terça-feira, agosto 31, 2021

Terça, 31.

À medida que avanço no romance, deparo-me com uma carrada de dúvidas e muitas hesitações. Sobretudo as relacionadas com o autor, o narrador, a personagem, o tempo na gestação da história. Tinha de memória que José Saramago havia levantado o mesmo género de conflitos na entrevista-livro que deu a João Céu e Silva. Estive, portanto, umas duas horas esta manhã a consultar a obra e como as palavras vivem numa cerejeira, ei-las, as cerejas, que tombam uma a uma e num instante tinha não sei quantas páginas relidas. O curioso da situação, tendo privado com o escritor anos a fio, foi como se o tivesse na Rua de S. Marçal à conversa comigo. O que ele diz é absolutamente verdadeiro, porque muito antes da consagração do Nobel, o espaço e o tempo que foi o seu, derramam-se nas páginas contadas com a clareza da luz que não admite sombras. Nem de tudo gosto na sua vasta obra, acho até que lhe falta um qualquer rasgo de profundidade que navegue por entre os escombros da alma humana, um murmúrio inquieto, uma interrogação que se descaminhe no labirinto da transumância do espírito, cada livro tecnicamente perfeito, mas, para mim, infelizmente, alguns morrem aí. Todavia, esta é a minha opinião pessoalíssima e, portanto, vale o que o vale. 

         - Eu prefiro elogiar Marcelo Rebelo de Sousa no seu papel de vigilante da democracia e das normas constitucionais que no de comentador político, primeiro-ministro, capelão e animador televisivo. Estou com ele quando veta as novas Regras de Apoio à Economia Local que davam aso à extinção de processos a autarcas por incumprimento de normas de gestão financeira, projecto votado pelo PS e o PCP largamente favorecidos, se Marcelo não tivesse vetado. O que é lamentável e revela o carácter político dos dois partidos, é a lata, a indiferença democrática e a  desonestidade que patenteia. 


segunda-feira, agosto 30, 2021

Segunda, 30.

Os franceses não fazem a coisa por menos. Acabo de receber a informação que na próxima semana vão ser postos à venda não só um como dois volumes do Journal intégral de Julien Green, estes acrescidos do título Toute ma vie. São cerca de 2.800 páginas que terminam com o autor a fazer 50 anos de vida. Ora, como ele morre com 98, imagine-se o que nos falta conhecer. Green dizia em vida, que o seu diário na totalidade devia ter o dobro do texto. Eu admiro a força de trabalho que o habitou. Até aos derradeiros meses de vida, indiferente ao tempo, prosseguiu a sua obra como se tivesse ainda mais outros noventa para viver. E sempre muito criativo como prova o romance póstumo L´inconnu.



         - O futuro do Afeganistão está traçado: humilhação, sofrimento, morte. Para a maioria que não consegue fugir do país, espera-lhe um Estado bárbaro como aquele que o Antigo Testamento descreve. O cruel abandono dos EUA, em tempo de líder democrático, executando o plano de antigo Presidente, um homem analfabeto, orgulhoso, déspota, arrogante e megalómano, está à vista: em poucos dias vários rockets trocados entre o chamado estado islâmico e o Estado americano. Não se sabe quantos morreram nesta segunda guerra de cálculos de toda a ordem. Entretanto, 13 militares norte-americanos foram a enterrar. Morreram com vinte anos ao serviço dos interesses do seu Governo e das superpotências. 

         - Estive com o Fortuna – está por metade. Perguntei-lhe se estava doente, assim tão magro e reduzido fisicamente. “Não. São os nervos.” Serão. Porque o entusiasmo pelos projectos, embora empurrados com dificuldade, nunca o largam. O cérebro pensa rápido, a acção arrasta-se atrás. Os 87 revelam-se. 

         - Antecipando o Inverno e prevendo a saída para Paris em Outubro, comecei a carregar lenha para proteger debaixo do telheiro. É trabalho duro e demorado que terei de fazer aos bochechos. Esta manhã três carregos. 


domingo, agosto 29, 2021

Domingo, 29.

Eu parece que previa a desgraça no apontamento de segunda-feira passada, dia 23. Naquela chaga aberta em que se tornou o Afeganistão, grandes foram as tragédias que desde o meio da semana ocorreram. Por cima dos milhares de desesperados que tentavam a saída de Cabul, o Daesh-K (nova sigla indicativa de divisão no seio do grupo) fez deflagrar uma bomba potente que um kamikaze trazia consigo: mais de uma centena de mortos, muitos deles soldados americanos que faziam serviço de encaminhamento dos infelizes para os aviões militares, muitos feridos, o caos e o sofrimento no coração de todos os que ali se encontravam e encontram para fugir de uma vida bárbara que decerto espera a todo o povo afegão. Joe Biden prometeu vingança e não tardou: ontem os EUA desencadearam um ataque com drone contra o Daesh, digamos, mais extremista acantonado na província de Nangarhar (a Este do território). Não se sabe quem foi atingido e provavelmente não se saberá tão cedo. Biden diz ter sido morto o comandante Bill Urban. O curioso de toda esta embrulhada, é que quem cedeu a informação do sítio a atacar, foram os novos senhores do Afeganistão. Adivinha-se, portanto, o futuro da trapalhada americana na zona e no mundo. Acho que quem tem tido o sentido apurado desta desgraça criada pelos EUA e do vindoiro posicionamento geo-estratégico, é Emmanuel Macron que não quer romper com os novos dirigentes e permanece no Afeganistão contra a debandada de todos os outros países. Talvez tenha razão. Ontem estive a ver a entrevista que o porta-voz dos talibãs, Zabihullah Mujahid, ao canal France 24 e pareceu-me um homem equilibrado e em quem se pode confiar. A ver vamos, claro. 

         - “Muitos dos clichés usados para denegrir o Partido Socialista são verdadeiros. Não tem alma, nem ideologia. Não tem doutrina, nem cultura. Não tem estratégia, nem programa. Não tem afecto, nem simpatia. Não tem substância cultural, nem identidade política. Não tem orgulho, nem compaixão.” António Barreto no Público de ontem. Eu gostaria de acrescentar apenas mais esta: não é socialista, é uma coisa híbrida entre a social democracia e um clube de ricos ignorantes. 

         - Sexta-feira instalei-me na fnac do Chiado e cumpri umas saborosas três horas de trabalho no romance. Apesar da noite inopinadamente má, a cabeça cumpriu e o resultado foi satisfatório. Até à chegada da Carmo Pólvora com quem fui almoçar ao Adega da Mó. Longo, simples e saboroso repasto regado com tinto e muita conversa solta. No restaurante apenas meia dúzia de clientes.  

