segunda-feira, dezembro 26, 2016

Segunda, 26.
A Rússia está de luto. Todos os músicos do célebre coro militar Alexandrov Ensemble à excepção de três que não embarcaram, pereceram num acidente de avião quando iam oferecer um concerto natalício aos soldados soviéticos em missão na Síria. Putin determinou um inquérito, mas tudo leva a crer que se tratou de um acidente.

         - A visita que fiz ao número dezanove da Berggasse, remeteu-me para algumas das minhas interrogações sobre o teoria freudiana. A casa onde viveu Freud, hoje museu mercê do muito que a filha Clara doou, situa-se num bairro calmo, com um pequeno jardim nas traseiras, elegante sem ser luxuosa. Era ali que o psicanalista recebia os seus doentes, estudava, lia e escrevia. A única sala que resistiu ao que foi, é a sala de espera onde também Sigmund Freud recebia colegas, escritores, artistas, mantinha serões animados de discussões. Foi lá que conheceu a charmosa Louise von Salomé, conhecida por Lou Lou, que seduziu uma parte do mundo artístico e cultural – Freud, Rilke, Niestzsche, este andou mesmo a bater com a cabeça nas paredes por ela e alguns mais. Einstein era visita assídua, as polémicas  prolongavam noite dentro. À parte o canapé e o conjunto dos quadros e demais mobiliário, todas as outras divisões estão vazias, oferecendo, contudo, ao visitante fotocópias dos seus escritos, algumas edições dos seus livros, os célebres totens. Eu li muito cedo o livro-revelação Psicopatologia da Vida Quotidiana. A partir dessa leitura, instalou-se em mim uma certa reserva quanto aos métodos de trabalho do grande homem. Mas isso é outra conversa que não cabe nestas páginas. Um filme de cerca de trinta minutos, apresenta a sua vida familiar, o cão e as visitas, quando Freud já sofria do cancro que o haveria de levar. É uma vidinha  pequeno-burguesa, com o seu quê de coisinha, o apoio da mulher e da filha, a reverência dos que chegavam para lhe fazer companhia, quando ele embrulhado em mantas se quedava no jardim da sua casa de Londres para onde imigrara quando fugiu à tirania de Hitler. Mas tem-se simpatia pela figura esguia, frágil, um pouco recuada de si, com o sentimento de saber o que é a vida e o que nos espera depois desta existência que ele tentou decifrar e explicar como parte de um todo cujos alicerces estão na infância e, sobretudo, na mãe. Mas Freud, como se sabe, sabia muito pouco da mulher.
A sala de espera do Dr. Freud

         - Green por uma vez. Falei aqui na pedra gravada da capela Julian Green com um texto escrito pelo escritor. Esse texto é de tal modo belo e impressionante, que vou traduzi-lo para que os meus leitores o conheçam e... o guardem.

         - Suponho que pouco ou nada falei do que por aqui se come. Grosso modo, não é a alimentação que me convém. À parte a doçaria que é excepcional de requinte e bom gosto, tudo o resto assenta em gorduras animais como o porco, a vaca, enchidos, cremes. Por exemplo, às vezes tenho necessidade de sopa, sopa como a que fazemos, com legumes que se mastigam. Pois aqui é impossível encontrá-la. Fui então a um restaurante que tenho em frente da janela do hotel e afixa “comida bio”. Perguntei que trazia aquela aguada passada a varinha mágica. Aparentemente só ervilha, couve, beterraba, batata. Que venha. Soube bem porque fazia muito frio e tudo o que chegue quente é bem-vindo, mais a mais no princípio bio. Logo à primeira colherada, não senti nenhum dos sabores que era suposto existirem. O que notei foi o creme que tinha entrado em abundância, talvez para disfarçar os produtos naturais... pensei. No dia seguinte e depois de ter pago dez euros pelo caldinho, acordei com um botão no lábio superior. Dá para acreditar? Não dá.

         - Normalmente começo o meu dia no café-bar inglês Ascot que encontrei no segundo dia de aqui ter chegado a duas ruas da porta do hotel. Trata-se de um interior tipicamente britânico: sofás de cabedal verde, largas mesas de mármore escuro, pequenos candeeiros nas mesas, lustres de cristal, um ecrã exibindo partidas de críquete e cavalos, espelhos e a atmosfera que eu conheci quando estive em Londres. Àquela hora da manhã, não tem quase clientela, pelo que me é agradável concentrar-me no meu trabalho sem as distracções habituais. Apetecia-me dizer que estes momentos são os melhores desta estada austríaca, à parte a minha ida chez monsieur Green. Escrever exige tempo, sossego, quer seja nestas páginas, quer no romance, porque mesmo em deambulações trago sempre o “crochet” comigo.



