segunda-feira, outubro 24, 2016

Segunda, 24.
Hollande esforça-se por ser ridículo. Sabe que a reeleição é uma miragem, mas tenta manter-se à tona. Súbdito dos americanos, enfrenta Vladimir Putin que tem sido mais lógico no ataque à expansão dos jihadistas na Síria. Detestando Donald Trump, não deixo de estar de acordo com ele nos aspectos de ligação à Rússia que ele anuncia. A este propósito, para os americanos já demos. Quem não se lembra da sua intervenção na Líbia, Iraque, Afeganistão, Síria, para citar as mais recentes.  Entre Trump e Hillary, venha o diabo e escolha. Como aqui em França, o povo anda dividido. Esquerda e direita é sopa requentada do mesmo tacho. Marine Le Pen tem chances de ficar bem colocada e se assim for é toda a Europa que vai tremer. Há tantos ao assalto do Eliseu de tantos lados!

         - Francis Vanoverbecque voltou a convidar-me para almoçar. Repasto suculento, no forno, com uma bela crosta de pasta tostada que guardava o segredo de uma vitela desfeita em ervas, deliciosa, seguida de tábua de queijos, mille-feuille, tudo servido com um excelente Bordeaux de 2013. No fim do ágape discutiu-se o artigo de Emmanuèle Claude, La fim des bordels, 1860 a 1960, partindo da afirmação de Proust: Papa m´a donné dix francs pour aller au bordel. A discussão foi acalorada, comigo a combater o infatigável Francis que pretende haver um homo em cada homem, na linha da Isabel que me dizia de olhos arregalados: “Os homens são todos!”  Com os ânimos mais calmos, não sei a que propósito, citei Alain Danielou, irmão do célebre cardeal com o mesmo apelido, e o seu excelente livro Le Chemin du Labyrinthe, cuja última reedição há dois meses se esgotou em um mês. Logo Francis, que conhece toda a gente, mostra-me fotografias ao lado de Reza Pahlévi, com quem privou, assim como o pai deste, fotos de Khajuraho, das esculturas eróticas dos Apesaras, Maurice Béjard, deste e daquele, impossível de tudo reter. A conversa subia e descia de tom, consoante se falasse de política ou de arte. A dada altura Francis, sai-se com esta, uma mão sobre o meu ombro: “Tu est un homme parfait en tous sens!” Logo o meus amigos: “Fais attention, Heldere!!”


         - A chuva instalou-se. As árvores despejam sobre as ruas lágrimas em forma de folhas. Há na atmosfera um perfume terno que leva Paris de volta ao seu passado glorioso. O ruído dos carros desceu, o clima inclinou-se à veneração dos pássaros que entoam o derradeiro salmo de despedida antes de rumarem a outros ares, a outros mundos. Em redor tudo é cinza, a morrinha cai sem barulho, como uma rede que fecha o espaço, impregnando a terra de memórias ancestrais. O Sena parou surpreendido para observar as margens e mais além os edifícios pardacentos projectados por Haussmann. Caminho cabisbaixo pelos passeios largos atapetados deste mundo vegetal que renasce todos os anos de cérebro aceso à recordação que se exprime sem descanso. Uma multidão incessante cruza-se comigo, ignorando quem sou, que faço eu aqui, que destino é o meu na cidade que a luz abandonou. As esplanadas, avançadas sobre os passeios, com seus aquecimentos extravasam de gente. Paris recolhe-se, embrulha-se no seu manto translúcido, todo de pequenas luzes cintilantes que acendem e apagam à minha passagem. Deste lugar ao outro... (interrompido)