Segunda,
26.
A
Rússia está de luto. Todos os músicos do célebre coro militar Alexandrov Ensemble
à excepção de três que não embarcaram, pereceram num acidente de avião quando
iam oferecer um concerto natalício aos soldados soviéticos em missão na Síria. Putin
determinou um inquérito, mas tudo leva a crer que se tratou de um acidente.
- A visita que fiz ao número dezanove da
Berggasse, remeteu-me para algumas das minhas interrogações sobre o teoria freudiana.
A casa onde viveu Freud, hoje museu mercê do muito que a filha Clara doou,
situa-se num bairro calmo, com um pequeno jardim nas traseiras, elegante sem
ser luxuosa. Era ali que o psicanalista recebia os seus doentes, estudava, lia
e escrevia. A única sala que resistiu ao que foi, é a sala de espera onde
também Sigmund Freud recebia colegas, escritores, artistas, mantinha serões animados
de discussões. Foi lá que conheceu a charmosa Louise von Salomé, conhecida por
Lou Lou, que seduziu uma parte do mundo artístico e cultural – Freud, Rilke,
Niestzsche, este andou mesmo a bater com a cabeça nas paredes por ela e alguns
mais. Einstein era visita assídua, as polémicas prolongavam noite dentro. À parte o canapé e o
conjunto dos quadros e demais mobiliário, todas as outras divisões estão
vazias, oferecendo, contudo, ao visitante fotocópias dos seus escritos, algumas
edições dos seus livros, os célebres totens. Eu li muito cedo o livro-revelação
Psicopatologia da Vida Quotidiana. A
partir dessa leitura, instalou-se em mim uma certa reserva quanto aos métodos
de trabalho do grande homem. Mas isso é outra conversa que não cabe nestas
páginas. Um filme de cerca de trinta minutos, apresenta a sua vida familiar, o
cão e as visitas, quando Freud já sofria do cancro que o haveria de levar. É
uma vidinha pequeno-burguesa, com o seu
quê de coisinha, o apoio da mulher e da filha, a reverência dos que chegavam para
lhe fazer companhia, quando ele embrulhado em mantas se quedava no jardim da
sua casa de Londres para onde imigrara quando fugiu à tirania de Hitler. Mas
tem-se simpatia pela figura esguia, frágil, um pouco recuada de si, com o
sentimento de saber o que é a vida e o que nos espera depois desta existência
que ele tentou decifrar e explicar como parte de um todo cujos alicerces estão
na infância e, sobretudo, na mãe. Mas Freud, como se sabe, sabia muito pouco da
mulher.
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A sala de espera do Dr. Freud |
- Green por uma vez. Falei aqui na
pedra gravada da capela Julian Green com um texto escrito pelo escritor. Esse
texto é de tal modo belo e impressionante, que vou traduzi-lo para que os meus
leitores o conheçam e... o guardem.
- Suponho que pouco ou nada falei do
que por aqui se come. Grosso modo, não é a alimentação que me convém. À parte a
doçaria que é excepcional de requinte e bom gosto, tudo o resto assenta em
gorduras animais como o porco, a vaca, enchidos, cremes. Por exemplo, às vezes
tenho necessidade de sopa, sopa como a que fazemos, com legumes que se
mastigam. Pois aqui é impossível encontrá-la. Fui então a um restaurante que
tenho em frente da janela do hotel e afixa “comida bio”. Perguntei que trazia
aquela aguada passada a varinha mágica. Aparentemente só ervilha, couve,
beterraba, batata. Que venha. Soube bem porque fazia muito frio e tudo o que
chegue quente é bem-vindo, mais a mais no princípio bio. Logo à primeira
colherada, não senti nenhum dos sabores que era suposto existirem. O que notei
foi o creme que tinha entrado em abundância, talvez para disfarçar os produtos
naturais... pensei. No dia seguinte e depois de ter pago dez euros pelo
caldinho, acordei com um botão no lábio superior. Dá para acreditar? Não dá.
- Normalmente começo o meu dia no café-bar
inglês Ascot que encontrei no segundo dia de aqui ter chegado a duas ruas da
porta do hotel. Trata-se de um interior tipicamente britânico: sofás de cabedal
verde, largas mesas de mármore escuro, pequenos candeeiros nas mesas, lustres
de cristal, um ecrã exibindo partidas de críquete e cavalos, espelhos e a
atmosfera que eu conheci quando estive em Londres. Àquela hora da manhã, não
tem quase clientela, pelo que me é agradável concentrar-me no meu trabalho sem
as distracções habituais. Apetecia-me dizer que estes momentos são os melhores
desta estada austríaca, à parte a minha ida chez
monsieur Green. Escrever exige tempo, sossego, quer seja nestas páginas,
quer no romance, porque mesmo em deambulações trago sempre o “crochet” comigo.
