domingo, dezembro 11, 2016

Domingo, 11.
Parece implícita na cabeça de muita gente para quem o dinheiro é o diploma que os favorece com vinte valores na governação, que os 60 milhões gastos a tratar cidadãos com doenças raras através de medicamentos ditos inovadores, cria não só desigualdades como são uma despesa excessiva para a Segurança Social. Que diria então o Estado dos 150 milhões que um só indivíduo pôs em paraísos fiscais! O que esta gente ganha pontapeando uma bola durante duas horas, é uma afronta à inteligência daqueles que fazem avançar a ciência e com isso extinguem o sofrimento e dão esperança à humanidade. Mas esses têm de esmolar subsídios, viver à justa, ter uma reforma sem horizontes. São estas desigualdades que revoltam e conduzem os mais sensíveis ao desespero e arruínam a confiança na democracia.

         - Vicente Jorge Silva: “Se a Caixa não pode ser uma caixinha, na expressão de Catarina Martins e entendimento de Costa, é preciso evitar que seja um caixão simbólico do serviço público democrático.” Sem comentário.

         - “Qualquer pessoa que seja demasiado apegada às coisas materiais e que ama o dinheiro (esta é directa aos socialistas, digo eu), banquetes exuberantes, casas sumptuosas, roupas de marca, carros de luxo, aconselharia que compreenda o que está a acontecer no seu coração e que reze a Deus para que o liberte destes laços” escreve Frei Bento Domingues no Público de hoje e acrescenta parafraseando o ex-presidente latino-americano: “Todo aquele que seja apegado a estas coisas, por favor, que não entre na política, não entre numa organização social ou num movimento popular, porque causaria muitos danos a si mesmo, ao próximo e sujaria a nobre causa que empreendeu. E que também (esta é para o clero) não entre no seminário.” 

         - Já que estou em maré de citações, aqui fica esta de André Gide: “La solitude n´est supportable qu´avec Dieu.” Como em cada instante da nossa vida é indispensável a Sua presença.

         - Erdogan vai ter dificuldade em fazer frente por muito tempo às guerras dentro e fora do seu país. Ontem dois terríveis atentados à bomba contra a brigada de polícia que fazia a protecção o estádio do Besiktas. Morreram cerca de quarenta polícias e muitos civis foram feridos. As explosões foram atribuídas aos turcos, embora o sultão tenha que se bater com outros grupos como o Daesh e os militantes da extrema-esquerda.


