Domingo, 11.
Parece implícita na cabeça de muita gente
para quem o dinheiro é o diploma que os favorece com vinte valores na
governação, que os 60 milhões gastos a tratar cidadãos com doenças raras
através de medicamentos ditos inovadores, cria não só desigualdades como são
uma despesa excessiva para a Segurança Social. Que diria então o Estado dos 150
milhões que um só indivíduo pôs em paraísos fiscais! O que esta gente ganha
pontapeando uma bola durante duas horas, é uma afronta à inteligência daqueles
que fazem avançar a ciência e com isso extinguem o sofrimento e dão esperança à
humanidade. Mas esses têm de esmolar subsídios, viver à justa, ter uma reforma
sem horizontes. São estas desigualdades que revoltam e conduzem os mais sensíveis
ao desespero e arruínam a confiança na democracia.
- Vicente Jorge Silva: “Se a Caixa não pode ser uma caixinha, na
expressão de Catarina Martins e entendimento de Costa, é preciso evitar que
seja um caixão simbólico do serviço público democrático.” Sem comentário.
- “Qualquer pessoa que seja demasiado apegada às coisas materiais e que
ama o dinheiro (esta é directa aos socialistas, digo eu), banquetes
exuberantes, casas sumptuosas, roupas de marca, carros de luxo, aconselharia
que compreenda o que está a acontecer no seu coração e que reze a Deus para que
o liberte destes laços” escreve Frei Bento Domingues no Público de hoje e
acrescenta parafraseando o ex-presidente latino-americano: “Todo aquele que
seja apegado a estas coisas, por favor, que não entre na política, não entre
numa organização social ou num movimento popular, porque causaria muitos danos
a si mesmo, ao próximo e sujaria a nobre causa que empreendeu. E que também
(esta é para o clero) não entre no seminário.”
- Já que estou em maré de citações, aqui fica esta de André Gide: “La
solitude n´est supportable qu´avec Dieu.” Como em cada instante da nossa vida é
indispensável a Sua presença.
- Erdogan vai ter dificuldade em fazer frente por muito tempo às guerras
dentro e fora do seu país. Ontem dois terríveis atentados à bomba contra a
brigada de polícia que fazia a protecção o estádio do Besiktas. Morreram cerca
de quarenta polícias e muitos civis foram feridos. As explosões foram
atribuídas aos turcos, embora o sultão tenha que se bater com outros grupos
como o Daesh e os militantes da extrema-esquerda.
- Anteontem participei como não podia deixar de ser, no almoço que o
João Corregedor organizou no Príncipe. Éramos ao todo 24 pessoas entre
jornalistas, fotógrafos, pintores, escultores, escritores. Eu só não conhecia
dois dos presentes. João, generoso, ofereceu o bolo-rei e aspergiu a raiva de
se ver naquele lugar que ele detesta e eu também comecei a antipatizar devido
ao ruído ensurdecedor que não permite o diálogo ou o normal convívio
civilizado. O repasto estendeu-se para lá das três da tarde, porque à medida
que os convivas iam saindo, um grupo juntou-se na mesa da Ana Matos, neta de
Saramago, que é uma rapariga encantadora. Aproveitei para testar se ela estava
de candeias às avessas comigo devido ao que ela escreveu sobre o Guilherme e eu
corrigi no livro que sai esta semana contando a vida e a obra do artista. Logo
um consenso se instalou, assente na premissa: uma coisa é a linguagem oral,
outra a escrita. Rocha Pinto estava presente. Depois de anos de travessia no
deserto, problemas pessoais e choques íntimos, parecia sob efeito de
medicamentos porque quase não falou, mantendo-se hirto e ausente, um leve
sorriso suspenso da interrogação que não ousou fazer e estabelecia entre nós a
distância que ninguém ousou franquear. A dada altura ele tira de um saco um
dossier que quer que eu veja: eram as fotografias dos seus mais recentes
trabalhos. Que coisa sublime! Que força! Que pujança artística! Que volte-face
na sua forma de pintar, abordando agora uma outra concepção do espaço e
sobretudo do intrínseco murmúrio atravessado do vislumbre que paralisa e
interroga, da cor e do traço a ela associados, como se quem o pintou fosse
outra pessoa e não aquela que tenho a meu lado entupido de silêncio e
insinuando um ligeiro e doce sorriso tímido como uma criança que acabou de
revelar uma tropelia, um segredo, uma dor plasmada algures num tempo-outro, obscuro
espaço, luz triste, folgo lento, neblina densa de onde sai incólume o pintor que
se tinha extraviado e surge agora ressuscitado através de telas soberbas que
trazem a sua assinatura e são tão-só um fio do traço antigo cruzando-se nas
manchas de cor sólidas, firmes, potentes, majestosas que dão e exprimem o toque
de um grande artista. Fiquei, pura e simplesmente, abasourdi. Uma dúzia de amigos deixou o restaurante corrido pelos
empregados que tinham mais que fazer que estar a aturar-nos, a nós que não
ligamos ao tempo e vivemos de costas voltadas para ele. Descendo o Chiado,
disse ao Corregedor que ia ao meu lado, ali perto, ao virar da esquina,
havia um prédio que guarda as histórias da imprensa nacional e, sobretudo, dos
jornalistas. Logo ele: “A propósito. Vamos tomar um copo ao bar do Tronfa.”