         - Ontem, também de inesperado (eu que adoro imprevistos), apareceu a Maria José a desafiar-me para almoçar. Levou-me ao sítio outrora do Sebastião Fortuna, hoje transformado numa zona de restauração ao ar livre. Os brasileiros estão por todo o lado, são eles que governam o espaço. Depois da arrastada refeição, fomos ao seu atelier. Maria José não pára. Encontrei-a a fazer um relógio solar para uma IPSS, portanto, à borla, na mesma técnica bizantina e romana, isto é, em milhares de pedras de várias cores, minúsculas, 2, 3 milímetros, coladas juntas formando a imagem previamente criada. Disse-me ela que cada quadrado com 20x20 cm levava um dia inteiro (nove horas!) a cobrir! A paciência, o esforço físico que ela põe não sendo já uma moçoila na obra é admirável.  


quinta-feira, agosto 26, 2021

Quinta, 26.

The future is dark, não só devido aos cataclismos naturais como aos que os homens montam para acudir à ganância e à voracidade. O mundo vive numa espécie de construção do desastre, testando meios e circunstâncias, experimentando acções e ódios capazes de explodir a qualquer momento. Há uma atmosfera que antecede a grande catástrofe pairando no ar, os seres humanos mais vulneráveis são testados servindo de confronto e escudo às superpotências. Os computadores ajudam a aperfeiçoar o armamento da guerra moderna, não só pela força das armas, mas também pela palavra que prepara e define os campos de batalha. Ninguém hoje se bate por uma ideologia, religião ou sequer território; só o poder interessa enquanto força dominadora do controlo económico-financeiro do mundo. A partir dele, tudo se submete. Em última análise é a subsistência que constrói a vida e dá sentido à morte. 


quarta-feira, agosto 25, 2021

Quarta, 25.

Volta que não volta, sou surpreendido pelo bom senso e prudência do bom povo português. Não tem uma semana que os governantes libertaram as amarras que sustinham o contágio por coronavírus. Embalados pelas autárquicas, desejosos de serem os primeiros na corrida ao coração dos revoltados pelas medidas de contenção social, ei-los levantando as barreiras que durante estes dois anos impediram que muitos mais mortes houvessem, internamentos, sofrimento e depressões. De repente, montados nos 70 por cento de vacinados, alegremente a aceitarem que a vacina é 100 por cento imune ao contágio, abrem os diques e deixam entrar na enxurrada uma série de mentiras que foram vendidas por verdades: “nos transportes públicos já pode entrar toda a gente”, uma mentira que todos os que viajam como eu neles sabem nunca ter existido impedimentos; “as esplanadas podem agora agrupar 15 pessoas”, mentira sempre puderam, nomeadamente, na Brasileira quem quis e como quis; “a máscara deve ser sempre usada no interior e exterior dos estabelecimentos - cafés e restaurantes – desde que não se esteja a comer”, mentira sempre vi gente sem máscara nas esplanadas e na Brasileira éramos apenas nós, tomada a bica, que a colocávamos e muitas outras aldrabices para patego reter. Todavia, apesar dos políticos que temos, o povo age em contraordem: por todo o lado vi continuar a respeitar o cruzamento de lugares no metro como no comboio, toda a gente de máscara e na rua só vi estrangeiros a mostrar os dentes nem sempre limpos...  

         - Desde que deixei de ir a Lisboa com frequência, aumentei o ritmo de trabalho no romance. Ontem, por exemplo, até fui ao Chiado para me encontrar com o João Reino e almoçarmos e no entretanto pedir-lhe explicações para uma anomalia no computador. Fui mais cedo com o tricot na mochila e instalei-me no café da fnac. Três abençoadas horas sem que tivesse entrado no espaço um só cliente. Conclusão: se somarmos até hoje três manhãs de três horas temos que terminei a revisão da primeira parte de O Matricida. Enfim, forma de falar. Porque neste fragmento é a adolescência de Semyon que é contada e ele só deve ficar concluído quando a personagem deixar Anadyr para se juntar ao grupo de revolucionários que em Kiev se organiza para escorraçar os soldados de Moscovo da Ucrânia. Falta-me muita informação que não encontro em Lisboa. Nem sequer um mapa da Crimeia existe. Por isso, é para mim fundamental ir a Paris onde tenho tudo e diverso à minha disposição. Antes de embarcar de regresso a casa, passei na Reviera para trazer o jantar. Só que a dose, como era a última da travessa, deu para o jantar de ontem, o almoço de um dia destes e o jantar da próxima semana. 

         - Manhã de céu leitoso. Regas. Terminei a limpeza das traseiras da casa onde todos os anos o grande medronheiro atapeta o chão de milhares de folhas. Para o início da tarde instalou-se um sol brilhante e quente e não tarda atirar-me-ei à água para meia hora de natação vigorosa e outra de vitima D. Apesar destes cuidados com a saúde, não tenciono isentar a máscara, a desinfecção das mãos e a distância com quem falo ou me cruzo. 

E cá estou eu com o novo look de ócudos


segunda-feira, agosto 23, 2021

Segunda, 23.

Quer-me parecer que a única pessoa que pôde dialogar com os perversos dos talibãs - pelo que é evidente e comum entre eles -, foi Donald Trump. O acordo que este fez com a seita e Biden podia ter modificado ou recusado, está na origem do abandono criminoso de um povo nobre à morte canalha e bárbara de milhares de inocentes. A América interesseira e soberba, dupla e apoiada no expansionismo, sai absolutamente desacreditada depois de vinte anos e já antes ter criado o bando ensandecido que agora governa o Afeganistão: os talibãs. Eles são produto de uma América sem princípios morais, éticos, humanos, que joga a sua influência apoiada nos seus interesses ocasionais e onde se mete deixa um rasto de miséria e morte e muitos constrangimentos à Europa de pendor mais humanista. Um grande barril de pólvora está a arder em Cabul e basta ouvir o que deles diz o Daesh, para se perceber que os próximos tempos vão ser terríveis não só para a região como para o resto do mundo.  

         - Avencei um pouco mais no Diário de Paul Morand. A páginas 250, no Início do ano 1940, os jogos de guerra são uma constância da actividade do adido da embaixada de França em Londres. Que mexericos, que vida paralela à construção da guerra! De Gaulle por quem o escritor não morria de amores, chega a Londres e por imperativo de Churchill faz a sua primeira alocução na BBC então rádio.  Àquele período voltarei. 

         - Se nós interiorizássemos que a dádiva da vida reside na morte de Jesus tudo mudaria.  

         - A Piedade esta manhã levou-me junto das figueiras e os dois viemos com um cesto de figos. Logo comecei a fazer compota e enchi quatro frascos do delicioso doce. O resto do dia preguicei, sem vontade para escrever ou ler. São 21 horas e 45 minutos. Noite quente, mas tolerável. Os técnicos ameaçam-nos com temperaturas a tocar os 40 graus para os próximos dias.


domingo, agosto 22, 2021

Domingo, 22.

