Sexta, 27.
A bastonária da Ordem dos Enfermeiros,
Ana Rita Cavaco, volta que não volta, sequiosa decerto de protagonismo, bota
discurso. Desta vez falou da desconfiança que tem relativamente à demora dos
contentores onde são tratadas há anos as crianças com cancro no hospital de S.
João no Porto; mas também deu a sua opinião favorável à eutanásia. Contudo, para
não ser muito atacada, acrescentou “com regras”. Esta bastonária é a mesma que
há tempos se insurgiu contra a eutanásia e disse que esta já se pratica nos
hospitais públicos e privados há muito tempo, com conhecimento das equipas
médicas e da classe. Depois, mandada calar, apertada de todos os lados,
entupiu, amedrontada.
- A história da eutanásia discutida e aprovada no Parlamento, é um
atentado à vida e à democracia. Eu já aqui me manifestei contra e propus um
referendo ao assunto. Não reconheço – disse na altura – qualquer capacidade e
conhecimento, aos senhores deputados para legislarem sobre um assunto tão
sensível. Naquela Casa, é a propaganda partidária a alavanca das leis e não os
princípios éticos e morais de cada um de nós. Acresce que me parece que para
eles a dádiva suprema e para mim divina da vida, é menos dispendiosa para o
Estado acabar com ela, que assistir com dignidade e sem sofrimento os nossos
derradeiros dias ou meses ou anos neste mundo.
- Ontem uma editora pediu-me que lhe enviasse o original de O Rés-do-Chão de Madame Juju com sinopse
da obra. Tive, portanto, de voltar ao romance e no embalo, reli alguns
capítulos. Juro que o fiz durante duas horas sem despegar os olhos do
computador. Às tantas, já cansado, via as palavras em duplicado, as linhas a
mexerem, e assim. Estava tão absorto, sobretudo o capítulo em que Juju
reencontra aos oitenta e cinco anos, o pai do filho de ambos, Serafim. Eles têm
uma longa conversa no hotel das termas de Santa Cruz da Trapa. Juju não o
escutava, transferida para uma espécie de resumo da vida que fora a sua até à
chegada do covarde fugido para o Brasil por volta de 1908. Julgo que são três
ou quatro páginas densas, sem parágrafos e orações formadas e terminadas num
ponto. Lembro-me que tudo aquilo foi escrito palavra a palavra, sofrido,
pensado, delicadamente porque residiam naquelas páginas o sumário do muito
sofrimento por que havia passado aquela mulher corajosa, inteligente e de
coração magoado. Um autor nunca é bom juiz em causa própria. Contudo, atendendo
aos dois anos decorridos e lendo eu – enfim até certo ponto – como se não fosse
o seu criador, pareceram-me maravilhosamente bem escritas e pensadas. Eu sei
que o leitor ou o editor poderá ter outra opinião – aí reside a incerteza de
todo o trabalho de anos.
- O livro já podia estar editado, não fosse eu quem sou. Vivo tão
intensamente o acto quotidiano da escrita, que não me sobra tempo para me
empenhar a fundo na sua divulgação. “Mas isso não pode ser, Helder!” insistia a
Gi ao telefone, ontem, na sequência do convite para que esteja na próxima
semana no lançamento do livro do marido, História
da União de Portugal à Coroa de Castela. Não é só ela que me impulsiona. Mas
eu sou bicho do mato, vivo ailleurs,
suspenso não sei em que mundo porque só me sinto bem acamaradando com as
personagens que não criei, mas vieram ao meu encontro para privarmos na maior
intimidade, secretismo e companheirismo. Todavia, às vezes, quando elas se
afastam, num impulso movo-me e sou capaz de dar um passo, discreto, para dizer “estou
aqui”. Foi o caso hoje.