sábado, outubro 22, 2016

Sábado, 22.
Este ano, entre outros estudos, consagrei um tempo ao aprofundamento da obra e, sobretudo, da personalidade de George Sand (1804-1876). Curiosamente, sempre que pensava nela, cogitava um homem. Até que decidi mergulhar a fundo no seu trabalho de modo a recolocar o meu pensamento dentro do edifício humano e literário que foi o de Aurore Lucile Dupin. Para isso, não me chegou o contacto com o seu mundo registado nos livros, foi necessário entrar na sua intimidade (ou numa parte dela) que nos oferece o Museu de la Vie Romantique, em Pigalle. (Pigalle! já lá vamos). Partindo do Moulin Rouge, descemos a Rue Blanche, e uns seiscentos metros mais abaixo, à esquerda, depara-se-nos um edifício envidraçado com uma passagem em túnel arborizada. É aí que o pintor Ary Scheffer tinha o seu atelier e vivia e se expõe a sua obra, e foi montado o salão George Sand. O todo é constituído por dois edifícios, separados por um pático arvorejado e chão em pedra, que eu atravessei sob chuva torrencial e sem protecção. No rés-do-chão podemos ver alguns móveis que vieram de Nohant, a propriedade familiar que Aurore herdou. Pintura: impressionante retracto de Baudelaire, Delacroix (Madeleine dans de désert), Constantin Guys (Bazar de la volupté) a tinta da china. Na casa em frente depois do pátio, o primeiro piso é praticamente consagrado a George Sand, com os seus objectos pessoais (imensa bijutaria em ouro e prata que espanta tendo sido ela um homem disfarçado de mulher ou uma mulher disfarçada de homem), móveis, retractos dos pais e filhos, amigos e amantes que os teve em quantidade e qualidade, alguns manuscritos na mesma caligrafia de Oscar Wilde. No primeiro andar é, digamos assim, consagrado à glória de Ary Scheffer, com as telas do artista e pinturas de Renan que casou com a sobrinha de Scheffer. Surpreendeu-me também retracto de Jean Calvin, a escultura Satan de Jean-Jacques Fenchére. Todavia, grosso modo, achei o museu sem qualidade bastante para a notoriedade da escritora e dos seus amigos: List, Delacroix, Musset, Chopin, Rossini, e tutti quanti. Mesmo a atmosfera que é suposto recrear, não está lá. George Sand anda disfarçada, não somos atingidos pela sua masculinidade, pelo seu poder de sedução, pela sua força humana e intelectual. As divisões são pequenas, as velhas que guardam aqueles tesouros estão a desfalecer de sono, surripiando ao visitante as poucas cadeiras para ele descansar o cadáver. Não há obras da escritora para adquirir, tudo de cima abaixo está adormecido, fatigado, esgotado do poder assertivo da sua hóspede. O museu mais parece o tombeau onde jaz a autora de Leila.
George Sand

O salão no romantismo 


         - Até fazer noite vagueei por Pigalle, aceitando o convite de uma rapariga e o sorriso de um velho homossexual sentado num banco, maquiado, majestático, um longo sobretudo em pele coçado até aos pés. Que procurava eu? Em que espécie de mundo penetrava ao entrar e sair das muitas lojas de sex chop, ao percorrer com o olhar nostálgico revistas e fotos eróticas, ao sentir em golfadas as recordações do passado, quando o corpo cheio de febre abraçava aquele cosmo efervescente e a tremer entrava nele? Foi lá que vi, nos anos Setenta, o primeiro filme pornográfico, foi ali que deixei uma parte do meu corpo florescente, que me irmanei com seres destinados ao abandono, mas cobertos da seiva e do húmus que transportam a vida. Não era só a minha mente que carecia de algo, era o meu corpo que reservado estava a padecer da loucura que impregna, reduz à escravidão, submete os sentidos à desordem desnaturada da juventude. Aquele chão santificado dos pecados cometidos em nome da paz que o pecado traz ao corpo, é um chão de memória, uma página rasgada dos segredos que não se contam ao dia porque pertencem à noite estrelada de todas as miríades sofridas. Tanto do que somos, tanto do que habita nas sombrias células do nosso corpo, pertence aqueles instantes quando nos deixámos arrastar na corrente avassaladora dos sentidos, da urgência sensual que restabelece o equilíbrio e dá sentido à unidade do todo. Cada alma perdida naquelas ruas e becos, cada prédio esventrado que acolhe o corpo transpirado pelo pavor magnificente do perigo, do imprevisto, da beleza entranhada do odor dos corpos em desassossego, do êxtase dos instantes travados no interior de nós, dessa luta entre o Bem e o Mal, entre as ordens que emanam do corpo em flor e a moral castradora, todo esse corolário indizível, não é senão o confronto connosco, a solidão do corpo ante a autenticidade que não colhe a mentira nem alimenta a pompa e a circunstância. Quarenta anos passados, por muito que Pigalle tenha mudado e mudou bastante, senti no corpo o mesmo impulso, o mesmo sobressalto, que me suspendeu quando vi o sangue, o esperma, o suor, o medo, a inquietação, as silhuetas que caminhavam rente aos prédios, os corpos nus, agasalhados na desgraça da vida, selando com a miséria cada metro quadrado de asfalto, cada batida do coração, cada desmaio de desilusão, cada lágrima secada, madrugada andada, antes de um novo dia banhar de esperança outra noite resplandecente... Melancólico regressei a casa por ruas reluzentes da chuva e das folhas tombando em cascata. Trazia o coração apertado, pesado, escuro. Não era tanto porque a juventude me deixou, antes porque a memória tece infindáveis associações concêntricas que trazem num sopro todo o resumo de um passado sem retorno. A chuva que caía era a nota musical sacudida do fundo de um tempo para sempre perdido e a cidade, Paris, o álbum de recordações onde deixei uma parte de mim ao abandono. Esta foto é testemunho disso.
No apartamento da Rua de S. Marçal, Lisboa