A obsessão pelo de confinamento tem a sua justificação não na saúde dos portugueses, mas nas autárquicas do mês que vem. De contrário, onde é que se viu 70% da população vacinada proteger os quase dez milhões de habitantes! Eu julgava que a imunização colectiva ficava em princípio protegida com 80 por cento. 

         - Outra consequência das eleições, são as promessas de António Costa com o milhões que Bruxelas nos emprestou. Mas a verdade, nua e crua, dos números é que o endividamento de Portugal atinge já 762, 5 mil milhões (no dizer do banco de Portugal). Preocupante é também o aumento do endividamento dos particulares de 2000 milhões de euros. Como sempre, os nossos concidadãos, estão-se nas tintas para estas minudências – o último a sair que bata com a porta. Somos uns pobres patetas para quem o princípio é ir vivendo. É por isso que os políticos nos enganam. Desde o sinistro Cavaco Silva, que todos nos prometem vir a ser dos mais abastados da União, estamos no penúltimo dos mais pobres – e nunca de lá saímos. 

         - Ao Público deu-lhe para fazer o chamado “Questionário de Proust” a torto e a eito. Raras são a “figuras públicas” que têm um tudo de nada de massa encefálica. É o caso do bispo auxiliar de Lisboa, D. Américo Aguiar. À pergunta: “O que considera ser o cúmulo da miséria?” Ele respondeu: “Ser o homem mais rico do cemitério.” Há um apresentador na Antena 2 que a todos os entrevistados pergunta: “Qual é a sua Quinta-essência?” Enfim, conforma-te rapaz. 

         - Domingo dominical. S. Paulo foi chamado ao ofício litúrgico deste dia em carta aos efésios. O que ele diz deve ter revoltado as mulheres e, sobretudo, as meninas do BE que são, naturalmente, ateias. Nesta Carta é bem visível que o Apóstolo nunca largou a sua cegueira pelo corpo e o sexo. 

         - Viver nos nossos dias só é suportável refugiados em Deus. 


sexta-feira, agosto 20, 2021

Sexta, 20.

Não sei porquê, mas sinto-me desde há duas semanas em plena forma. Deve ser passageiro este tempo abençoado, porque comigo é por revoadas que passeio nas nuvens ou desço a queimar-me nas chamas do inferno. Pelo meio, tenho choques de cintilações de uma felicidade indiscritível. São pequenos instantes, fagulhas de segundos, que me levam para mundos que ficam para lá de eternidades desconhecidas. É um bem estar quedo, beatifico, atravessado de sonhos, fantasias, recordações encantatórias ou beliscadas de memórias enérgicas de sensualidade. Todos os corpos que tateei ao centímetro quadrado, desaguam no meu regaço, ficam ali por minutos, trazendo-me a loucura que os imortalizou. Chego a ouvir os soluços, a respiração arfante, os gemidos celestiais que são a fonte não só da inspiração como da própria vida. Este tempo acorda-me para a presença da natureza que me rodeia, e sinto arrepios de vontades, admiro o espaço pousando o olhar que arrasta a alegria do fundo dos dias de desespero, e perco-me em passeios meditabundos, revivendo cada minuto dos anos aqui enclausurado, com o sentimento que nada fiz para os merecer. Impulsionado pelo estado de graça em que me encontro, contemplo cada árvore, viajo no voo dos pássaros, finto os raios do sol na densa ramagem que circunda a casa, encho o coração da beleza dos campos verdejantes decorados de cachos de uvas pretas e brancas refulgindo ao sol do meio-dia. Estou que não posso de bem-aventurança. Chego mesmo a paralisar, impedido pelo silêncio profundo de gritar, de agradecer ao Criador tão ufana e bela paisagem, que recebo como uma bênção no meu coração, a fim de nele nidificar a maior aventura que me foi dado conhecer -  a da vida turbulenta e excelsa que é a minha. 

         - Almocei no Corte Inglês com a Alzira recém-chegada do Algarve e cheia de lamúrias. A dada altura desliguei e passei a acompanhar a conversa da mesa do lado. Duas senhoras de bom porte e tom de voz civilizado, quero dizer, baixo falavam deixando escapar desolação. Uma diz para a outra: “Mataram-no na flor da vida. E dizem que também era bonito por dentro.” Que mundo de súbito se me abriu! Quem era o infeliz? Que idade tinha? Por que o assassinaram? Naquela expressão de compaixão e dor, está inteiro todo o valor e fragilidade da nossa passagem por esta terra. 

         - Posso afirmar que o Black é macho. Aconteceu esta manhã quando vi aproximar-se outro gatesco da porta onde ele comia. Logo abriu a boca num esgar de raiva pondo em fuga do desgraçado. Parecia o Drácula na forma felina, com aqueles dois dentes de cima que avançam um pouco sobre os de mais, pontiagudos. Se o outro fosse outra, ele, como o pai, não o expulsava irado. 


quinta-feira, agosto 19, 2021

Quinta, 19.

Encontrei-me com o João B. no Chiado. Grande conversa em torno do momento actual e da sua vida que teve uma reviravolta depois do falecimento da mãe. Deixou de escrever e daí nunca mais ter lido artigos seus no jornal que foi a sua tribuna durante anos. Confessou-me que se sente muito só e que apenas encontra refúgio na leitura. E que leitura? Conhecendo-o há anos, posso garantir que será a mais hermética que imaginar se possa. Digo-lhe isso e ele sorri exibindo, enfim, um rosto infantil como a dizer-me “que queres, sou como sou”. Convidei-o para me visitar em Palmela o que ele prometeu fazer, sabendo eu de antemão que nunca o fará, prisioneiro da depressão em que se encontra. 

         - Isto não se passa só com ele. Muitos amigos desafiei a aparecer, mas eles nunca vieram. Os tempos são de ostracismo, de hesitação, de medos e apatia. A pandemia deu a volta às vidas das pessoas e parece que conseguiu uma espécie de desaprendizagem da felicidade e do prazer. Talvez já não seja o medo que nos manieta, mas uma comodidade mórbida que se instalou, algo parecido com o egoísmo compassivo que começa em cada um de nós e estende-se ao outro. Somos o espelho que se revê nas sombras do outro. Tal como nos encontramos, entregamo-nos aos fazedores de desgraças, à morbidez da janela que entra em nossa casa soprando mentiras, promessas vãs, números e percentagens preparados para nos quebrar o ímpeto de liberdade. Deixámos de ser críticos, confinámos os nossos interesses ao ecrã que não nos deixa pensar, mas simplesmente aceitar o que outros preparam para nós. Olhamos, mas não vemos; ouvimos, mas não apreendemos; cada notícia é uma página do jornal que renunciámos a  ler. Estamos em lado nenhum, vivemos com a morte debaixo dos olhos, uma morte anunciada pelo desânimo, as funções cognitivas apuradas nas teias do desespero. Alguns ainda se agarram ao quotidiano de antes das trevas, querem pendurar-se nele para reinventar outra forma de existência onde tudo o que foi do passado volte temperado com aditivos ajustados às carências de cada um. Como em todas as guerras, há sempre os falsos deuses, sábios, humanoides que nos preparam uma existência desobrigada da vontade, força e acção, enfim, passados ao estádio  de assombrações.  

