objectivo Isfahan onde acaba por chegar ao nascer do dia 12 de Maio. Aqui vai demorar-se não só porque tem objectivos concretos, ainda porque uma série de peripécias vão retardá-lo contra sua vontade. A cidade do Xá Abas, grande e iluminado governante, onde quase tudo o que existe a ele se deve, deixou-o de boca aberta. Nela a cultura muçulmana conheceu o seu expoente máximo, com a universidade construída há pelo menos três séculos, por ela passaram pensadores e poetas, na tradição e linhagem árabe que se conhece. Luxo e arte andam de par, os palácios são bijus de prata e ouro, tapetes de seda estão por todo o lado, santuários e minaretes misturam-se, sublimes, na paisagem urbana, as flores enchem casas e departamentos públicos, as pessoas oferecem umas às outras rosas, a arquitectura com seus tectos e abóbadas em estalactite, extasia quem os observa, Naqsh-e-Jahn é a segunda maior praça do mundo, tudo o que a sultana Zodaia, esposa do califa Haroun-al-Raschid, contou tem aqui a marca do seu cunho. O resto da viagem, deixo aos meus leitores o prazer de a descobrirem neste extraordinário livro, que o autor, não dando muitos elementos históricos, descreve às mil maravilhas os lugares e as pessoas, as religiões e os acontecimentos no dia-a-dia, as paisagens, a flora e fauna, as noites e os fins de tarde onde a magia perdura pelo adiantado das noites...

         - Se me posso exprimir, tudo o que Loti descreve e esteve sob o comando do Macedónio, aonde hoje decerto subsistem certas formas de cultura e civilização do mundo dito helénico, na forma refinada da cultura grega, que com Alexandre se encontraram e de algum modo ele, apesar de um certo respeito pelos povos conquistados, ignorou. Mas a riqueza cultural, artística, política no modo como o cidadão podia exercer a religião, no respeito da palavra do Profeta, o mundo islâmico soube preservar e foi a alavanca para chegar inteiro aos nossos dias. Eles, os árabes, sob diversos aspectos, durante séculos, viveram sob civilizações muitíssimo mais avançadas do que a nossa de todos os pontos de vista: arquitectura, na relação com o mundo, no gosto refinado (veja-se Alhambra), na arte, nos costumes. Se Alexandre o Grande nos deu a conhecer esta civilização maravilhosa, também enquanto conquistador destruiu valiosíssimos tesouros que milénios antes dele haviam construído.

         - Esta manhã estando eu com a máquina a roçar as ervas do caminho que confina com a entrada da quinta, vejo vir ao meu encontro um casal do género bon chic bon genre. Ela loira, alta, branca; ele austero, sóbrio, com ar de professor catedrático. Param para me falar, dizem que gostam da casa, que o tempo está magnífico para trabalhos como este que estou a fazer, que passam por aqui às vezes no seu passeio matinal. Não quis ser indiscreto e não fiz perguntas. Depois eles prosseguiram o passeio, a inevitável garrafinha com água, um olhar deslumbrado a pousar na paisagem que nesta altura do ano merece não só ser admirada como louvada.


         - Ontem esteve aí o Brejnev. A dois fizemos muito trabalho. Consegui, enfim, transplantar para a terra uma cica e uma figueira que estiveram anos envasadas à entrada da casa. Depois, numa série de árvores de fruto, limpámos o escalracho, estrumámos e cortámos os ramos mortos. Eu com a roçadora, cortei o autêntico mato que cercava a piscina. Tanto trabalho sob um calor tórrido, mas no final, vendo as transformações, detive-me a olhar deslumbrado a beleza reposta do espaço.