domingo, outubro 30, 2016

Domingo, 30.
Enquanto vou trabalhando na revisão de O Pesadelo dos Dias Felizes, outra história se imiscui no meu cérebro tomando forma a pouco e pouco. Há muito que desejo escrever sobre o Poder e as implicações dele decorrentes para os cidadãos e a sociedade. Uma delas é a ambição. Quero construir os pilares do meu trabalho, a partir dessa avidez que cega, aniquila, entorpece e é causadora de múltiplas desgraças. Sei o que desejo fazer, embora a textura romanesca esteja ainda frágil. De qualquer modo, sempre que elaborei uma espécie de sinopse, nunca a segui. Umas vezes porque a história me subjuga, outras porque as personagens tomam elas próprias outras directivas. O trabalho criativo continua a ser para mim um mistério. Assim como nunca saberei como actua o cérebro enquanto maestro das emoções e reacções, da construção da realidade a partir de algo que sendo pré-existente não possui, contudo, matriz vivencial.  

         - Aqui sou o primeiro a levantar e o último a deitar. Antes de tomar o pequeno-almoço, tento preencher as horas até ouvir o acordar da casa, com leitura e escrita. Faço-o no meu quarto, de janela aberta para o pequeno jardim, neste bairro sossegado onde só ouço o barulho das folhas das árvores quando um ligeiro vento as sacode e lá longe o ruído dos carros raspando o asfalto. Em Paris passa-se o contrário. Annie e Robert estão já no fim do pequeno-almoço quando desço para me juntar a eles. Depois do almoço muito animado, o Lionel quis que fosse conhecer a nova casa que adquiriu e deve começar a habitar no próximo mês. Não dista muito desta, mas é maior. A actual é alugada e o que paga pelo aluguer é quase o mesmo que vai pagar ao banco, cerca de 2200 euros. Bom. Antes fui ao centro de Strasbourg tomar café e reavivar a memória dos sítios que me encantam: Praça Kléber, catedral, ilha de France.
Petite France-Strasbourg


         - Ontem com o meu amigo que dirige uma unidade no hospital central da cidade, travei uma conversa muito interessante a propósito de colesterol. Grosso modo, ele confirmou aquilo que o nosso distinto Dr. Manuel Pinto Coelho escreveu no Público o ano passado e que tanta celeuma causou. Segundo Lionel que é um médico respeitado, o colesterol é indispensável ao organismo. As estatinas um veneno com efeitos colaterais incríveis. Mais: disse-me ele que estudos recentes, provam que o facto de as pessoas tomarem “até ao fim da vida” aquela droga, não diminuiu as mortes por enfarte do miocárdio. Para ele o principal problema e muito mais grave porque arrasta consequências mortais é o açúcar e o sal. Quem ganha com a intoxicação que devasta a população, são as multinacionais farmacêuticas. Eu nunca tive dúvidas. É por isso que não tomo nenhum medicamento. Sou adepto da profilaxia e do tento no que como. A vida é bela, senhores! Olé, olá!  

sábado, outubro 29, 2016

Sábado, 29.
Outro dia, em Halles, entrei num restaurante que servia comida biológica a peso. Normalmente desconfio destes “especialistas” que nos querem com saúde. Escolhi dois bocados de galinha, três pequenas gramas de diferentes legumes, e no final despachei 13 euros. Quando apresentei o meu cartão para pagar a magra refeição, a rapariga voltou-me: “Ah! É português! Como fala tão bem o francês, estava longe de supor!” Ficámos a conversar por largos instantes. Contou-me que estudava biologia na universidade de Aveiro, pagava de propinas mil euros, ganhava no emprego seiscentos, a mãe trabalhava de sol a sol, e há dois anos suprimiram-lhe a bolsa. Resultado: teve que emigrar. Aqui, explicou-me, pode prosseguir os estudos porque o Estado tem um acordo com as empresas. “Não ganho muito, mas ao menos sempre estou melhor que no meu país.” Como ela era muito bela, elegante de corpo, esbelta de entontecer os sentidos, aconselhei-a a tentar a publicidade. Riu-se. Mas é lamentável que os portugueses tenham de emigrar para sobreviver, enquanto os franceses o fazem para gozar do clima e das benesses que o Estado lhes oferece.

         - Em Paris tenho-me regalado a ouvir o duo Fréro Delavega que faz uma música belíssima, tão bela como eles próprios e a cumplicidade que existe nas suas actuações ao vivo. Reconheço na sua juventude aquela que foi a minha: empolgante, a arte d´abord, trabalhadora, simples, desarrumada qb, de algum modo uma espécie de anamnese do que fui.

         - Há dias a televisão daqui falou de Portugal, mas para ridicularizar o Governo socialista que pretende instituir um imposto sobre o sol. Tem sido uma rigolada a tal propósito. Todos acham a medida grotesca e uma forma de empobrecer ainda mais os portugueses já que o sol é a única coisa gratuita de que usufruem e não é propriedade de nenhum partido ou governo. Depois admiram-se que haja cada vez mais extremistas.