         - Cheguei, despi-me e mergulhei numa sopa morna que pouco me espevitou os nervos. Encontrei na caixa do correio a conta da EDP chinesa e, para meu contentamento, tenho para pagar apenas 49 yuanes. Esperava uma soma calada, tendo em conta o que costumo despender no verão por causa das regas e piscina. Exemplo, o ano passado neste mês 100 yuanes. Esta redução não é nenhum bónus chinês, antes a ajuda do robô que me permite reduzir o número de horas de tratamento da água, manter esta sempre limpa e gastar menos produtos. E quero sacudir do meu cérebro os 439 yuanes que a avaria do motor levou para Pequim. 

         - Céu-aberto pleno de um azul intenso. Calor q.b.. Não estou em nenhuma galáxia do nirvana, vagueio no mar imenso do tempo silenciado algures numa plataforma imaginária. 


quarta-feira, agosto 18, 2021

Quarta, 18.

Eu que louvara a não existência de fogos este ano no nosso pobre país, eis que eles irrompem com a brutalidade habitual. Vastas áreas de reserva foram ardidas no Algarve, no Alentejo e no Norte. Mesmo assim e apesar do calor, parece-me que até aqui o desastre não é o costumeiro. Não sei se haverá trabalho bem realizado por parte das entidades que estão obrigadas a preservá-las, espero e torço por isso. 

         - A triste e lamentável fuga dos americanos do Afeganistão, pôs de sentinela a política americana que parece ser du n´import quoi. Admira que Joe Biden execute afinal uma ordem de Trump – é inverosímil. Não se pode confiar naquela gente e a Europa tem de começar a olhar para a América com muita desconfiança se quiser marcar a diferença num mundo cada vez mais globalizado. Em breve iremos assistir a todo o tipo de barbaridades fundamentadas no Islão que é uma bíblia de conceitos à la carte.  

         - A Annie insiste para que vá ter com ela a Paris. Bref. Entretanto, Hugues que voltou a viver com a mãe expatriado de Taiwan, quer cá vir passar uns dias. Tudo isto tem de acontecer antes de meados de Outubro altura certa para eu abalar. Mas qualquer facto das nossas vidas, do mundo até, fica condicionado à tirania da Covid-19 ou de uma variante que os chineses entendam meter ao barulho!... O homem andava tão seguro da sua riqueza, do seu saber, do seu progresso e vai-se a ver um insecto insignificante pô-lo na ordem, diante da realidade, todas as fantasias e importâncias reduzidas às tábuas da sua habitação. Aprende ele? Não.   

         - Dia radioso. Revisão do encontro entre Semyon e Natacha parece-me bem urdido. Ufa! Que algo de bom encha os meus dias! Chega de um tempo que nem no calendário existe! 

         - Às minhas tarefas madrugadoras, acresce a apanha de figos. Não posso falhar; de contrário chegam primeiro os pássaros e fazem uma razia completa. Sábado vou começar a fazer compota. De todos os frutos, o figo é o que mais gosto e todos os amigos fazem bicha para receber a sua parte.  

Amoras silvestres 





segunda-feira, agosto 16, 2021

Segunda, 16.

A saúde mental da população, de nós todos, está muito alterada. Volta que não volta, assisto a cenas macacas nos transportes públicos. Ou porque uma gorda empurrou uma magra: ou uma preta chamou racista a um branco; ou um coxo foi impedido de ocupar o lugar que a lei lhe confere; ou um diabético exigiu um banco para não desfalecer; ou um corcunda empurrou um grupo para passar; ou um careca foi gozado por um rapaz sardento, mas cheio de cabelo; ou um grupo de africanas falando tão alto como se estivessem no pátio da suas casas e um passageiro idoso pediu falassem mais baixo e elas responderam que ele não mandava nelas; ou um cardíaco que entrou ofegante e não houve vivalma que lhe desse lugar; ou um maneta com bengala na única mão, depois de ter revirado os olhos em busca de um sítio para aonde se atirar caiu redondo no chão; ou aquele rapazola, vidrado no telemóvel, não tendo dado pela estação, dispara à última hora para a saída deixando para trás um grupo de passageiros blasfemando; ou aquele ciclista, todo pimpão, que entra com o último modelo do brinquedo e afasta à rodada os passageiros que estão ao monte na plataforma; ou aquele cadavérico que tira a máscara para tossir como se fosse a coisa mais natural; ou aquele casal de anciãos, trôpego, muito agarrado um ao outro, a ternura derramando do olhar que se apoia mutuamente, e a quem ninguém oferece um banco; ou aquela negra, de largas ancas, exaurindo um cheiro que afasta os mosquitos humanos para longe; ou homem branco, rude, visivelmente pedreiro, cheio de tintas e colas nos braços, que as pessoas evitam e ainda por cima ele está colocado à entrada; ou aquela discussão acesa sobre política entre dois homens de meia-idade que quase acabava à bofetada, enfim, para quê tanto drama, tanto rumor,  se nos igualamos todos no final desta caminhada, unidos numa mesma condição – a de mortais. A morte não reconhece diferenças.  

         - A Brasileira a que eu cada vez tenho ido menos, porque o número de estrangeiros negacionistas e sem máscara é quase toda a clientela que ali vai, não respeita o espaço entre mesas e o que importa é facturar, deixou para mim de ter os atractivos de outros tempos. Esta manhã, três brasileiras que falavam - força de expressão - gritavam, coladas a mim, sem máscara descompuseram-me e investi sobre elas lembrando-lhes que em Portugal é obrigatório o seu uso. Logo surgiu o Igor dando-lhes razão, porque estavam a consumir e ao ar livre. A lei deve ser isto que diz. Ou antes as leis no nosso pobre país, ajeitam-se a todos e a todas as circunstâncias, são feitas para o sim como para o não, e assim vão servindo sobretudo aos advogados que são eles que as redigem sem terem sido eleitos. Mesmo que aquelas três obtusas já tivessem engolido a sandes, podiam sempre invocar que estavam a consumir e, portanto, as horas que ali permaneciam abancadas a ver quem passa e a discutir balelas, não as obrigam a proteger-se e a proteger os outros. Então, caro leitor, quando tal lhe acontecer, faça como eu fiz: quem se sente a mais, desanda. (O texto continua, mas eu suspendo-o para os leitores virtuais aqui. Como, de resto, muitas vezes acontece.) 

domingo, agosto 15, 2021

Domingo, 15.

