terça-feira, dezembro 20, 2016

Terça, 20.
O frio polar é difícil de suportar, sobretudo a partir das cinco da tarde e quando cai neve há três dias. Mesmo assim, ontem à noite, fui à missa na catedral de Santo Estêvão, o belíssimo monumento do século XII que a última Grande Guerra quase destruiu. Antes tinha passeado pela zona da Ópera que leva nesta altura O Barbeiro de Sevilha de Rossini. Quando aqui estive, em 1978, fui assistir a um concerto com Beethoven a fazer as honras da instituição. Hoje só havia bilhetes de pé. A cidade, se bem me lembro, sobretudo o centro histórico onde consegui um hotel confortável e austero, do tipo anos Trinta, silêncio absoluto, as comodidades indispensáveis (quarto supra-aquecido a ponto que desliguei o aquecimento desde que cheguei, com televisão e telefone, casa de banho e duche, wiffi, pequeno almoço copioso), oferecendo apenas 20 quartos, em plena Landstrasse, quero dizer com o brouhaha  de uma grande capital a seus pés (aos quartos não chega), lojas e todo o tipo de encantamentos de que a sociedade de consumo solicita atenção, mas com o encanto de poder deslocar-me a pé para todo o lado ou sair para mergulhar no movimento incessante de gente, as ruas iluminadas, os mercados de Natal por todo o lado, enfim, esse júbilo que apetece gozar, saborear com a calma que as circunstâncias exigem e o visitante civilizado e europeu identifica.
Ópera de Viena sob intensa neve 
         - A Annie perguntava-me, surpreendida, na véspera de eu deixar Lisboa, se não preferia viajar acompanhado, subjacente se não tinha receio. Respondi, divertido, que ainda não é chegada a hora de caminhar apoiado numa bengala. Esta questão, por muito que possa pensar-se, não é apanágio das pessoas idosas. Os jovens hoje, apaparicados pelos pais, que julgam proteger os filhos, mas apenas os fragilizam no confronto futuro com a vida. As pessoas casam para estar acompanhadas, porque têm receio da solidão, da doença, da velhice. São um casulo de medos, temores, debilidades. A este corolário de inseguranças chamam amor. Os anciãos, habituados a rotina, protegidos por ela, desistiram de desafiar o incógnito, não querem deixar a sua zona de conforto para se fazerem ao inopinado e quando o fazem, necessitam de hotéis e programas estabelecidos com avanço “porque na minha idade já não estou para imprevistos”. Que dirão eles daqueles idosos que vemos em cadeira de rodas, apoiados nas canadianas, às vezes no limite do cansaço, mas que não desistem de ir mais além colher a novidade, a surpresa, o encanto que se cruza no seu caminho, o estranho que estabelece conversa consigo, a surpreendente vida que corre nas cidades, a riqueza que ressuscita nos museus quando a admiram, o sol que finda do outro lado de um país que não conheciam, mas podem agora afirmar que aquele sol, aquela luz, aquele timbre sonoro, aquela língua aparentemente estranha são valores que passaram a integrar a sua vivência, a sua cultura, a sua alegria de viver. Viajar é viver, é insuflar um anticorpo que nos protege de envelhecermos, é trazer para dentro de nós a lonjura das paisagens, a quietude dos fins de tarde num café antigo como aquele onde estive ontem, o Café da Ópera. A sós, podemos respirar à vontade, estar connosco, andar ao nosso ritmo, aceitar o outro e as aventuras que o destino quiser sejam as nossas. Viajar só, é olhar com desdém e pena a turba de turistas em manada, com tudo programado, num frenesim que não é o deles, e foi imposto pelo conforto que quiseram pagar muitas vezes com língua de fora, sem liberdade nem aventura, sem tempo para parar e olhar no infinito onde morre o dia no caleidoscópio de insinuantes desafios e surpresas...

         - É para mim claro que a Igreja de Roma tem entre os austríacos um relevo fundamental nas suas vidas. Sobretudo na juventude que vejo por todo o lado rezando e comportando-se com um respeito que já não se vê em quase nenhum lado. Outro dia entrei por caso na igreja de Santana que pertence à arquidiocese de Viena e fica resguardada numa rua estreita que parte do grande boulevard Johannesgasse. Trata-se de um monumento barroco, mas o barroco pesado, germânico, que se impõe e subjuga. Dentro uma dúzia de fiéis, todos jovens, recolhidos a orar, de joelhos, as mãos postas como antigamente se exigia aos católicos. Juntei-me a eles e fiquei por largo tempo imobilizado a olhar o altar-mor de talha dourada e, sobretudo, a respirar aquele silêncio que parecia imergir do fundo dos tempos, quando os primeiros cristãos se recolhiam nas grutas barrentas da Capadócia. Jesus estava ali entre nós. Talvez mais junto deles, que se entregaram à oração como se mergulhassem nas profundezas do mistério para melhor se encontrarem. Como no exterior o frio era quase insuportável, deixei-me estar aquecido pela presença ungida da fé que os meus companheiros sem querer me ofertavam.


         - Antes de sair, como estou transformado num recuperador de tudo o que os vizinhos ricos rejeitam, andei a cortar e a carregar e depois a descarregar troncos com mais de trinta quilos. Conclusão: caminho sob imensas dores lombares. Curiosamente, é a perna que as damas das camélias beijam delicadamente que ajuda a outra que os homens invejosos admiram e chegam a oscular os dedinhos um a um...