O bar Ascot onde trabalho todas as manhãs 

         - Aqui na Landstrasse, a pouco menos de um quilómetro a pé, fica o mundo delirante do pintor Hundertwasser que eu conheci em 1979 (penso) quando fui com a Isabel e o Saramago ver a retrospectiva que a Gulbenkian lhe dedicou. Lembro-me que saímos entusiasmadíssimos  daquele patchwork louco que apostava no delírio e na consagração da cor enquanto objecto de criação artística. Hoje dediquei-lhe a recordação. Fui primeiro conhecer a casa onde viveu, depois o museu com cinco andares onde expõe os primeiros trabalhos de 1947-1950 e pelos anos Sessenta assiste-se ao estoirar da loucura que o celebrizou. Foi, um artista diversificado, entrando no mundo do azulejo, da arquitectura, dos moldes, sob a fórmula que eu defino por patchwork. O museu reúne o essencial da sua personalidade e da sua obra. A própria construção do edifício, todo em ondas, o piso irregular obrigando-nos primeiro, a dizer a nós mesmos que não estamos bêbados, segundo, a caminhar com imensas cautelas para não tombarmos naquele chão perturbador. O museu está bem cuidado, mas a casa mais adiante, apresenta já os maus-tratos do tempo. Há gente que vive lá, embora a sua manutenção deva ser custosa e nessas condições ficar entregue à condicionante tempo. No rés-do-chão do museu, existe um restaurante simpático. As raparigas que servem às mesas, parecem lá estar para enxotar os visitantes de entrar. Se quisesse definir a obra de Friedensreich Hundertwasser, diria que tudo se assemelha... na diferença.

A casa onde viveu o pintor Hundertwasser

O museu que expõe a sua obra

         - Este ano não tarda entra na moribunda história da Europa dos nossos dias. Não foi um ano fácil julgo que para ninguém. O mundo conheceu momentos complicados, a insegurança é total, o salve-se-quem-puder está por todo o lado, os egoísmos instalaram-se, a ladroagem está sólida, os pobres aumentaram, os infelizes sem pátria nem identidade são um flagelo numa União Europeia dita humanista e solidária. Pessoalmente realço doze meses de profundo estudo e prazer cultural, para só falar do essencial e não abrir o coração à mórbida curiosidade do comum falacioso. Anotei o que fui lendo ao longo dos doze meses e aqui deixo o epílogo dos momentos felizes que enxotaram os outros de triste memória.  
Assim:

Viagem a Itália – Goethe
Astronomia – Mário Cláudio 
L´ écriture ou la vie – Jorge Sumprun
Grécia Revisitada – Frederico Lourenço
La lettre au capitaine Brunner – Gabriel Matzneff
Fuir por vivre – Erika e Klaus Mann
Manuel d´Épictète
Tableau de Cébès
Lélia ou la vie de George Sand – André Maurois
Voyage atlantique – Ernst Junger
Soixante-dix s´efface (vol. V)  – Ernst Junger
Diálogos em Túsculo -  Marco Túlio Cícero
Carnets 1995-1998 – Philippe Jaccottet
Le philosophe qui n´était pas sage – Laurent Gounelle
Cidades da  Noite Vermelha – William Burroughs
Êutifron, Apologia de Sócrates, Críton – Platão na tradução de José Trindade dos Santos
Medeia – Eurípedes (ainda o estudo e notas de Maria Helena da Rocha Pereira)
Antígona – Sófocles (e a introdução e notas go grego de Maria Helena da Rocha Pereira)
Tratado da Imitação – Dionísio de Halicarnasso com notas e tradução de Raul Miguel Rosado Fernandes  
Do mundo Grego – Selecção, tradução e notas de Albano Martins
A Letra Encantada - Nathaniel Hawthorne
Oresteia (Agamémnon, Coéforas, Euménides) – Ésquilo
Correspondence – Stefan Zweig e Klass Mann
Quand les lumières s´éteignent – Erika Mann
Joujou – Eve de Castro
La dame Blanche – Paul Morand

Goethe et Tolstoi – Thomas Mann