O mundo parece ter sido abandonado por Deus tantos são os horrores, as penas, os males que brotam de todo o lado. Não nos bastava a Covid-19, chegaram também os dias tórridos, as chuvas diluvianas, os fogos, os tremores de terra, as guerras... O Haiti, o país mais pobre entre os pobres, foi atingido por um sismo de magnitude 7,2: morreram centenas de pessoas e os feridos são incontáveis. O pavor está instalado, as populações ainda se lembram doutro terramoto, em 2010, que fez para cima de 100 mil mortes. Ante tanta desgraça é a impotência que nos tolhe. Lemos, ouvimos e vemos e ficamos paralisados sem saber o que fazer. Porque tudo hoje é espectáculo e quanto mais mortes e feridos, mais espectadores alarves se quedam horas diante dos televisores. Que pensam eles ante o sofrimento? Nada. Tudo aquilo é um filme. 

         - Como se previa os talibans entraram já em Cabul. Entram eles, debandam os americanos. Uma vergonha que se esperaria de um Trump e não de Biden. Abandonar o nobre povo afegão à sua sorte, isto é, a voltar ao terror da sharia islâmica é um crime levado a cabo por uma nação que colheu todos os proveitos que lá a levaram e egoisticamente a deixa minada de ódios aos que se reinstalam para prosseguir com as hediondas afrontas aos direitos Humanos. 

         - Diz Jerónimo de Sousa que para preparar o país pós-pandemia, “é preciso ir para além da propaganda”. Meu caro camarada: então não conhece o homem com quem se uniu (salvo seja)? Se há alguém no país que poderia ganhar a vida como milionário, gerindo não uma mas várias agências de publicidade, é o seu parceiro. Homessa! 

         - O país atingiu o milhão de infectados com Covid-19. Isto é o que regista o Público, mas eu penso que deve ser pelo menos mais meio milhão, isso se saberá daqui a uns anos. 


sábado, agosto 14, 2021

Sábado, 14.

Alice está com covid. Embora vacinada com duas doses, foi passar o fim-de-semana com a filha a casa da sogra na Ericeira. As duas não estão protegidas porque são contra a vacinação. Deste modo, Alice tem poucos sintomas – diarreia, cansaço, dor de cabeça – enquanto a sogra está em estado miserável no hospital e a filha em casa de quarentena. Ambas dizem agora que se escaparem, vão imediatamente pedir para serem inoculadas. Depois de casa assaltada, trancas na porta. Pois é. Entretanto, Alice sofre. Estes são os defensores da liberdade... egoísta. 

         - Gosta-se da Alice Vieira mesmo de olhos fechados.

         - Vinte anos depois, perdida a guerra contra os talibans, a América retira-se inchada por ter feito o que quis e como quis, tudo, evidentemente, em nome do povo afegão e da democracia. Os novos senhores são mais jovens, embora gostem de mulheres e rapazes muito jovens como os anteriores, mas, aparentemente, menos selvagens. Só lhes falta entrar triunfantes em Cabul, todo o resto do território é já seu, depois de terem assassinado os opositores: jornalistas, militares afegãos, escritores, artistas, mulheres e crianças. A lei islâmica deve ser aplicada com todo o rigor e nela não cabem os delírios da arte, da música, da democracia. 

         - Só como registo para memória futura. O senhor todo poderoso da Rússia, segundo a Amnistia Internacional, além de ter alterado a Constituição de modo a ficar no poder até 2036, também está a compô-la retirando constitucionalmente direitos aos cidadãos como os de manifestação. Uma carga de medidas obrigatórias passam a ser necessárias para autorizar aglomerações públicas, e o protesto pacífico até aqui normalizado, passa a ser crime. Quem desobedecer tem à perna a violência da polícia, técnicas marciais, electrochoques, bastonadas e a prisão. Do PCP não chega um sopro de indignação. Deve ser porque está todo o Comité Central a banhos. 

         - Sendo fim-de-semana, muito trabalho de regas. Nada que meia hora de natação não esqueça. Ontem, contra todo o rigor horário e de vida, andei a apanhar amoras até um pouco antes de anoitecer. Ultrapassei com vantagem o quilo que já tinha e hoje meti mãos à obra, quer dizer ao tacho. Juntei uma vagem de baunilha e o resultado foi uma obra de arte. Colhi os primeiros figos, segunda-feira, levarei ao Igor uma caixa deles em agradecimento por me defender dos chatos e porque não gosto de dar gorjetas que acho humilhante. Que mais? Fiz sopa de cenoura e agriões, no forno frango, perdão, poulet, com batata, castanhas e cebolinha tudo para arquivar de modo a ser consumido durante a semana que vem. 

         - Para mim não é canícula, pelo menos aqui na eremitagem. Está quente é certo, uns 37 graus, mas suportável. Fiz a minha clássica natação, tomei meia hora de vitamina D, li, escutei o sussurro do calor golpeando em torno de mim e fechei a tarde lá fora no terraço a escrevinhar estes apontamentos. Paz e sossego. São 18 horas e dez minutos. 


sexta-feira, agosto 13, 2021

Sexta, 13. 

Os fogos que por cá matavam e reduziam a nada casas e florestas em anos anteriores, abrem hoje os jornais televisivos com os desastres ocorridos por essa Europa fora. Na Grécia o fogo teima em não deixar os arredores da capital; em Itália lança o terror com o termómetro a tocar os 50 graus centígrados; nos Estados Unidos está sem controlo, com temperaturas acima de 40 graus. Tudo isto, dizem os entendidos, deve-se ao aquecimento terrestre. Há que tomar acções draconianas para travar tanta insanidade, repetem. Mas eu só vejo atacar o consumo, deixando à solta as multinacionais que produzem e obrigam com campanhas a consumir cada vez mais e mais. Não observo travagem dos desfiles de moda, das corridas de automóveis, dos jogos de futebol que deviam passar para de dia, evitando assim milhões de quilowatts gastos que davam para alimentar a capital; como não vejo os senhores deputados, os condecorados militares a dispensar o carro de Estado; os directores das multinacionais, dos bancos, presidentes de câmara que saem de casa para o trabalho resguardados em limusinas que consomem mais que o transporte público e assim. O exemplo devia vir de cima. As meninas do BE, propagandistas do planeta, juro que nunca as vi no metro ou no autocarro. Enganem quem quiserem, a mim é que não.        