Esta personagem que julgo já falecida, era um aristocrata à moda antiga onde no
seu bar, durante anos, conviveu uma plêiade de homens dos jornais e uma espécie
de dependência da Casa dos Jornalistas, em frente. Hoje, o interior, se bem me
lembro, conserva o mesmo decore à inglesa, com recantos para a cavaqueira e
janelas baixas para a rua, mas com sotaque brasileiro... Foi a um canto que
abancou a meia-dúzia dos salvados do almoço natalício, quase todos tocados pelo
álcool, a resbunar ao sabor das circunstâncias. Mal sentados, sob a batuta do João
que adora o convívio e tem a amizade e a discussão franca em alto gabarito, logo
desabou um fogo cruzado de temas empurrados pelo uísque, o gim e o chá verde
que o Corregedor ia bebendo em porções filtradas de gentleman doutros tempos. A política, o asneiredo, as anedotas, as histórias e
ladainhas entrecortadas de vivas promessas que a bebida transformara em orações,
a ponto que o Gordilho que estava, portanto, a água gaseificada, trouxe a
religião à liça. Ele falava imprecisamente de milagres, fazendo deles a
profissão de fé que, contudo, não estava alicerçada nos fundamentos que Jesus
Cristo exige serem os que devemos seguir como a crença na ressurreição da morte
e a vida eterna. O Virgílio de voz entaramelada, insurgiu-se. Outros também.
Gordilho vacila. Eu digo que a crença é uma questão íntima, prontamente
secundado pelo João Corregedor. O Segurado está alheio e diz não pertencer
àquele número, prosseguindo no uísque que lhe dá vida. Na companhia destas
esponjas simpaticíssimas, deixámos o bar já a noite tinha descido sobre o
Chiado. Seriam umas sete horas. Foi quando o António Segurado, propôs-nos subir
ao bar do Hotel do Bairro Alto para admirarmos a vista sobre a cidade e o Tejo
espojado a seus pés. Como o elevador é demasiado estreito, subimos Segurado,
Rocha Pinto e eu, depois Virgílio, o sobrinho, Gordilho e mais um ou outro. Estes
últimos ficaram, nós, admirada a paisagem nocturna, feito mentalmente o
montante que iríamos gastar, optámos por deixar os nossos amigos a bebericar e
descemos para o Largo do Chiado inundado de gente. Eu tinha marcado um encontro
com o Simão que devido ao avançado da hora foi desmarcado. Despedi-me dos meus
amigos e desci ao Rossio. Estando ali, quis passear por toda a Baixa a cheirar
a Natal. A iluminação este ano pareceu-me mais elegante, menos saloia, com a
tonalidade da luz branca, talvez LEDs, a realçar do escuro e das fachadas dos
prédios pombalinos. Havia imensa gente àquela hora, como no tempo da minha
adolescência quando ia fazer as compras da quadra com a tia Dália aos Armazáns
do Chiado, à Loja das Meias. Diria que senti o mesmo frio, o mesmo caudal de
simpatia pelos passantes, um ligeiro frisson
a encher-me da ternura que ficou para trás quando Lisboa era tão adolescente
como eu e nos passeios se irmanavam novos e velhos, ricos e pobres, como
património imemorial de um tempo, esquecida a ditadura e realçados os laços fraternos
que estão para além dos sistemas políticos e são tesouros exclusivos da
convivência civilizacional que abraça num mesmo amplexo todos os seres humanos.
Regressei a casa no trem dos noctívagos, com a sensação da leveza divina que
aligeira os ódios e faz do próximo um Amigo entre muitos outros amigos.