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O bar Ascot onde trabalho todas as manhãs |
- Aqui na Landstrasse, a pouco menos
de um quilómetro a pé, fica o mundo delirante do pintor Hundertwasser que eu
conheci em 1979 (penso) quando fui com a Isabel e o Saramago ver a
retrospectiva que a Gulbenkian lhe dedicou. Lembro-me que saímos entusiasmadíssimos daquele patchwork louco que apostava no
delírio e na consagração da cor enquanto objecto de criação artística. Hoje
dediquei-lhe a recordação. Fui primeiro conhecer a casa onde viveu, depois o
museu com cinco andares onde expõe os primeiros trabalhos de 1947-1950 e pelos
anos Sessenta assiste-se ao estoirar da loucura que o celebrizou. Foi, um
artista diversificado, entrando no mundo do azulejo, da arquitectura, dos moldes,
sob a fórmula que eu defino por patchwork. O museu reúne o essencial da sua
personalidade e da sua obra. A própria construção do edifício, todo em ondas, o
piso irregular obrigando-nos primeiro, a dizer a nós mesmos que não estamos
bêbados, segundo, a caminhar com imensas cautelas para não tombarmos naquele
chão perturbador. O museu está bem cuidado, mas a casa mais adiante, apresenta
já os maus-tratos do tempo. Há gente que vive lá, embora a sua manutenção deva
ser custosa e nessas condições ficar entregue à condicionante tempo. No
rés-do-chão do museu, existe um restaurante simpático. As raparigas que servem
às mesas, parecem lá estar para enxotar os visitantes de entrar. Se quisesse definir
a obra de Friedensreich Hundertwasser, diria que tudo se assemelha... na
diferença.
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A casa onde viveu o pintor Hundertwasser |
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O museu que expõe a sua obra |
- Este ano não tarda entra na
moribunda história da Europa dos nossos dias. Não foi um ano fácil julgo que
para ninguém. O mundo conheceu momentos complicados, a insegurança é total, o
salve-se-quem-puder está por todo o lado, os egoísmos instalaram-se, a
ladroagem está sólida, os pobres aumentaram, os infelizes sem pátria nem
identidade são um flagelo numa União Europeia dita humanista e solidária. Pessoalmente
realço doze meses de profundo estudo e prazer cultural, para só falar do
essencial e não abrir o coração à mórbida curiosidade do comum falacioso.
Anotei o que fui lendo ao longo dos doze meses e aqui deixo o epílogo dos
momentos felizes que enxotaram os outros de triste memória.
Assim:
Viagem a Itália –
Goethe
Astronomia –
Mário Cláudio
L´ écriture ou la vie –
Jorge Sumprun
Grécia Revisitada –
Frederico Lourenço
La lettre au capitaine Brunner –
Gabriel Matzneff
Fuir por vivre –
Erika e Klaus Mann
Manuel d´Épictète
Tableau de Cébès
Lélia ou la vie de George Sand – André
Maurois
Voyage atlantique – Ernst
Junger
Soixante-dix s´efface (vol.
V)
– Ernst Junger
Diálogos em Túsculo - Marco Túlio Cícero
Carnets
1995-1998 – Philippe Jaccottet
Le philosophe qui n´était pas sage –
Laurent Gounelle
Cidades da Noite Vermelha –
William Burroughs
Êutifron, Apologia de Sócrates, Críton –
Platão na tradução de José Trindade dos Santos
Medeia –
Eurípedes (ainda o estudo e notas de Maria Helena da Rocha Pereira)
Antígona –
Sófocles (e a introdução e notas go grego de Maria Helena da Rocha Pereira)
Tratado da Imitação –
Dionísio de Halicarnasso com notas e tradução de Raul Miguel Rosado Fernandes
Do mundo Grego –
Selecção, tradução e notas de Albano Martins
A Letra Encantada -
Nathaniel Hawthorne
Oresteia (Agamémnon,
Coéforas, Euménides) – Ésquilo
Correspondence –
Stefan Zweig e Klass Mann
Quand les lumières s´éteignent –
Erika Mann
Joujou –
Eve de Castro
La dame Blanche –
Paul Morand
Goethe et Tolstoi –
Thomas Mann