Terça,
20.
O
frio polar é difícil de suportar, sobretudo a partir das cinco da tarde e
quando cai neve há três dias. Mesmo assim, ontem à noite, fui à missa na
catedral de Santo Estêvão, o belíssimo monumento do século XII que a última
Grande Guerra quase destruiu. Antes tinha passeado pela zona da Ópera que leva
nesta altura O Barbeiro de Sevilha de
Rossini. Quando aqui estive, em 1978, fui assistir a um concerto com Beethoven
a fazer as honras da instituição. Hoje só havia bilhetes de pé. A cidade, se
bem me lembro, sobretudo o centro histórico onde consegui um hotel confortável
e austero, do tipo anos Trinta, silêncio absoluto, as comodidades
indispensáveis (quarto supra-aquecido a ponto que desliguei o aquecimento desde
que cheguei, com televisão e telefone, casa de banho e duche, wiffi, pequeno
almoço copioso), oferecendo apenas 20 quartos, em plena Landstrasse, quero
dizer com o brouhaha de uma grande capital a seus pés (aos quartos
não chega), lojas e todo o tipo de encantamentos de que a sociedade de consumo
solicita atenção, mas com o encanto de poder deslocar-me a pé para todo o lado
ou sair para mergulhar no movimento incessante de gente, as ruas iluminadas, os
mercados de Natal por todo o lado, enfim, esse júbilo que apetece gozar, saborear
com a calma que as circunstâncias exigem e o visitante civilizado e europeu
identifica.
Ópera de Viena sob intensa neve |
- A Annie perguntava-me, surpreendida,
na véspera de eu deixar Lisboa, se não preferia viajar acompanhado, subjacente se
não tinha receio. Respondi, divertido, que ainda não é chegada a hora de
caminhar apoiado numa bengala. Esta questão, por muito que possa pensar-se, não
é apanágio das pessoas idosas. Os jovens hoje, apaparicados pelos pais, que
julgam proteger os filhos, mas apenas os fragilizam no confronto futuro com a
vida. As pessoas casam para estar acompanhadas, porque têm receio da solidão,
da doença, da velhice. São um casulo de medos, temores, debilidades. A este
corolário de inseguranças chamam amor. Os anciãos, habituados a rotina,
protegidos por ela, desistiram de desafiar o incógnito, não querem deixar a sua
zona de conforto para se fazerem ao inopinado e quando o fazem, necessitam de
hotéis e programas estabelecidos com avanço “porque na minha idade já não estou
para imprevistos”. Que dirão eles daqueles idosos que vemos em cadeira de
rodas, apoiados nas canadianas, às vezes no limite do cansaço, mas que não
desistem de ir mais além colher a novidade, a surpresa, o encanto que se cruza
no seu caminho, o estranho que estabelece conversa consigo, a surpreendente
vida que corre nas cidades, a riqueza que ressuscita nos museus quando a
admiram, o sol que finda do outro lado de um país que não conheciam, mas podem
agora afirmar que aquele sol, aquela luz, aquele timbre sonoro, aquela língua
aparentemente estranha são valores que passaram a integrar a sua vivência, a
sua cultura, a sua alegria de viver. Viajar é viver, é insuflar um anticorpo
que nos protege de envelhecermos, é trazer para dentro de nós a lonjura das
paisagens, a quietude dos fins de tarde num café antigo como aquele onde estive
ontem, o Café da Ópera. A sós, podemos respirar à vontade, estar connosco,
andar ao nosso ritmo, aceitar o outro e as aventuras que o destino quiser sejam
as nossas. Viajar só, é olhar com desdém e pena a turba de turistas em manada,
com tudo programado, num frenesim que não é o deles, e foi imposto pelo
conforto que quiseram pagar muitas vezes com língua de fora, sem liberdade nem
aventura, sem tempo para parar e olhar no infinito onde morre o dia no
caleidoscópio de insinuantes desafios e surpresas...
- É para mim claro que a Igreja de
Roma tem entre os austríacos um relevo fundamental nas suas vidas. Sobretudo na
juventude que vejo por todo o lado rezando e comportando-se com um respeito que
já não se vê em quase nenhum lado. Outro dia entrei por caso na igreja de Santana
que pertence à arquidiocese de Viena e fica resguardada numa rua estreita que
parte do grande boulevard Johannesgasse. Trata-se de um monumento barroco, mas
o barroco pesado, germânico, que se impõe e subjuga. Dentro uma dúzia de fiéis,
todos jovens, recolhidos a orar, de joelhos, as mãos postas como antigamente se
exigia aos católicos. Juntei-me a eles e fiquei por largo tempo imobilizado a
olhar o altar-mor de talha dourada e, sobretudo, a respirar aquele silêncio que
parecia imergir do fundo dos tempos, quando os primeiros cristãos se recolhiam
nas grutas barrentas da Capadócia. Jesus estava ali entre nós. Talvez mais
junto deles, que se entregaram à oração como se mergulhassem nas profundezas do
mistério para melhor se encontrarem. Como no exterior o frio era quase
insuportável, deixei-me estar aquecido pela presença ungida da fé que os meus
companheiros sem querer me ofertavam.
- Antes de sair, como estou
transformado num recuperador de tudo o que os vizinhos ricos rejeitam, andei a
cortar e a carregar e depois a descarregar troncos com mais de trinta quilos.
Conclusão: caminho sob imensas dores lombares. Curiosamente, é a perna que as
damas das camélias beijam delicadamente que ajuda a outra que os homens
invejosos admiram e chegam a oscular os dedinhos um a um...