         - Anteontem participei como não podia deixar de ser, no almoço que o João Corregedor organizou no Príncipe. Éramos ao todo 24 pessoas entre jornalistas, fotógrafos, pintores, escultores, escritores. Eu só não conhecia dois dos presentes. João, generoso, ofereceu o bolo-rei e aspergiu a raiva de se ver naquele lugar que ele detesta e eu também comecei a antipatizar devido ao ruído ensurdecedor que não permite o diálogo ou o normal convívio civilizado. O repasto estendeu-se para lá das três da tarde, porque à medida que os convivas iam saindo, um grupo juntou-se na mesa da Ana Matos, neta de Saramago, que é uma rapariga encantadora. Aproveitei para testar se ela estava de candeias às avessas comigo devido ao que ela escreveu sobre o Guilherme e eu corrigi no livro que sai esta semana contando a vida e a obra do artista. Logo um consenso se instalou, assente na premissa: uma coisa é a linguagem oral, outra a escrita. Rocha Pinto estava presente. Depois de anos de travessia no deserto, problemas pessoais e choques íntimos, parecia sob efeito de medicamentos porque quase não falou, mantendo-se hirto e ausente, um leve sorriso suspenso da interrogação que não ousou fazer e estabelecia entre nós a distância que ninguém ousou franquear. A dada altura ele tira de um saco um dossier que quer que eu veja: eram as fotografias dos seus mais recentes trabalhos. Que coisa sublime! Que força! Que pujança artística! Que volte-face na sua forma de pintar, abordando agora uma outra concepção do espaço e sobretudo do intrínseco murmúrio atravessado do vislumbre que paralisa e interroga, da cor e do traço a ela associados, como se quem o pintou fosse outra pessoa e não aquela que tenho a meu lado entupido de silêncio e insinuando um ligeiro e doce sorriso tímido como uma criança que acabou de revelar uma tropelia, um segredo, uma dor plasmada algures num tempo-outro, obscuro espaço, luz triste, folgo lento, neblina densa de onde sai incólume o pintor que se tinha extraviado e surge agora ressuscitado através de telas soberbas que trazem a sua assinatura e são tão-só um fio do traço antigo cruzando-se nas manchas de cor sólidas, firmes, potentes, majestosas que dão e exprimem o toque de um grande artista. Fiquei, pura e simplesmente, abasourdi. Uma dúzia de amigos deixou o restaurante corrido pelos empregados que tinham mais que fazer que estar a aturar-nos, a nós que não ligamos ao tempo e vivemos de costas voltadas para ele. Descendo o Chiado, disse ao Corregedor que ia ao meu lado, ali perto, ao virar da esquina, havia um prédio que guarda as histórias da imprensa nacional e, sobretudo, dos jornalistas. Logo ele: “A propósito. Vamos tomar um copo ao bar do Tronfa.” Esta personagem que julgo já falecida, era um aristocrata à moda antiga onde no seu bar, durante anos, conviveu uma plêiade de homens dos jornais e uma espécie de dependência da Casa dos Jornalistas, em frente. Hoje, o interior, se bem me lembro, conserva o mesmo decore à inglesa, com recantos para a cavaqueira e janelas baixas para a rua, mas com sotaque brasileiro... Foi a um canto que abancou a meia-dúzia dos salvados do almoço natalício, quase todos tocados pelo álcool, a resbunar ao sabor das circunstâncias. Mal sentados, sob a batuta do João que adora o convívio e tem a amizade e a discussão franca em alto gabarito, logo desabou um fogo cruzado de temas empurrados pelo uísque, o gim e o chá verde que o Corregedor ia bebendo em porções filtradas de gentleman doutros tempos. A política, o asneiredo, as anedotas, as histórias e ladainhas entrecortadas de vivas promessas que a bebida transformara em orações, a ponto que o Gordilho que estava, portanto, a água gaseificada, trouxe a religião à liça. Ele falava imprecisamente de milagres, fazendo deles a profissão de fé que, contudo, não estava alicerçada nos fundamentos que Jesus Cristo exige serem os que devemos seguir como a crença na ressurreição da morte e a vida eterna. O Virgílio de voz entaramelada, insurgiu-se. Outros também. Gordilho vacila. Eu digo que a crença é uma questão íntima, prontamente secundado pelo João Corregedor. O Segurado está alheio e diz não pertencer àquele número, prosseguindo no uísque que lhe dá vida. Na companhia destas esponjas simpaticíssimas, deixámos o bar já a noite tinha descido sobre o Chiado. Seriam umas sete horas. Foi quando o António Segurado, propôs-nos subir ao bar do Hotel do Bairro Alto para admirarmos a vista sobre a cidade e o Tejo espojado a seus pés. Como o elevador é demasiado estreito, subimos Segurado, Rocha Pinto e eu, depois Virgílio, o sobrinho, Gordilho e mais um ou outro. Estes últimos ficaram, nós, admirada a paisagem nocturna, feito mentalmente o montante que iríamos gastar, optámos por deixar os nossos amigos a bebericar e descemos para o Largo do Chiado inundado de gente. Eu tinha marcado um encontro com o Simão que devido ao avançado da hora foi desmarcado. Despedi-me dos meus amigos e desci ao Rossio. Estando ali, quis passear por toda a Baixa a cheirar a Natal. A iluminação este ano pareceu-me mais elegante, menos saloia, com a tonalidade da luz branca, talvez LEDs, a realçar do escuro e das fachadas dos prédios pombalinos. Havia imensa gente àquela hora, como no tempo da minha adolescência quando ia fazer as compras da quadra com a tia Dália aos Armazáns do Chiado, à Loja das Meias. Diria que senti o mesmo frio, o mesmo caudal de simpatia pelos passantes, um ligeiro frisson a encher-me da ternura que ficou para trás quando Lisboa era tão adolescente como eu e nos passeios se irmanavam novos e velhos, ricos e pobres, como património imemorial de um tempo, esquecida a ditadura e realçados os laços fraternos que estão para além dos sistemas políticos e são tesouros exclusivos da convivência civilizacional que abraça num mesmo amplexo todos os seres humanos. Regressei a casa no trem dos noctívagos, com a sensação da leveza divina que aligeira os ódios e faz do próximo um Amigo entre muitos outros amigos.