Quinta, 22.
Ontem realizei por assim dizer a razão
que me trouxe aqui: visitar a sepultura de Julien Green na igreja de Sankt
Egid, em Klagenfurt. Para isso, tive que fazer num dia apenas, quatro horas de
viagem para lá e outras tantas de regresso a Viena, com um intervalo de
escassas três horas pelo meio para cumprir o meu objectivo. Fui num autocarro
cómodo, atravessando uma paisagem densa de montanha, toda de branco vestida,
devido a neve que tem caído um pouco por toda a Áustria. O sítio onde o meu
Autor escolheu permanecer para o mundo
que há-de vir, fica no estado da Caríntia, numa cidade simpática, próspera
como são todas as daqui, animada de um povo cortês que vos saúda com um sorriso
discreto. O autocarro estacionou por assim dizer fora de portas. Para alcançar
o centro, tive que palmilhar a pé uma enorme distância, bem uma hora, a que se
somam os minutos dos erros, das indicações mal fornecidas, enfim, da pesquisa
do lugar. Felizmente, não obstante os dois graus negativos, não nevava, os
passeios estavam desimpedidos e a mim não me restava que meter pés ao caminhar.
Enquanto subia a comprida rua principal, ia dizendo: “J´arrive, monsieur Green,
estou quase a chegar.” Claro que no percurso as perdições eram muitas: rostos
magníficos que apetecia acariciar, montras tentando-nos com pratos de doces
cada um mais devorador, um olhar aqui outro acolá a travar-nos o passo, as
horas a correr sem autorização do viajante... Bref. Vista de fora, a igreja
parece abandonada, de uma simplicidade de aldeia e, por isso, a meus olhos mais
terna a lembrar a singeleza dos primeiros tempos cristãos. Entrada a porta, somos
de súbito tocados pela beleza do interior, sobretudo o altar-mor, mas também por
uma certa pobreza digna das suas congéneres nascidas na idade Média. Não
obstante as pinturas de Ernst Fuchs que sei ali trabalhou e não pude ver, o
interior de uma só nave, deu-me a impressão de abandono, sem ninguém que nos
elucidasse sobre o muito que queríamos saber. O que todavia ali tinha diante
dos olhos que procuravam o tembeau do
escritor, era uma arquitectura do século XVII, levantada depois do terramoto
que destruiu a primitiva igreja. O autor do Diário com uma vintena de volumes,
fala algures nas suas páginas da capela onde seria sepultado com o seu filho
adoptivo. Avanço pelo lado lateral direito e logo avisto “a sua capela” com a
laje e a decoração do escultor Jos Pirkner numa obra que eu julgo representar
os Peregrinos de Emanaus sem, do meu ponto vista, ser bem conseguida. Acendo
uma vela e fico por alguns minutos em oração. Leio: Eco sumo resurrectio et vita. Eu sou a ressurreição e a vida (João 11-25).
Sou, todavia, obrigado a retomar o Padre-Nosso duas vezes devido à intromissão
de uma inesperada amnésia. Estou só na igreja fria, posso, portanto, viajar
pelo muito que Green me deu, pelas páginas iluminadas da sua vasta obra, pelos
anos que levo a estudá-la, a conviver com o escritor, a ser por osmose da
felicidade o irmão fraterno do seu destino neste mundo. Vim para lhe agradecer
o muito que me tem dado. Eu que poderia tê-lo conhecido em vida, mas por obra
do mistério que consagra o destino, com ele me irmano hoje através do seu
pensamento e da sua expressão artística, e só me resta neste reencontro pos-mortem dizer-lhe: Muito Obrigado. Repousa em paz.
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Túmulo de Julian Green e Eric Green |
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Obra do escultor nativo Jos Pirkner |
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O visitante que veio de longe |
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O altar-mor em talha dourada |
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O lado direito da nave central, com a capela mortuária de Green |