sexta-feira, abril 06, 2018

Sexta, 6.
Nada menos que 87 milhões de devotos do Facebook viram os seus dados em viagem para acudir a fanáticos, gananciosos e voyeuristas. As suas vidas, taras, aberrações, frustrações, amigos aos milhares, segredos de alcofa, parlapatices, idiotices, fotos do corpos e almas, intimidades tudo esparramado numa plataforma que enriqueceu de um dia para o outro um chico esperto de que origem? Americana, pois então!

         - A última obra de Gabriel Matzneff ainda não subiu para se refastelar na biblioteca do primeiro andar. Tem estado aqui comigo na mesa de apoio em frente à lareira. De vez em quando, folheio-a para rememorar o que fui sublinhando ao longo das suas setecentas páginas. Hoje esta consideração: “Depuis ma jeunesse, je soutiens que l´enseignement du Christ est plus proche de celui du Bouddha et de celui d´Épicure que de la fois mosaique. Entendre de savants talmudistes soutenir, avec leur vocabulaire qui n´est certes pas le mien, l´hétérogénèité de l´Ancienne et de la Nouvelle Alliance, est une belle satisfaction.” Pag. 375. Eu, se me é permitido aventar, optaria pelo inverso.

         - Trabalhei de manhã no Juiz Apostolatos que se aproxima do derradeiro capítulo em verdade o epílogo, uma vez que o romance tem quatro capítulos e um epílogo. A cena entre Lúcia e Rui Gonçalves, isto é, a separação com as trágicas consequências, é-me muito difícil escrevê-la porque o fim raia a força duma tragédia grega. Tenho vindo a adiá-lo e decerto só o contarei quando o romance estiver todo escrito. Ninguém imagina o esforço que é necessário para entrar pela cena dentro e transformá-la em qualquer coisa que toque o leitor e o faça acreditar que aqueles seres existiram e estão vivos nas páginas que eu inventei.


         - Assim foi com o final de O Rés-do-Chão de Madame Juju. Lembro-me bem. Só o consegui terminar à força de calmantes que tomava todas as manhãs. Já O Pesadelo dos Dias Felizes, deixou-me de rastos. Fiquei, literalmente, todo esfarrapado e recordo-me que quando cheguei a Paris naquele ano, a Annie perguntou-me se estava doente. Disse-lhe que não, mas estava. Não sou capaz de escrever doutro modo, meto tudo – suor, sangue, sofrimento, lágrimas, dúvidas, desânimos – no que faço. Foi por isso que aquele editor de quem aqui falei, se agarrou tanto a este trabalho e me pedia, inclusive, o número do telemóvel para “irmos chegando a um contrato que servisse aos dois”.  A pressa era ainda aliciada com a próxima Feira do Livro onde ele queria que eu estivesse. Respondi que a arte não se faz a contra-relógio, que a escrita é um acto sagrado, etc. A mim não me interessa escrever histórias de embalar, pela simples razão que não gosto de leitores que adormecem a ler...