         - Tudo o que encontro sobre ou dos irmãos Mann, adquiro. Estou a ler o livro de Erika Mann, Quand les lumières s´éteignent. Trata-se de um documento denunciador do regime hitleriano que obrigou milhares a deixar a Alemanha. É igualmente a imagem de uma geração de intelectuais insubmissos que tiveram de fugir aos horrores da guerra. Neste aspecto, os irmãos Erika e Klaus foram pioneiros na antecipação da barbárie. Nem o pai Thomas Mann, nem Stefan Zweig tiveram o discernimento de ver o que se preparava para a Europa. Thomas Mann, era um instalado, um burguês e a sua obra reflecte isso mesmo. O filho é um ser delicado, brutal, incapaz de aceitar a ordem estabelecida, imaginativo e cativante. Do meu ponto de vista, superior ao pai.


         - A seguir ao excelente jantar vietnamiano que a mulher do Lionel nos preparou, passámos ao salão para apreciar a virtuosidade da filha de Mai-Hong ao piano. A rapariga promete e os avanços relativamente ao ano passado são nítidos. Nesta casa o silêncio só se instala a partir da meia-noite. Até quando posso isolo-me no meu quarto para trabalhar. Como estou dependente de alguém que me leve ao centro de Strasbourg onde poderei escrever com tranquilidade num café, disfarço o problema com um sorriso de orelha a orelha. Ainda por cima, o Nam, seis anos, não larga a consola onde o tiroteio é ensurdecedor.

sexta-feira, outubro 28, 2016

Sexta, 28.
O Pesadelo dos Dias Felizes sintetiza maravilhosamente a história de Peter de Santa Clara. Depois de se separar da mulher, no intervalo da chegada de Matmatu, ele sente-se perdido, desmotivado, sob forte depressão que lhe tolhe os movimentos, levando-o a pensar na morte. Até o dia em que conhece o amor e mais tarde a sua perda. Desorientado, barrica-se no centro comercial semanas a fio na desesperante expectativa de ver aparecer aquele que desapareceu sem deixar rasto, deixando para trás o hospital, a cidade grande, o quotidiano confortável. O pesadelo dessa expectativa é sentido na recordação dos dias que ambos viveram rendidos à felicidade e à alegria da vida partilhada. O resto o leitor conhecerá no fim de trezentas páginas que me reduziram a um farrapo pela energia nelas posta, pela concentração, o desgaste de dois anos de trabalho frenético e diário.

         - A linha 13 do metro é a mesma de Julien Green, de Jean Chalon, de André Gide e deste que assina estas linhas e ainda de uma multidão de africanos que labuta diariamente e a utiliza para chegar a casa, abatidos pelo desgaste do trabalho mal pago que mal chega para o que comem.

         - Fico-me por aqui hoje. Estou com o pé no estribo para deixar Paris a caminho de Strasbourg. O Lionel espera-me para jantar e eu tenho ainda tanta coisa a organizar. Tempo moche.


         - Acabo de receber a tristíssima notícia da morte do Jaime Fernandes. Fomos amigos anos a fio, trabalhámos juntos, encontrávamo-nos de vez em quando para almoçar e não tem muito tempo que estivemos em Setúbal. Devo-lhe muito e não o esqueço facilmente. Era um gentlemann, uma pessoa doce no trato, culto na latitude da informação, sobretudo a rádio onde deixou a sua marca. Era também um homem secreto, de falas poucas e sorriso tímido. Que Deus o tenha e a nós não nos esqueça nunca o amigo.

quinta-feira, outubro 27, 2016

Quinta, 27.
O ideal erasmiano segundo Klauss Mann: L´union de la terre sous l´égide exclusive de la cultura; il n´y a pas de place, ici, pour la libération sociale. Correspondence Stefan Zweig, pag. 186, Ed. Libretto.    

         - Pelas quatro da manhã acordei e fui anotar num papel o título definitivo do meu romance: O Pesadelo dos Dias Felizes. A Annie traduzi ao pequeno-almoço o que me veio do fundo da noite (Le cauchemar des jours heureux) e ela: “É excelente. Melhor que La consécration de l´amour.” Concordo. De resto, não tinha como certo este título e sentia que o meu cérebro também não. A prova é que continuou a trabalhar e trouxe-me no abalado do sono este que será o irrevogável título.  

         - Tenho um pressentimento que Ronald Trump ganha a presidência dos Estados Unidos.


          - Tive um dia arrasante. Estou uma papa devido ao muito que andei e aos entusiasmos que tive e são um desgaste para o sistema nervoso. Vou, portanto, estender-me até que os meus amigos cheguem de Cambrai aonde me recusei a ir tendo optado por Paris para flanar.

terça-feira, outubro 25, 2016

Terça, 25.
Aconselho para o dia de hoje, três aforismos que Oscar Wilde criou para nos enriquecer a existência:

Résister a tout sauf à la tentation.
Vivre est la chose la plus rare au monde. La plupart des gens se contentent d´exister.
Le simple fait qu´il (Bosie) ait ruiné ma vie me porte à l´aimer.

Celui qui vit plus d´une vie / De plus d´une mort doit mourir.