         - Consegui recolher um quilo de amoras para compota. Foram dezenas de picadas, horas a apanhar uma a uma, sob sol tórrido, na companhia do gato que não me larga, a pensar na Annie e no Robert que decerto por esta altura correm os muros de urtigas que ladeiam casas e caminhos por toda a Bretanha, mais propriamente Quiberon e seus arredores. A minha segunda profissão é compoteiro, mas nunca experimentei fazer este fruto delicioso, carregado de vitamina C, sais minerais, ferro e antioxidantes. A ver vamos como resulta. 

         - Ontem parecia que andava drogado. A quantidade de coisas que fiz até à hora de fazer meia hora de natação! Só a limpeza da vinha virgem que havia invadido o telhado da casa das máquinas, ocupou-me várias horas, para não falar nas regas, no carrego de entulho para queimar, ida às mercas, à inspecção do carro a Vila Nogueira de Azeitão e basta. Podia ter sido um dia feliz, mas faltou-lhe o essencial: dois minutos de escrita no romance. Não peço muito aos deuses – apenas um olhar contemplativo sobre as páginas do meu bem amado por quem afugento a morte e me entrego inteiro à vida. 

         - Hoje pus-me a pé pelas seis da manhã. Tinha de estar no Rato antes das nove e o sono foi por isso agitado. Despachado do que lá me levou, desci ao Chiado para dois dedos de conversa com o Vergílio, Carmo e a protectora do meu querido escultor. Fazia calor, os termómetros deviam andar pelos trinta e tal, mas ali, com a multidão de estrangeiros veraneando, uma ligeira aragem roçando a esplanada, era como se o céu nos banhasse da luz que brilha sem entontecer. Prometeram-nos para hoje o inferno, mas saiu-nos o paraíso. Mas se pensar na turba lisboeta que me telefonou, diria que andei entre as chamas do desassossego. Há dias que não ouço o telemóvel, hoje não parou. Ora nem Éden nem Averno, o paraíso apraz-me. 


quinta-feira, agosto 12, 2021

Quinta, 12.

O concerto de Agir, O Cantinho do Zeca, transmitido pela RTP1, dia 2 de Agosto, ano de nascimento do cantor, e que eu pude ver ontem ao serão através da internet, é uma beleza de equilíbrio, graça, bom gosto e harmonia. Um naipe de artistas, criteriosamente escolhidos pelo produtor e músico, gente que não vejo a correr os canais miseráveis que transmitem de manhã à noite todo o lixo em versão dejecto nauseabundo, ali estiveram com dignidade, paixão e amor à Arte. O povo não deve ter gostado nada, no dizer habitual dos senhores que mandam nas televisões e também nele, povo, analfabeto que se abstém de espreitar estas safiras cristalinas que nos dão por favor ou quando qualquer efeméride os obriga. Agir é o autor dos arranjos musicais, do giro de cena, da atmosfera, do calor humano que emana de todos os artistas enlaçados nos ritmos de Zeca para quem a letra servia a toada, a canção, o protesto, a revolta. Mas o excelente músico que é Agir vai mais longe: estende no tempo cada tema, embrulha-o na candura que ele próprio cria quando canta, magnetiza-o em torno de matrizes originais sem nunca perder de vista o autêntico sopro que saiu da alma do trovador. Por instantes, somos levados naquela melopeia de sons para um outro mundo, que raras vezes entrevistamos, e eu, pessoalmente, espreito diante da página em branco, num balancear entre a vida e a morte, entre o mistério e a graça, entre o silêncio e o murmúrio. Senhor de uma dicção perfeita, de graves que se adoçam, de agudos que voam, Agir é no panorama da música portuguesa um artista inteiro, único e singular. (Agora não me venham acusar que só digo mal...)  


 

         - Porque mal digo e o pior possível. A começar pelos responsáveis televisivos, tipas e tipos sem qualidade, arrastados por modas ocas, vazias, tresmalhadas, que entretêm o pateta e glorificam o idiota, selando com os seus gostos duvidosos o entretenimento familiar, todos “em família”, à manjedoura comendo os programas comprados por truta e meia, apresentados por gente de baixo preço, sem cultura nem humor, ou de humor grosseiro, do tipo manas catatuas, assente na brejeirice, que dá para esconder a cultura que não possuem, todos gajas e gajos porreiros, que passam de canal em canal levando consigo as anedotas foleiras tão velhas e relhas como eles. É só ver os programas ditos da manhã, os de fim-de-semana, os concursos, os humorísticos e temos a tabuada gravada da merdelhice nacional. Se a isto somarmos as transmissões futebolísticas, chegamos à conclusão que o povo é feliz e instruído até dizer chega. Os governantes esfregam as mãos de contentes, a polícia possui um povo admoestado, manso e humilde, os industriais e financeiros podem escolher viver noutro mundo só seu, despejarem todas as porcarias do consumo de massa no regaço destes adoradores de inutilidades, os decibéis ensurdecer, chuvas diluvianas descerem do céu irado, os calores tropicais estenderem-se à terra inteira, trazendo fome e doenças, que o bom povo lusitano não despegará os olhos do brinquedo mágico que o entretém e desvia dos autênticos problemas que assolam Portugal e o mundo inteiro. Assim a morte vai chegando em cascatas de ataraxia e orações. 


domingo, agosto 08, 2021

Domingo, 8. 

Acompanho três blogues, o de J. Rentes de Carvalho é um deles. O homem está lúcido e bem vivo e recomenda-se. 

         - O medo e o desassossego já está instalado em todo o Afeganistão. Os Taliban reinam sobre amplas províncias rurais e impõem de novo a sua sharia absurda e usurpadora das liberdades individuais e colectivas. As mulheres são quem mais sofre e os artistas que denunciam com o seu talento a chegada do terror. Assim o humorista Nazar Mohammad assassinado em Kandahar na semana passada; o escritor e historiador Abdullah Afiti na quarta-feira em sua casa. A Human Rights Watch denuncia mortes em série entre os que fizeram ou fazem parte das forças afegãs. Nos próximos tempos o mundo vai assistir à transformação de um país numa zona de sangue, humilhação e atentados aos direitos Humanos. O Ocidente, penso muitas vezes, vai ficando a única pátria de liberdade e progresso social. Por quanto tempo, não sei. Assim como sempre achei que a Igreja Católica, é o bastião civilizacional da fé e da solidariedade entre os homens, a mais tolerante de todas as religiões, na esteira do Amor que Jesus pregou no mundo. 

         - Agarram-se os homens à esperança numa vacina que erradique o SARS-Cov2. Contudo, o que vemos é diferentes mutações surgirem do nada e entre nós, mesmo os velhos vacinados morrem ou voltam a recidivar. Todos os dias o número de mortes é assustador, maior que em Janeiro e Fevereiro, mas a morte como tudo o resto entrando na rotina, deixa de lamentar. Quando conheço o número de falecidos sinto um bate no coração. Não me são indiferentes aqueles concidadãos que partem. Que partem?! Onde estão? Ausentaram-se por uns dias ou desapareceram definitivamente deixando um vazio enorme nas nossas vidas que continuam enquanto eles já cá não estão? Foram eles que nos abandonaram ou nós que os deixámos ir por aquele desfiladeiro sem fim onde quem entra não volta à superfície? O seu quotidiano interrompido por uma aflição de saúde ficou para trás, deixando intactos os lugares, os adereços, o próprio tempo, os odores da sua passagem nas quatro paredes do quarto, as obsidiantes memórias escritas nas fotos, nos objectos impregnados da história que lhes deu uma alma. De repente fica tudo tão gélido... Ninguém nos habituou a encarar aquele eterno despedimento; ninguém nos ensinou a seguir em frente sem aquele ou aquela que nos atraiçoou escolhendo outro caminho que não vem no mapa que nos orienta quando viajamos. Por momentos ainda achamos que vai voltar, que se perdeu num atalho, que hesitou numa curva, que se extasiou ante o pôr-do-sol. Mas os dias passam e ninguém nunca nos vem dizer onde está à parte o funeral onde ele ficou num pedaço de terra – ninguém o vê ou o viu alguma vez. Alguns levantam os olhos ao céu e acreditam que o viram, mas não têm a certeza se era ele ou era ela...  


sexta-feira, agosto 06, 2021

Sexta, 6.

No seguimento do país dondoco que a democracia decerto ajudou a crescer, aqui fica mais um detalhe. Entrei na farmácia e pedi para ser atendido por uma farmacêutica e não por uma empregada da farmácia, resposta daquela a quem expus a pretensão: “Aqui não há empregadas de farmácia, há técnicas de farmácia. – Então deixe-me fazer a pergunta doutro modo: seria possível ser atendido por uma empregada farmacêutica e não por uma empregada técnica de farmácia?” Caiu um silêncio ruidoso no balcão, algumas das funcionárias desapareceram para os fundos do estabelecimento. O ridículo levantou-se do cavado das consciências, o faz-de-conta recuou. Por momentos ao menos. 

         - Continuo na farmácia não nesta de que falo acima, mas na outra. As velhas acumulam-se, chegam e partem com sacos cheios de medicamentos. Digo-lhes: “Se nadassem não precisavam de tanta porcaria.” Olham-me com um misto de espanto e indignação. Quem não gosta é a dona da botica que me diz: “Não diga isso que me espanta a clientela!”  

         - Marcelo é o maior actor português de todos os tempos. O país devia estar de joelhos agradecido por representar tão bem, não digo o papel de bobo da corte, mas o de chefe de Estado, primeiro-ministro, técnico de saúde, comentador desportivo, bombeiro, jurista, jornalista, médico, vidente, defunteiro e... passo.

         - Grandes incêndios consomem vastas zonas de montanha nos EUA, França, Turquia, Espanha. Nós por cá, felizmente, este ano não temos dado abertura de telejornais como é hábito em anos precedentes. O verão tem sido simpático ao contrário do que os especialista (não ouvi o maior deles, o nosso chefe de Estado) nos prometiam. 

         - O Black, em casa, prefere estar à janela a ver passar gatos e gatas. Esta bela imagem feita de manhã, com o fluo do amanhecer, é a prova de um bicho com personalidade e fidelidade ao seu dono.  

         - O ditador Alexander Lukashenko, deve estar na origem do enforcamento de Vitali Shishov, dirigente activista da causa dos Belarus, que estava desaparecido e foi encontrado enforcado em Kiev, Ucrânia, segunda-feira. Tudo leva a acreditar que se trata de assassinato encoberto de suicido. Lukashenko e Putin devem saber.   


quinta-feira, agosto 05, 2021

Quinta, 5.

O conhecimento é antes de mais um estado permanente de curiosidade. Daí que, a propósito do programa do ARTE sobre Nero, tendo relido as 24 páginas de Suetónio em tradução do saudoso João Gaspar Simões (pena que a edição não diga de onde ele traduziu a obra) espreitando Tácito e  N. T. Wright, fui reler o que de Nero diz Tertuliano e, sobretudo, as imprescindíveis notas do tradutor João Carlos de Miranda. Aí esbarro com mais 15 longas observações que irei recordar nos próximos dias. Esta obra, foi editada por uma editora que infelizmente desapareceu, Alcalá, para a colecção Pkilokalia. Mais: há anos que procuro por todo o lado os outros dois títulos (julgo que são dois) do ilustre mestre em Ciências Patrísticas.  

         - Há dias, entrando no vasto elevador do Corte Inglês, vejo no topo do mesmo, um casal do tipo dondoca. Subimos três pessoas, portanto. De súbito, num andar qualquer aparecem três outros clientes para entrar, logo sacudidos pelo dondoco senhor. Digo aos que querem subir: “Entrem. - Não podem, só mais uma pessoa – ordena o piquete de serviço. É da lei. - Não exagere – respondo eu – pode ser da lei, mas nós devemos ter cabeça para pensar. De contrário, somos gado.” Não se ouviu uma mosca. Este género de pessoas, vive do faz-de-conta, da aparência, de sentido na riqueza que não quer nada com eles; são infelizes como ó caraças, pensam que enganam toda a gente, mas só se iludem a si mesmos. Vão morrer sem nunca terem esbarrado com a felicidade e, sobretudo, com a liberdade. Prisioneiros da mentira, com ela vão a sepultar. Passaram por aqui, mas ninguém deu por eles. São uns pobres idiotas. Imperam em chusmas nos países pobres, vivem regra geral a chular alguém com posses, e o que exibem é um pedaço de coisa nenhuma, uma máscara que esconde o rosto hipócrita. 


quarta-feira, agosto 04, 2021

Quarta, 4. 

Vi uma reportagem ontem sobre o Líbano. É impressionante como aquelas almas resistem a tudo. Governados há anos por uma seita de ladrões e antes por guerras devastadoras, proclamam a sua fé no meio do sofrimento extremo e como único refúgio numa terra arruinada por criminosos de toda a espécie. 

         - Muito acrescentei aos meus conhecimentos sobre o barão Haussmann. Ele e Napoleão III fizeram obra, mas passaram por cima de milhares de cidadãos pobres que foram, pura e simplesmente, postos a viver sob os escombros, ao frio e à chuva. Calcula-se que a mão do prefeito de Paris, tenha acabado com 42 por cento dos bairros lúgubres e insalubres da capital em tempo record, obrigando 20, 30 mil operários a trabalhar de sol a sol. É a esses infelizes, escravos, que Paris devia render homenagem e que eu saiba nunca o fez. No final, uma vez mais, quem lucrou foram as grandes fortunas. A partir daí o preço das casas quintuplicaram. Os pobres foram encaixotados nos arrabaldes.  

         - Ai está o retrato de um país abandonado recentemente pelos EUA e prontamente cobiçado pela China e Rússia. De uma assentada morreram oito pessoas e dezenas ficaram feridas quando um carro-bomba explodiu junto à residência do ministro da Defesa do Afeganistão. Os Talibãs esperaram pacientemente anos que os russos abandonassem o seu território e de seguida os americanos dessem por finda a luta de mais de uma década. Em breve voltarão a ser os sádicos senhores de um povo sábio e pacífico que viu partir à bomba toda a sua história milenar.    

         - Até agora não tenho que dizer do Verão. Gosto deste tempo que não golpeia, onde a brisa fresca do fim de tarde banha planícies e montanhas, mar e campo. Ontem, chegando da cidade, fiquei mais de uma hora lá fora no terraço (à moda do dondoco Carlos lounge) a ler os jornais e a respirar a doce atmosfera do Estio plácido. O Black, sendo bichano, está sempre disposto à brincadeira e, por isso, entrei na festa porque a aragem fresca que corria a isso convidava. Em breve tenho figos maduros. Vou tentar arranjar paciência para apanhar um quilo de amoras e fazer pela primeira vez compota. Os cachos pendem com tanto fruto negro, mas não deixam que eu deslize as mãos para os colher. Terá que ser por etapas, um tanto cada dia. Também o diospireiro não pode com tanto fruto. Nunca vi nada assim: os ramos carregados quase tocam o chão. Resta as maçãs que eu aceno com ternura porque é quase certo que pouco comerei, sendo os pássaros esfomeados que as ingerem. Outra curiosidade: este ano não há sombra de um só mosquito e mesmo moscas e formigas quase não se avistam. Só as abelhas continuam a preferir este espaço abençoado por Deus. De vez em quando ferram-me, mas eu sorrio-lhes em admiração pela sua sumidade minúscula que não admite granduras. Que mais? Vou nadar meia hora. Antes gostava de falar de Nero e Santo Agostinho que foi obrigado a prisão domiciliária e (talvez) à morte pelo imperador. Em 64 d.C. o apóstolo devia estar em Roma e (talvez) tivesse sido presente a Nero Cláudio César que o mandou assassinar. Agostinho desaparece misteriosamente por essa altura e até hoje não foi encontrada a sua sepultura. Suetónio e Tácito, naturalmente, não falam disso. Pelo menos não recordo qualquer referência.  


segunda-feira, agosto 02, 2021

Segunda, 2.

“Une vie dans laquelle il n´y a pas de solitude est une vie sans force et sans intérêt. En somme, la solitude est le lieu le moins solitaire qui soit.” Julien Green in Journal intégral. 

         - As pessoas dizem-me: você escreve muito bem. Eu sei porque dizem elas esta inverdade: talvez por não tropeçarem no que lêem. Desde o primeiro romance – A Ruptura – prémio do Diário Popular então dirigido por Maria Estela Guedes, oiço dizer que tudo o que escrevo se lê sem dificuldade. O que os leitores ignoram, é que atrás das palavras alinhadas para parecerem verdadeiras e, como direi, deslizarem como água fresca, estão horas de esforço a escolher, a limar, a procurar, a imaginar, a aperfeiçoar um livro ou um simples texto. Sempre tive esta preocupação – a do leitor não ter de esbarrar ou vacilar ou demorar-se em excesso em algum momento do trecho. 

         - Um ano depois das explosões no Líbano, um grupo uns 200 jovens liderados por outro jovem em cadeira de rodas, levantou o hospital central e bairros inteiros de Beirute. O Governo de corruptos não deu um tostão; são grandes empresas, países democráticos como a Suíça e muitos privados que ajudam como podem, enviando dinheiro para o exército de solidários homens e mulheres que Deus, instalando-se nos seus corações, os leva a fazer do cansaço força, da desilusão graça, uma obra surpreendente de fraternidade e amor ao próximo. 

         - Não larguei este presbitério. De manhã atirei-me à poda de uma imponente Cyca muito maltratada pelo inverno rigoroso deste ano. Depois revi dez páginas da primeira parte do Matricida, fiz uma sopa, o almoço, a sesta e de seguida a revisão do historiador latino Suetónio sobre Nero. Pelas quatro e meia fui nadar. Agora, 18,04, vou abandonar-me até ao jantar ao dolce far niente. À noite não quero perder um programa sobre a construção da Rive Gauche no reinado de Napoleão III e do seu prefeito Georges-Eugène Haussmann. Conheço o suficiente, mas estou sempre pronto a acrescentar mais qualquer coisa. Amanhã irei a Lisboa.   


domingo, agosto 01, 2021

Domingo, 1 de Agosto. 

Assisti com imenso agrado a algumas provas olímpicas vindas do Japão. O esforço que os desportistas empreendem para chegar ao nível que se lhes é exigido, é quase inumano. Daí que, como nos jogos da antiga Grécia, eles se transformem em deuses. A sua força é a sua fragilidade, as lágrimas de derrota ou de vitória que nos dilaceram o coração, são as medalhas de uma vida, que digo eu, missionária, ao serviço de uma arte maior. Nada a ver com aquela indústria de exploração humana que é o futebol. Os  desportistas de salto com vara e cem metros pista, nuns segundos encaixam nos seus corações fatigados as alegrias e tristezas de anos e anos de trabalho dedicado e duro. No judo gostei de Jorge Fonseca, no salto de Mamona e daquela frágil rapariga da Venezuela que explode quando sabe que fez história ao sagrar-se campeã do mundo na sua especialidade. É um universo maravilhoso aquele, porque a glorificação tem laivos místicos e a dedicação um mergulho na mais transbordante solidão. 

         - A China, ante o olhar indiferente da maior parte do mundo, prossegue o seu caminho imperialista. Para o conseguir, não olha a meios e agora até com os assassinos déspotas do Afeganistão se quer unir. A Xi Xiping ping ping não lhe bastou alterar a Constituição – como, de resto, fez Putin – para permanecer um líder vitalício; quer submeter à sua ditadura o maior número de nações livres. 

         - “É melhor estar saudável sozinho do que doente acompanhado.” Esta pode parecer um axioma à Helder de Sousa, mas não é – pertence ao psicólogo norte-americano Phil McCraw e vem hoje no “Escrito na Pedra” do Público.   

         - Domingo dominical pleno de paz e serenidade. Fiz uma quantidade de trabalhos que me satisfizeram. Fantasiei e sonhei, mas banhado da doce calma inabitual.